Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ivson Alves

‘Fiquei em dúvida sobre o título desta coluna. Não sabia se escolhia Fim de Jogo (como a peça de Frederich Dürrematt), Fim da Linha (como um blues da Allman Brothers Band do qual gosto muito) ou o que acabou ganhando, bordão que ainda ressoa nos meus ouvidos na voz poderosa de Jorge Cury. Ficou a frase que mais se parece comigo – comum, sem nada de particular – para passar a mensagem: a Coleguinhas acabou.

Se dissesse que foi uma decisão difícil de ser tomada seria mentira. Foi fácil. Duro foi implementá-la. Tão difícil que levou mais de três anos para sair da intenção para a vida real. Quem me acompanha desde a Primeira Era da Coleguinhas sabe que lá por 2001 eu já estava pensando em tirar o time de campo. Quando a decisão já estava praticamente tomada, eis que aparecem o Rodrigo Azevedo e a Elisa Andries com a proposta de fazer de uma versão menor do site uma peça-chave no lançamento de um portal para jornalistas de alcance nacional. A idéia me seduziu, confesso. Vim para cá, enfrentei algumas incompreensões, mas continuei até onde deu. Agora, porém, não dá mais.

Por quê? Em primeiro lugar, estou há tempo demais falando de mídia. São quase oito anos – iam se completar agora em fins de maio – e é muito difícil ficar abordando o mesmo assunto, semanalmente, por esse tempo todo. Sinto que já escrevi tudo o que tinha de escrever sobre jornalismo e por isso estou me tornando repetitivo. E é muito chato aturar pessoas que contam sempre as mesmas piadas ou repetem as histórias, né?

Segundo: há algum tempo identifiquei dentro de mim um vírus que sempre combati nos jornalistas em geral – o da arrogância. Não por coincidência certamente, semana passada, durante discussão com uma pessoa muito querida, ela me disse exatamente isso – que eu era arrogante. O diagnóstico não fez com que eu decidisse a acabar com a Coleguinhas, isso já estava resolvido, mas reforçou a resolução. Afinal, se sempre critiquei a arrogância como o principal defeito dos jornalistas brasileiros, não poderia aceitar o mesmo defeito em mim, certo?

‘Mas já que você identificou os problemas, você poderia se modificar, não?’, argumentará você. Aí entra o terceiro ponto. Ao longo destes quase oito anos, vi as situações se repetindo em nosso mundinho jornalístico – empresas mal dirigidas fazendo besteiras e depois demitindo pessoas competentes, trabalhadoras e leais (apesar de tudo que possa ter escrito, ainda considero que a esmagadora maioria dos jornalistas se enquadra neste perfil) para tapar os buracos; coleguinhas procurando esconder sua fraqueza atrás de arrogância para com o leitor e as fontes (‘olha quem está falando!’); outros aduzindo a isso a atitude de culpar crises econômicas ou conjunções planetárias pelo fato de terem se tornado meros feitores de redação; entidades sindicais simplesmente parando de lutar pela categoria e se tornando um lugar para fazer carreira, trampolim para política ou cargos públicos, etc. Assim, não dá para fugir da repetição se as situações se repetem, positivo?

Além disso, esse estado de coisas me desiludiu. Hoje, o tema jornalismo & mídia no Brasil me sabe a amargura, cheira a ar parado e me leva a descarregar nos outros de maneira arrogante. Assim, como não quero continuar arrogante ou ficar amargo e preciso de ar novo para respirar, vou dando o fora, para me reciclar e ir em frente. Mas, quem sabe, como disse Stevie Wonder para o Ray Charles, a gente não se esbarra por aí?’



CRÍTICA & ARTE
Affonso Romano de Sant`anna

‘Debater é preciso’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 27/03/04

‘Gostei de participar do debate sobre arte e crítica no CCBB há uma semana. E o fato de as senhas terem se esgotado duas horas antes e cerca de 400 pessoas terem voltado sem conseguir ingresso mostra que a questão da arte em nossos dias não é um assunto acadêmico aprisionado num gueto que a controle, mas interessa à sociedade como um todo.

Um dia antes eu havia falado sobre ‘as sem saídas da arte contemporânea’ para umas 400 pessoas em Juiz de Fora. No dia anterior àquele, em Macaé, falei para 800 professoras. Uns dias antes na Bienal do Livro, em Petrópolis, esse foi o assunto que a platéia pediu que eu abordasse. E assim poderia ir relatando dezenas de exemplos nos últimos três anos, reafirmando que tentar entender o que ocorre com as artes hoje é começar já a entender a anomia ética e estética em que estamos mergulhados. Esclarecer os paradoxos da chamada pós-modernidade ajuda a entender os atentados em Madri, a guerra no Iraque, o universo da violência e das drogas e as faces perversas da globalização.

Por isto, insisto. Para se falar sobre arte ou sobre crítica, é indispensável ter uma leitura crítica da cultura e da história. Quem se restringe a fazer pequenos comentários formais e técnicos, mostrando que leu apostilas ou faz bem o seu dever de casa, perde a oportunidade de estudar na manifestação artística o que ela tem de metáfora epistemológica de uma época.

Onde anda a crítica de arte hoje?

Foi praticamente banida dos jornais. Nos anos 50 e 60 do século passado havia, só no Rio, uns dez críticos. Porque acabaram ou foram substituídos por outros personagens? Eis uma matéria que interessa à sociologia e à história da imprensa e não apenas aos artistas. Mais do que lamentar, importa analisar o porquê dessa transformação. E para isto seria indispensável ligar esse ao seminário sobre imprensa que Alberto Dines realizou há poucos anos no mesmo CCBB, onde fiz uma análise dos suplementos literários e culturais.

O fato hoje é que o crítico foi substituído pelo jornalista, a crítica pela reportagem. Por quê? O que tem isto a ver com as escolas de comunicação? O que tem isto a ver com a cultura do espetáculo que cultiva o brilho e a superficialidade? Correndo atrás do estapafúrdio e do ridículo, o editor e o repórter acabam abrindo espaço para aquilo que por sua bizarrice parece ser mais notícia que uma exposição onde as obras não escandalizam, embora revelem o vigor de seus criadores.

Deslocado, portanto, dentro da própria mídia, o crítico tem hoje outros concorrentes que se apresentam como ‘mediadores’, subtraindo ao crítico a mediação que lhe era própria. O curador, por exemplo, se instituiu como um crítico que foi à luta. E em cada país do Ocidente, meia dúzia deles, com o nome até de ‘comissários’, é que controlam a arte. Outro elemento mediador, cada vez com atuação mais agressiva e com capacidade de interferir no mercado, é o colecionador. Pretendendo ser um reflexo, é um agente atuante. Claro que há colecionadores diversos. O que se especializa em temas, épocas e autores – este presta um serviço mais duradouro. Mas há os que não entendem nada de arte e delegam a um curador a aquisição de obras. E esse curador não é um agente ingênuo. E há ainda o que atira em todas as direções, como quem, na bolsa de valores, faz aplicações diferenciadas. Acaba valorizando nulidades.

Alguns já disseram que há três tipos de crítica: crítica de celebração, crítica de informação e crítica reflexiva. Mas é possível apontar uma estranha categoria surgida com a modernidade. Herbert Read foi o primeiro a detectar isto quando disse que o artista moderno obrigou o crítico a achar outra linguagem, passar da descrição para a reflexão. Diante deste desafio, eu adicionaria, ocorreu algo insólito. Pouquíssimos críticos de jornal e revista, a exemplo de Robert Hughes do extraordinário ‘O choque do novo’, tiveram autonomia de vôo para não se dobrarem diante de qualquer coisa que se apresentava como nova. Em geral ocorreu um fenômeno intrigante no espaço da crítica. Surgiu uma espécie de ‘action writing’, como foi diagnosticado por um crítico inglês. O crítico jogando palavras ao léu, como um Pollock fantasioso e desesperado. De tal forma que seus textos se aplicam a qualquer obra ou autor.

Somem-se a isto dois outros fatores conjugados. Muitos críticos têm complexo de inferioridade diante dos artistas e ao invés de criticar, divergir, submetem-se. E isto é péssimo para o artista, porque ele, às vezes, precisa de correção de rumos. Muitas vezes não têm muita certeza do que estão fazendo, e uma palavra de estímulo na direção do abismo pode danificar uma carreira.

A isto se soma outra coisa: desde que a arte moderna instituiu que a palavra do artista é soberana, que ele é um shaman – como o histriônico e ultravalorizado Joseph Beuys – instituiu-se também a geléia geral. É arte tudo o que qualquer pessoa que se julga artista diz que é arte. Querer ser artista é louvável, ser e poder é outro assunto. Ninguém vira médico só porque se proclama médico. Como lembra James Spalding, quando Emy Tracy (aquela que teve sua cama com lençóis sujos, copos, garrafas, camisinhas, etc. vendida por uns 200 mil dólares) foi entrevistada pela tevê e o repórter lhe perguntou porque tal ‘cama’ era uma obra de arte, ela disse: ‘Por que eu estou dizendo que é’. Isto bate com outra tolice dita por Joseph Beuys que sustentou, sem originalidade alguma, que ‘todo mundo é artista’ e que ‘mesmo descascar um tomate é obra de arte’. Isto, como diz Spalding, pode ser consolador para os que cozinham, e, a generalizar, as cozinhas estão cheias de Rembrandts.

De resto, enquanto estávamos ali no CCBB e uns poucos diziam ingenuidades sobre ‘o ser contemporâneo’, naquela mesma hora, estava falecendo um dos nossos maiores contemporâneos – o pintor Glauco Rodrigues, que definiu-se por um projeto artístico enquanto muito de seus colegas iam se perdendo na espetacularidade das notícias.

EM TEMPO: aos que perguntaram informo que saiu a segunda edição de ‘Desconstruir Duchamp’.’



LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva

‘Questão de Gênero’, copyright Jornal do Brasil, 29/03/04

‘Caetano Veloso, à semelhança de outros criadores, flexibilizou a gramática, especialmente a ortodoxia do gênero em português, nos seguintes versos: ‘Uma tigresa de unhas negras/ E íris cor de mel,/ Uma mulher, uma beleza/ Que me aconteceu./ Esfregando a pele de ouro marrom/ Do seu corpo contra o meu,/ Me falou que o mal é bom e o bem cruel’.

Os alunos aprendem na escola que tigre é substantivo epiceno, palavra que veio do grego ‘epíkoinos’, pela formação, ‘epí’, sobre, em cima, e ‘koinos’, comum, pelo latim ‘epicoenu’, com idêntico significado. Assim, comum-de-dois e sobrecomum são sinônimos de epiceno.

Lexicógrafos e gramáticos costumam seguir o mesmo padrão para explicar os substantivos epicenos. Os exemplos mais invocados são a águia, a mosca, o besouro, o gavião, a baleia, a pulga, o condor, o tatu, a borboleta, a sardinha, o crocodilo e o tigre. O leitor encontrará outras alternativas para epicenos, de que são exemplos caxaréu, cacharréu, caxarelo e caxarela, os três masculinos, designando o macho da baleia.

Um substantivo de gênero feminino pode mudar radicalmente de significado quando antecedido de um simples artigo. A palavra cabeça, quanto antecedida do artigo masculino, designa o líder de algum movimento, por exemplo, caso também de o caixa, que indica funcionário de banco ou a pessoa encarregada de lidar com o dinheiro, caso de Judas, entre os apóstolos, e do caixa de campanha nas eleições. A propósito, como Jesus está na moda, em livros e filmes principalmente, lembremos que seu caixa de campanha, Judas, suicidou-se depois de trair o cabeça do movimento.

Já capital é masculino para designar dinheiro, recursos financeiros, e feminino para indicar a principal cidade de um estado ou país. O cisma designa separação, rompimento, dissidência. Mas a cisma indica apenas desconfiança, obsessão.

O escritor J. J. Veiga tinha cisma com a palavra grama. Dizia que os gramáticos deveriam curvar-se ao gosto popular e aceitar grama como substantivo feminino, para o peso e para o capim. Argumentava que o uso começava na maternidade. Mãe nenhuma usaria grama no masculino para dizer quanto o pimpolho pesou ao nascer.

Reinaldo Pimenta, autor do delicioso A Casa da Mãe Joana, ouviu numa padaria um inusitado exemplo de hipercorreção. O cliente, querendo caprichar no português, pediu ‘duzentos gramos’ de presunto. O que ocorreu? O falante quis adotar a forma culta, mas tropeçou. Sabendo que grama é masculino para designar unidade de medida, fez o masculino no número (duzentos) e aplicou a mesma regra na palavra que lhe seguia. A hipercorreção dá-se quando o falante semelha esforçar-se para errar com certo método.

Outros exemplos de epicenos encontramos em ‘o guia’ e ‘a guia’ (documento, meio-fio da calçada e colar colorido de procedência africana); em ‘o lente’ (professor) e ‘a lente’ (vidro de aumento). Neste caso, quem explica as origens às vezes faz confusão. Professor foi designando lente, não porque usasse lentes, mas porque os primeiros professores muitas vezes se limitavam a ler aulas previamente escritas. Neste caso, veio do latim ‘legente’, que lê. E a lente recebeu tal designação por sua semelhança com a lentilha, do latim ‘lente’, declinação de ‘lens’, planta, cujo diminutivo, ‘lenticula’, resultou no português em lentilha.

Tigre serviu de base à formação de tigresa. Mas e onça? Designando moeda, veio do latim ‘uncia’, duodécima parte da libra romana e também da inglesa. A designação do animal, porém, procede da supressão do ‘l’ inicial do francês ‘lonce’, em que se entendeu que o ‘l’ servia de artigo definido e não integrava o vocábulo. A origem de onça, neste caso, é o latim ‘lyncea’.’