‘Filme polêmico, a Paixão de Cristo, de Mel Gibson, tem suscitado grande interesse e debates apaixonados, com ou sem razão, na opinião pública e em muitos órgãos da grande imprensa. A maior polêmica gira ao redor da questão se ele alimenta ou não o anti-semitismo. Importantes líderes religiosos e outras personalidades, que não podem ser acusadas de reagir apenas emocional ou preconceituosamente, têm manifestado opiniões entre si contraditórias. Uns afirmam que o filme alimenta claramente o anti-semitismo, outros declaram não concordar, pois, ao vê-lo, não perceberam nada que pudesse dar sustentação a essa tese.
Independentemente da questão se, em forma objetiva e explícita, há ou não anti-semitismo no filme, creio que o simples fato de a comunidade judaica, no Brasil, ter considerado o assunto tão grave a ponto de emitir uma nota para denunciar anti-semitismo, deve ser levado seriamente em consideração ao julgarmos o filme. Na verdade, um filme sobre Jesus Cristo não deve ser nem parecer anti-semita, pois por tudo que sabemos de Jesus, ele jamais aceitaria ser usado para o anti-semitismo seja aberta seja disfarçadamente, tanto assim que ele mesmo, sua mãe, seus apóstolos, inclusive Paulo, todos são judeus. Acrescente-se que o anti-semitismo já causou perseguições inomináveis contra os judeus, culminando no holocausto de milhões perpetrado por Hitler. Por essa razão, hoje mais do que nunca, devemos estar em alerta para não favorecer o anti-semitismo.
O autor do filme declara que se ateve aos textos evangélicos. Contudo, quando se tomam os textos bastante sóbrios do Evangelho para representá-los em forma concreta e por assim dizer recriá-los historicamente mediante os recursos da imaginação e da atual capacidade tecnológica do cinema, correm-se muitos riscos de não ser mais tão fiel ao que o Evangelho quis dizer e aos fatos históricos que, sem dúvida, estão na base do relato evangélico.
Diante do debate sobre o filme e considerando que neste momento histórico há um recrudescimento do anti-semitismo, por exemplo, na Europa, é urgente e necessário retomar as conclusões importantes do Concílio Vaticano II referentes à pergunta sobre quem foi o responsável pela morte de Jesus. São essas conclusões que devem ser retomadas, defendidas, divulgadas e assumidas. Elas representam o pensamento atual da Igreja Católica sobre essa questão tão grave, delicada e sempre ardente. Em primeiro lugar, a Igreja sempre ensinou que Jesus Cristo morreu por causa de nossos pecados, isto é, os pecados de todo o gênero humano. Nesse sentido, todos somos responsáveis por sua morte. Em segundo lugar, ela sempre ensinou que Jesus aceitou livremente morrer pela nossa salvação, não tendo sido submetido à morte contra sua vontade. Ele sabia que no mistério de sua morte e ressurreição se decidia a sorte da humanidade, por isso sua vigorosa determinação em enfrentá-la e não recuar por mais terrível que ela fosse. Isso é teologia católica, interpretação católica do que nos foi legado pelos Evangelhos e demais escritos do Novo Testamento e pela Tradição.
Considerando, porém, as circunstâncias meramente históricas e humanas da paixão de Jesus, a Igreja Católica reconhece que somente a autoridade constituída do Império Romano, que governava a Palestina da época, no caso, o governador Pôncio Pilatos, tinha poder de condenar Jesus à morte e o fez.
Portanto, não os judeus, ainda que um grupo de seus dirigentes tenha apoiado sua condenação à morte. O responsável verdadeiro foi Pôncio Pilatos. Por essas e outras razões, o Concílio Vaticano II, no documento, intitulado Nostra Aetate (1965), sobre as relações da Igreja com as Religiões não-cristãs, na parte em que trata da relação com a Religião Judaica, ensina que não se pode culpar coletivamente nem o povo judeu da época nem o de hoje pela morte de Cristo. O documento diz clara e decididamente: ‘Aquilo que se perpetrou na Paixão de Cristo, não pode indistintamente ser imputado a todos os judeus que então viviam, nem aos de hoje’(n. 4). E, depois de repudiar qualquer tese que incluísse uma certa condenação dos judeus da parte de Deus por causa da morte de Jesus, o concílio acrescenta: ‘Haja, por isso, cuidado, da parte de todos, para que, tanto na catequese como na pregação da palavra de Deus, não se ensine algo que não se coaduna com a verdade evangélica e com o espírito de Cristo’ (n. 4). Sublinhe-se, portanto, que o anti-semitismo é contrário ao espírito de Cristo e à interpretação dos Evangelhos que o concílio faz.
Por fim, lembremos que o atual papa João Paulo II chamou os judeus de ‘nossos irmãos maiores’. Hoje, essa fraternidade deve continuar sendo cultivada e o anti-semitismo de todos os modos repudiado. Quando você for ver o filme, veja-o com fé religiosa, mas também com esse espírito crítico.’
Fritz Utzeri
‘A paixão de Gibson: fé ou pornografia?’, copyright Jornal do Brasil, 28/03/04
‘Já falei aqui de um filme que não vi e não gostei. Tratava-se de A vida é bela, do diretor italiano Roberto Benigni, uma espécie de conto de fadas em campo de concentração. Vários amigos, incluindo muitos judeus, insistiam para que visse o filme. Não o fiz e escrevi na época: ‘Sinto muito, mas carrego uma culpa enorme (meu pai, também Fritz, lutou a Segunda Guerra do lado alemão) e perguntas demais sem resposta dentro de mim e não consigo me imaginar rindo do Holocausto, por mais bela e ingênua que seja a história que queiram me contar. Para mim não dá. Não vou ver o filme’.
Agora, mais uma vez vejo-me ante um filme polêmico. Desta vez o sinal está invertido. Muitas figuras respeitáveis da comunidade judaica acusam o filme de anti-semita. Isso, se comprovado, já seria uma razão suficiente para não passar pela porta do cinema. Mas darei crédito aos que defendem o filme dessa acusação.
O fato é que Cristo nasceu, viveu e morreu como judeu. Se, por um lado, o establishment judaico da época estava louco para ver-se livre de um rabi que considerava herege (e os sacerdotes o acusaram à autoridade romana), daí a jogar o manto da culpa sobre o povo judeu é tão falso quanto atribuir a todos os cristãos responsabilidade pelos massacres das Cruzadas, a Inquisição ou a repressão a certas heresias, como a dos cátaros, alvos das quatro primeiras cruzadas da Igreja (antes daquelas voltadas contra o Islã). Só na cidade de Béziers, em 22 de julho de 1209, foram massacrados, inclusive dentro da catedral, cerca de 30 mil homens, mulheres e crianças. A ordem de matar foi dada pelo enviado de Roma, o bispo Arnaud Amaury, com as seguintes palavras: ‘Matem todos, Deus saberá reconhecer os seus’.
O filme, digo sem ver (baseio-me no que li e nas horrendas fotos publicadas nos jornais e revistas), entra, para mim, na mesma categoria dos filmes pornográficos. A violência dessa natureza é pornográfica e se presta apenas a aguçar a percepção do que existe de pior na alma dos seres humanos. Voyeurismo levado ao grau extremo.
Nada a ver com cristianismo. Pelo menos na noção ética, moral e espiritual que restou em mim, depois que deixei de crer. Se vivesse no tempo dos cátaros, ou até o século 17, seria torrado ou massacrado pela Igreja pelo que vou dizer, mas afirmo que não aceito o conceito judaico cristão de culpa geral, do homem que nasceria amaldiçoado, predestinado para o mal e tendo que ser salvo, redimido, pelo sacrifício da carne.
Deus já o ensaiara com Abraão. Numa crônica escrita aqui, no JB, em 15 de outubro de 2000, sob o título A síndrome de Abraão eu dizia: ‘Deus, para testar a fidelidade de Abraão, ordenou-lhe que lhe sacrificasse o próprio filho, Isaac, o seu favorito. Você mataria seu filho se Deus lhe pedisse? Olhe bem pra seu filho e responda: lhe passa pela cabeça atender a tal exigência? Embora Deus tenha desistido, Abraão estava totalmente disposto a imolar Isaac e, após amarrá-lo sobre o altar, já levantava a faca para enfiá-la em seu coração, quando o anjo mandou-o parar e apontou para um cordeiro que apareceu por milagre. Aí, no gesto de Abraão, nasceu o fundamentalismo religioso que tem sido um dos maiores assassinos da história da humanidade: matar em nome de Deus, porque Deus quer’.
O Cristo massacrado de Mel Gibson não me interessa. Recuso-me a aceitar a idéia de que Deus não tinha modo melhor de salvar (?) a humanidade do que submeter seu filho aos mais atrozes tormentos. No caso de Deus, a coisa se complica ainda mais porque sendo Deus e Homem, como separar o pai do filho? Fui aluno exemplar de religião durante toda a minha vida escolar e nunca consegui entender isso, por mais que sucessivos padres tentassem me explicar. (Os muçulmanos, que negam a crucificação de Cristo, embora reconheçam a Imaculada Conceição e o considerem o segundo profeta em importância, não entendem de jeito nenhum a Santíssima Trindade e acusam os cristãos de politeísmo.)
O Cristo que me interessa é o que prega o amor ao próximo, o que manda dar a outra face, o Cristo do Sermão da Montanha, o Cristo que detém a mão justiceira dos que iam apedrejar a adúltera, desafiando-os a olhar para os próprios pecados. Esse é o Cristo pelo qual seus seguidores deveriam viver. Não adianta assistir a uma longa sessão de tortura e sair do cinema levando para casa uma coroa de espinhos, um cravo ou uma camiseta de merchandising. Cristo não é um produto. Uma das práticas ‘cristãs’ à qual tenho verdadeira aversão é o culto das relíquias, necrolatria selvagem e sem sentido, que não encontra eco em qualquer dos ensinamentos do Senhor. (Continua no próximo domingo)’
Arthur Dapieve
‘Sexta-Feira 13 da Paixão’, copyright O Globo, 26/03/04
‘Dei 30 dinheiros a Mel Gibson. Quinze pratas do meu ingresso, quinze pratas do ingresso de minha mulher. No entanto, nós é que fomos traídos, porque ainda esperávamos assistir a um filme religioso, forte e polêmico mas religioso, e encontramos tão-somente um filme de terror. A quantidade de sangue espirrado, pele lacerada, costelas expostas e, de quebra, uns monstrinhos patéticos à guisa de demônios deixou-nos na expectativa, durante a sessão no Roxy, de que a qualquer momento Jason Voorhees, sua máscara de hóquei, seus objetos cortantes e o título ‘Jason takes Jerusalem’ iriam aparecer na tela.
Minha primeira lembrança associada à sétima arte é a de uma Sexta-Feira Santa em que minha mãe me levou para assistir a uma versão cinematográfica da Paixão de Cristo numa sala de Ipanema. Diante de todo o sofrimento na tela, eu, desesperado, pedi para sairmos no meio da sessão. Fui para casa aos prantos. A história nos Evangelhos nunca precisou (até Gibson entrar em cena) que algum artista transformasse sua obra em mesa de autópsia para tocar as pessoas. As descrições de São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João são contundentes o bastante para dispensarem a violência explícita.
Este ‘A Paixão de Cristo’ tem, alegadamente, preocupações com a veracidade dos fatos, preocupações traduzidas, por exemplo, nos diálogos em aramaico, hebraico e latim. Segundo dom Geraldo Magella, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Gibson foi ‘bastante fiel aos relatos bíblicos’. Não tendo, nem de longe, o saber e a autoridade moral do religioso, tenho dúvidas se ‘fiel’ é a palavra mais adequada. ‘Literal’ talvez fosse o correto. Ao se transplantar qualquer obra de um meio para outro, ser fiel e ser literal raramente são sinônimos. Gibson pegou tudo ao pé da letra.
Não há, entretanto, muitas evidências históricas dos eventos narrados na ‘Bíblia’. Inclusive porque muitos deles têm caráter simbólico, e daí extraem sua extraordinária força. Jesus mesmo se expressava por meio de parábolas. Como, então, tratar ‘com veracidade’ algo que é fundamentalmente alegórico? Incapaz de sutilezas, Gibson optou por um sadismo que não encontramos nem no mais realista filme de guerra, apenas nos filmes do terror menos psicológico, mais visceral. É um sadismo com o próprio personagem, acompanhado na Sua agonia em detalhes implacáveis, e é um sadismo com o espectador, tornado cúmplice desse voyeurismo pela identificação primária com a câmera.
Num texto de 1957 sobre o erotismo, o crítico francês André Bazin escreveu: ‘Se desejamos permanecer no plano da arte, devemos nos ater ao imaginário. Devo considerar o que se passa na tela como uma simples história, uma evocação que jamais se passa no plano da realidade, a não ser que me sujeite à transferência cúmplice de um ato ou, ao menos, de uma emoção, cuja realização exige o segredo. O que significa que o cinema pode dizer tudo, mas não de forma alguma tudo mostrar. Não há situações sexuais, morais ou não, escandalosas ou banais, normais ou patológicas, cuja expressão na tela seja proibida a priori , com a condição, porém, de se recorrer às possibilidades de abstração da linguagem cinematográfica, de modo que a imagem jamais assuma valor documental.’
Em nome da sua verdade, Gibson disseca Jesus de maneira pornográfica. Mostra, não sugere. Sua volúpia pela Carne é tamanha que esvazia o Espírito. Esfolado vivo, Jesus perde a transcendência. De nada adiantam os flashbacks, minúsculos intervalos na tortura, para devolver-Lhe a beleza da mensagem. Porque o diretor despreza a inteligência do espectador e manipula sua emoção da mais feia maneira possível. O homem Jesus cai sob o peso da cruz, Maria se lembra do menino Jesus que caiu no quintal de casa etc. Seu filho sofre, muito, e morre. Mas em nome do quê? Essa vanidade se agrava quando, após Seu último suspiro, passa-se do meramente ruim ao terrivelmente constrangedor.
Todavia, a violência de ‘A Paixão de Cristo’ não me pareceu anti-semita, apenas cega. Quando Jesus (Jim Caviezel, de ‘Além da linha vermelha’, bom ator incapaz de atuar sob tanta maquilagem de carne viva) é preso e levado ao Sinédrio, alguns judeus se retiram, denunciando a inexistência de acusações palpáveis, a farsa do processo e da convocação noturna. No decorrer de todo o filme, os habitantes de Jerusalém se dividem: uns escarnecem do suposto blasfemador, outros pedem que cesse a barbárie dos romanos. Ou seja, há judeus bons e judeus maus, assim como há romanos bons e romanos maus.
(Embora um Pilatos atormentado seja discutível diante da própria alegação de apego à veracidade histórica do filme, o ator Hristo Shopov torna seu personagem interessante.)
Por fim, cabe notar que a aprovação da CNBB a ‘A Paixão de Cristo’ cria um paradoxo. Se Gibson fez uma obra hiperviolenta e se a Igreja condena a violência, inclusive no cinema e na TV, estaria agora abrindo uma exceção para a violência com causa, para a violência em tese a serviço da fé? Não creio. Contudo, a contradição está instalada, e se torna perigosa porque, justamente na Terra Santa, ela alimenta, de lado a lado, as políticas de infinitas retaliações com homens-bomba e assassinatos nem sempre seletivos.
Essa, aliás, é uma questão que me tem obsedado: não apenas falhamos em resolver o conflito no Oriente Médio como deixamos que ele se espalhasse pelo resto do mundo.
Nilton Bonder
‘Mundo de apaixonados e amorosos’, copyright Jornal do Brasil, 26/03/04
‘O filme de Gibson não é maldoso, mas malicioso. A sutileza de suas colocações não deveria passar desapercebida mesmo do público que se emociona com cenas deste episódio que, mais do que a teologia de uma tradição, integra o inconsciente coletivo de todo o Ocidente.
Na proposta de reproduzir a versão mais apaixonada dos Evangelhos, Gibson acabou realizando um filme com nuances sádicas e perversas. Dissimulada na arte de focar detalhes, revela o fetiche comum aos fanáticos: transformar o detalhe em fundamento e o fundamento em detalhe.
A verdade é que o filme e seu diretor são uma profunda metáfora sobre o mundo de hoje e a mensagem de Jesus. Jesus era um ser amoroso e não um ser apaixonado. A paixão percebe a vida como uma rede de posses, traições, intrigas, violências e idolatrias. Lá entre os judeus (os únicos no cenário além dos órgãos de dominação e repressão romanos) haviam apaixonados e amorosos. Quer a versão dos Evangelhos na qual se baseia Gibson que os amorosos virariam cristãos e os apaixonados, responsáveis pelas violências, continuariam judeus. Não é bem assim.
O mundo hoje se divide entre os fundamentalistas (apaixonados) e os amorosos. Os fundamentalistas não são os muçulmanos. Os amorosos e apaixonados estão em qualquer grupamento humano. Há, por exemplo, muitos fundamentalistas apaixonados na América. Bush é um apaixonado e representa uma visão americana que não está na Nova York atacada, mas no Cinturão Bíblico do interior americano, que, apaixonado, tenta animar sua vidinha Dogville. E de lá surge Gibson que, tal como os fundamentalistas de todas as religiões, é um apaixonado por suas verdades. Fundamentalistas estes que estão prontos a grandes batalhas não por amor e nem sequer por ódio, mas por paixão.
Mel Gibson é um apaixonado. Sua obra é apaixonada. Partes da Igreja que não denunciam aspectos reacionários do filme, fazendo pouco do amoroso João 23, são nitidamente apaixonadas. A paixão já matou e continuará matando em nome do amor.
Jesus meu irmão de religião e meu companheiro de fé num ser humano amoroso: a arte do detalhe como fetiche e a arte da paixão como fanatismo de Mel Gibson, corrompem a essência de tua mensagem.
Perdoai-o porque, como crente, em meio a sua paixão, não sabe o que faz.
Já como homem de mídia, sabe muito bem.’