O capitalismo que entrou de modo avassalador nos últimos anos do século 20 vem se instalando em medida ainda mais radical nos corações e mentes deste início de novo milênio. Na bagagem, trouxe o que havia de pior do século 19 e que vem sendo atualizado como questões de pertinência. Exemplos que têm se mostrando eficazes são Gobineau e a tese da raça como marca sociopolítica-econômica, e Malthus e o princípio do controle demográfico pelo extermínio da população, ambos tendo como pano de fundo a noção de escassez, fundamental para a sobrevivência do sistema baseado na acumulação privada e individual da riqueza, principalmente a pública.
O hábil capital proclama nos meios de comunicação que estão se esgotando as reservas de todos os bens necessários à sobrevivência do ser humano no planeta e o responsável por essa escassez é a superpopulação. Assim como, também, é a causa da miséria, da pobreza e, ‘conseqüentemente’, da violência. O geógrafo Milton Santos sempre disse e repetia que esse mundo é muito grande para apenas seis bilhões de habitantes. São muitas terras e possibilidades, infelizmente apenas nas mãos de poucos. Muito poucos para quererem ser os únicos proprietários da Terra e, por isso mesmo, os mais empenhados em concentrar as finanças nas próprias mãos.
No golpe da escassez, esses senhores vão se apropriando inteiramente do que poderia e deveria ser distribuído e compartilhado. E é nesse trambique semiológico engendrado pelos que concentram o capital que entra a política do controle da natalidade como alternativa para o problema social com que ricos e remediados têm sido obrigados a conviver. A classe média é a primeira a militar em favor da importância da medida, poupando mais uma vez os ricos da baixaria de botar a mão na massa por uma causa que só a eles interessa. Então, a classe média alardeia que tem poucos filhos porque é inteligente, bem-informada e, quando comete um descuido, tem acesso a processos seguros, embora ainda ilegais, de interrupção de gravidez.
A classe média não se pensa como covarde e senhora de um pragmatismo conservador. Não passa pela nossa cabeça, de classe média, que estamos abrindo mão do nosso direito para facilitar o nascimento dos riquinhos. A classe média acha que o pobre é ignorante porque não pára de botar gente no mundo. Efetivamente, os pobres ignoram os ricos no sentido de que não estão nem aí para eles, e a classe média parece morrer de inveja desses pobres que trepam sem medo de gerar vida, mesmo sabendo pela experiência o quanto ela é dura e difícil de enfrentar.
Pervertidos são os outros
Na contenção da classe média consumidora da escassez, os ricos também depositam as suas esperanças para controlar a pulsão vital dos desvalidos. E na pessoa do Dr. Dráuzio Varella, eles, os ricos, têm encontrado um poderoso aliado. O médico que ficou famoso escrevendo livro agora se ocupa de propagar o método de laquear as trompas. Ele já tinha lançado essa perspectiva como um balão de ensaio na Festa Literária Internacional de Parati, de 2004, para um público ainda encantado com Estação Carandiru e ávido pela sua nova criação. Estava tão imbuído da missão de salvar os necessitados da miséria, pela via da exclusão pela raiz, que chegou a negar a existência da Benfam, entidade estadunidense que nos anos 60/70, com permissão da ditadura, praticou a laqueadura no Brasil entre a população pobre e de baixa renda.
Dr. Dráuzio chegou ao Fantástico, um dos programas de maior audiência popular da TV Globo, com sua idéia de laquear e acabar, para sempre, com a possibilidade de uma mulher pobre conceber. A partir de então, as Marias estarão concebidas para ser pobre e nunca mais mãe. A falácia da escassez que já esterilizou a classe média agora quer alcançar as presas mais resistentes.
A cruzada do Dr. Dráuzio encontra eco e ressonância. No Sem Censura, programa de boa audiência em rede nacional da TVE-Brasil, o empenho do profissional foi saudado como uma iniciativa de relevância para o país.
Nenhuma crítica. Só aplausos para o Dr. Dráuzio. Não se pergunta sobre outras saídas para o problema da população desassistida que nasce sob um céu que já não a protege mais. Uma solução seria virar o refletor para o plano que discute a acumulação das riquezas que pertencem a todos nós, mas está nas mãos dos mesmos poucos, o que passará necessariamente por políticas públicas que contemplem pobres, remediados e ricos, e não só apenas os ricos.
A atitude do Dr. Dráuzio se assemelha à do detetive-personagem de Edgar Allan Poe que nunca consegue resolver os crimes porque tem por hábito ‘negar o que é e explicar o que não é’. Um modo de criar Frankensteins, o Mr. Hyde que Dr.Jekill inventou para agir sem limites e difundir a idéia de que pervertidos são somente os outros.
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Jornalista