“Este jornal divulgou na edição do passado dia 24 de Janeiro uma notícia que viria a ser desmentida dois dias depois. Sob o título ‘Assunção Esteves omite no TC contas bancárias’, afirmava-se nesse texto que ‘nenhuma das declarações de rendimentos que a actual presidente da Assembleia da República entregou no Tribunal Constitucional desde 1998 contém informações sobre as suas contas bancárias, como é exigido taxativamente pela lei’. Especificava-se que a alegada omissão abrangia qualquer tipo de contas bancárias,’a prazo ou à ordem’. A ser verdade o que se escreveu, estaríamos perante uma situação grave de incumprimento da lei pela segunda figura do Estado, alguém que, como se recordava repetidamente no texto, fora já ‘juíza conselheira do próprio TC’.
Acontece que não era verdade. No dia 26, o PÚBLICO acolhia, ao abrigo do direito de resposta, uma nota do gabinete de Assunção Esteves, na qual se explicava que a presidente do Parlamento ‘não omitiu, nas suas declarações ao TC, contas a prazo, porque simplesmente não é titular de nenhuma’, e também ‘não omitiu (…) informação relativa às suas contas à ordem, porque essa informação só é exigida por lei quando essas contas são de valor superior a 50 salários mínimos’ e as suas contas ‘nunca atingiram esse montante, por serem todos os meses drenadas para o pagamento de empréstimos’. A nota de resposta esclarecia ainda que, antes de 2010, a declaração de contas à ordem, qualquer que fosse o seu valor, não era sequer exigida, e por isso estas ‘nunca figuraram’ nas suas declarações mais antigas. E concluía, com razão, que o jornal publicara ‘informação falsa, que induz os leitores em erro’.
Pelo que apurei, o PÚBLICO conformou-se com o teor do desmentido e por isso não voltou ao assunto. Mas não reconheceu o erro com clareza na Nota da Direcção que a 26 de Janeiro foi publicada junto à resposta do gabinete de Assunção Esteves, nem apresentou desculpas pela acusação infundamentada que fizera. O que é sempre censurável e pode objectivamente ser lido como uma forma de continuar a induzir em erro os leitores, deixando a pairar a dúvida sobre a lisura de procedimentos da visada, que erradamente questionara.
Convém frisar que Assunção Esteves, contrariamente ao que seria de esperar, não foi ouvida sobre a matéria antes da publicação da notícia. No último parágrafo do texto que viria a ser desmentido, a sua autora, a jornalista Maria Lopes, assegurava que o jornal ‘questionou’ a presidente da AR, tendo o seu gabinete informado que ‘não seria possível responder durante o dia de ontem [2ªfeira, 23de Janeiro]’. Também esta afirmação foi contrariada ao abrigo do direito de resposta. Segundo o referido gabinete, oPÚBLICO não manifestou ‘interesse em contactar directamente com a presidente’, apesar de esse contacto ter sido ‘disponibilizado’ às 22h00 do dia 23. Na nota que publicou a 26, a direcção do jornal, reconhecendo que ‘a assessora da presidente da Assembleia da República entrou em contacto com a jornalista às 22h00’ da véspera da publicação da notícia, argumentou que nessa altura ‘a página já estava fechada, não sendo possível introduzir qualquer alteração’.
A explicação não me parece defensável. Procurei investigar o processo de produção da notícia, e passo a resumir o que pude apurar. As declarações de rendimentos de Assunção Esteves foram consultadas na redacção do PÚBLICO, tendo a jornalista e a sua editora concluído, à luz de uma interpretação errónea da legislação, que a presidente da AR não cumprira as suas obrigações legais. Dessa conclusão decidiram fazer uma notícia. O modo como a partir daí foi ou não procurado o indispensável contraditório — e na minha opinião não o foi, pelo menos com o esforço exigível — é um exemplo de práticas jornalísticas no mínimo duvidosas.
De acordo com uma cronologia documentada dos factos que pude obter junto do gabinete da presidente daAR, um primeiro contacto do PÚBLICO foi feito às 17h28 do dia 23, através de uma mensagem de correio electrónico que Maria Lopes fez chegar a um endereço destinado naquele gabinete ao correio dos cidadãos, utilizado diariamente por um grande número de pessoas que escrevem à presidente da Assembleia sobre os mais diversos temas. Nessa mensagem, a jornalista pedia a Assunção Esteves para ‘clarificar a razão’ pela qual não declarara ao TC ‘quaisquer contas bancárias a prazo ou à ordem’. E acrescentava: ‘Estou a escrever o artigo para publicar amanhã’. Cerca de dez minutos mais tarde, a jornalista contactou telefonicamente o secretariado do gabinete, a pedido do qual reenviou a sua mensagem para o endereço adequado, às 17h41. Seguiu-se novo telefonema, tendo a secretária informado, segundo me foi explicado, que ‘iria tentar entrar em contacto com a assessora de imprensa ou com a própria presidente’.
Quando, algumas horas depois, a referida assessora — que, tal como a presidente, não foi entretanto pessoalmente contactada pelo jornal — informou Assunção Esteves do pedido feito pelo PÚBLICO, recebeu da presidente da AR a indicação de que a jornalista poderia contactá-la directamente, para esclarecer a questão colocada. Segundo me explicou, foi isso mesmo que transmitiu à jornalista pelas 22h00, tendo recebido a resposta de que ‘já era tarde’ para o fazer nesse dia, pois ‘já tinha saído da redacção’. Em mensagem que me fez chegar no passado dia 3, Maria Lopes sustenta neste ponto uma versão diferente: ‘Expliquei que àquela hora a página já estava fechada há quase uma hora e que me era impossível mudar alguma coisa. A assessora não disse que a presidente estava disponível para falar naquela altura’. Por mim, registo que a informação sobre a disponibilidade de Assunção Esteves para ser ouvida ainda no dia 23 consta do texto publicado a 26 ao abrigo do direito de resposta, e não foi então contraditada na nota da direcção do jornal.
Quem tenha tido a paciência de seguir até aqui a reconstituição do processo de produção da notícia terá já compreendido como, por trás de um caso de má informação (para dizer o mínimo) estão sempre falhas mais ou menos graves no plano dos procedimentos profissionais. Neste caso, existiu em primeiro lugar o erro de dar por certa uma leitura errada do regime legal em vigor sobre o controlo público dos rendimentos dos titulares de cargos públicos. Essa leitura deveria ter sido questionada em tempo útil. Como reconhece a editora de Política, Leonete Botelho, ‘nem os juristas por nós consultados a posteriori, nem mesmo o Tribunal Constitucional’ corroboram a leitura do articulado legal que foi feita na redacção do PÚBLICO. ‘Este caso’, conclui a editora, ‘recorda-nos que a interpretação das leis deve ser testada melhor pelos jornalistas antes de dar por adquirida qualquer interpretação feita na pressão noticiosa do dia’.
A referência à ‘pressão noticiosa’, aqui referida com propósito, é no entanto demasiadas vezes invocada para tentar justificar erros na verdade injustificáveis, como os que foram cometidos na elaboração e divulgação desta notícia. Nas explicações que recebi, surge na conhecida modalidade da ‘pressão do fecho’ do jornal. Por mim, aconselho os leitores a encararem sempre com algum cepticismo o recurso frequente a justificações do tipo ‘a página já estava fechada’.
Neste caso, o que aconteceu foi que se avançou para a publicação de uma notícia sem que tenham sido efectuadas todas as diligências necessárias e adequadas para a sua confirmação ou para assegurar o contraditório. Pior, o PÚBLICO teve a possibilidade de ouvir a pessoa visada por uma acusação e não o fez. Se o tivesse feito, a jornalista teria eventualmente compreendido que o texto que já escrevera não correspondia à verdade, ou, pelo menos, teria motivo para fundadas dúvidas sobre se deveria ser publicado nos termos em que o redigira, e para partilhar essas dúvidas com os responsáveis editoriais que já tinham a página ‘fechada’. O atraso resultante de a reabrir — para alterar o texto ou, mais prudentemente, para adiar a sua publicação — seria sempre preferível a um desmentido.
Não se compreende, aliás, que urgência poderia justificar que tivesse de ser publicada precisamente naquela data, com sacrifício das regras profissionais e sem esperar por uma explicação que fora pedida, uma notícia que — erros de interpretação à parte — se limitava a divulgar dados que são de acesso público, e que se encontravam à disposição de qualquer interessado. E não é aceitável que o PÚBLICOalegue que vai ‘publicar amanhã’ uma notícia para tentar impor seja a quem for um prazo de poucas horas para obter uma resposta, independentemente da sua disponibilidade, prioridades e até do tempo razoável para consultar documentação respeitante a mais de uma década. Não é sério e não é, a meu ver, um modo leal de fazer jornalismo.
Este tipo de procedimentos provoca sempre estragos. Antes de mais, a quem é visado por acusações infundadas, que os desmentidos nunca podem totalmente reparar. Como nota Assunção Esteves, num comentário que me fez chegar (ver em blogues.publico.pt/provedordoleitor),’como nos acidentes com crude no mar, há sempre uma parte da mancha poluente que não consegue ser recolhida, e fica a semear os seus danos’. Piores ainda, na perspectiva de um jornal, são os estragos auto-infligidos, na medida em que prejudicam, para voltar a citar a presidente da Assembleia da República, ‘o legítimo e necessário papel de vigilância de uma imprensa livre, contra os abusos e as ilegalidades de quem, na vida pública, possa abusar da confiança que nas suas mãos foi depositada’. Casos como este contribuem, de facto, para descredibilizar o indispensável escrutínio jornalístico sobre o cumprimento de obrigações legais por parte de titulares de cargos públicos.”