Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As questões legais e jurídicas das rebeliões

É muito oportuna a publicação deste livro, que pretende desfazer o mito do brasileiro cordial. De fato, isto já havia começado a ser feito por Darcy Ribeiro em seu livro O povo brasileiro, que também tive a oportunidade de resenhar (ver aqui). Mas ao contrário deste livro, organizado por Monica Duarte Dantas, a obra de Darcy Ribeiro não tinha como tema central as revoltas, motins e revoluções, e sim, o processo histórico, cultural, sociológico e antropológico de formação do povo, dentro do qual os incidentes abordados no livro Revoltas, motins e revoluções não foram os fatos mais importantes.

Na abertura do livro, a organizadora trata das questões legais e jurídicas referentes aos incidentes. “Os três primeiros movimentos abordados no presente livro ocorreram todos ainda quando da vigência do livro quinto das Ordenações Filipinas, enquanto os restantes não só terminaram (como eclodiram) após a promulgação do referido Código [Código Criminal do Império de 1830] (que deixou de vigir já na República, em 1890).”

Esta é uma discussão oportuna, pois contar a história dos conflitos que chacoalharam politicamente o país no passado deve implicar, necessariamente, a lembrança de que os mesmos foram enfrentados dentro de um determinado contexto jurídico. O Estado colonial e imperial reprimiram os revoltosos em nome da Lei. Injustas ou não, as represálias contra os movimentos em questão foram legitimadas pela lei que estava em vigor. E este é um aspecto que Darcy Ribeiro nunca se deu ao trabalho de analisar, nem tampouco considerou importante tamanho era o seu desprezo pelos portugueses que aqui chegaram numa feia tarde de verão (como ele dizia).

Não compete ao Estado

A primeira coisa que chama a atenção em relação ao movimento de 1817, em Pernambuco, contra o príncipe regente, é a afirmação do autor de que vários oficiais foram reunidos para “deliberar das providências a serem tomadas para evitar sua eclosão”. Mais adiante analisaremos esta questão com cuidado. O autor do texto, Denis Antonio de Mendonça Bernardes, fez um excelente inventário do conflito, bem como da historiografia do mesmo:

“É quase geral, entre os que escreveram sobre 1817, sejam os que fizeram alguma pesquisa mais ou menos original, sejam os que são apenas divulgadoras de um saber de segunda mão, a ideia de que a participação popular na revolução foi, quando existente, mínima, sem grande importância ou, quando impossível de ser negada, teria permanecido como caudatária da direção dos senhores ou da elite dominante.”

Infelizmente, ele preferiu não dar a devida atenção à afirmação que fez logo no início de seu texto e que foi por mim reproduzida. A reunião dos oficiais para “deliberar das providências a serem tomadas para evitar sua eclosão” é um fato importante e tem implicações jurídicas inegáveis. O que deve fazer um Estado: punir o crime que ocorreu ou impedir que o crime ocorra? Este dilema já esteve presente em alguns sistemas jurídicos. A questão é pertinente e até já rendeu bons filmes, como Minority Report, de Spielberg.

No sistema jurídico brasileiro atual, punimos o fato criminoso, mas não a intenção de cometer um crime. Portanto, atualmente não compete ao Estado impedir que o crime ocorra. Isto eventualmente pode ocorrer em consequência do policiamento ostensivo, mas o sistema jurídico se contenta em punir o crime que ocorreu (quer este tenha produzido um resultado, quer seja um crime de mera conduta).

“Messiânicos e milenaristas”

Como o sistema jurídico da época tratava a sedição política foi o tema abordado no início do livro pela organizadora. Mas o autor do texto sobre a rebelião de 1817 não se deu ao trabalho de avaliar a legalidade ou não desta reunião dos oficiais, que tinha por finalidade prevenir a eclosão da revolta. Por óbvio, ficamos sem saber se a tal reunião foi ou não legal e qual seria a consequência de sua ilegalidade. Neste aspecto, o capítulo incorre no mesmo tipo de abordagem que foi feita por Darcy Ribeiro, apesar de o autor ter procurado esclarecer como funcionava “o aparato judiciário que pesava sobre o conjunto da população”.

Alguns podem até dizer que a legalidade ou não da reunião dos oficiais em 1817 para prevenir a eclosão da revolta é irrelevante (talvez até seja). Mas é inevitável lembrar que o golpe de 1964 foi dado, segundo disseram os militares, para prevenir o golpe comunista que estaria sendo planejado por João Goulart e seus aliados. A “prevenção da sedição”, portanto, é um elemento comum aos dois eventos. Em 1817, as primeiras sementes culturais de 1964 estavam sendo plantadas e isto exigiria uma atenção maior ao fato por parte do historiador.

O capítulo seguinte, sobre a expedição ao Reino da Pedra Encantada do Rodeador, em 1820, lança luz sobre um fato pouco conhecido. Nunca o vi mencionado num livro de história brasileira usado na escola pública. Os “aspectos messiânicos e milenaristas”deste foco de sedição em Pernambuco parecem ter algumas características semelhantes com o que ocorreu em Canudos décadas mais tarde.

A participação popular

Guilhermo Palácios faz uma análise profunda do incidente e de outros correlatos que ocorreram no mesmo período e província, como os “bandos chefiados por José de Barros e o ‘club do Boique’, compostos cada um por perto de quinhentos homens fortemente armados…” E nos dá uma chave para tentar entender como e por que a repressão estatal sempre se deu de maneira duvidosa. Diz o autor:

“De fato, a semelhança na descrição textual do descobrimento e destruição das quadrilhas de assaltantes com o achado e destruição da comunidade do Rodeador é sintomática porque repetitiva e nulificadora de qualquer diferença, pois iguala situações que foram empiricamente incomparáveis e produz como reflexo do imaginário dos representantes do Estado a visão de uma identidade formal e irrefutável entre bandidos e livres pobres. A identificação de ambas as situações é absolutamente linear no discurso do poder do Estado: as quadrilhas de assassinos e assaltantes tinham acabado de ser destruídas, disse Luís do Rego ‘e ainda as tropas se não tinham recolhido á capital quando soube do ajuntamento do Rodeador’; assim, concluía o governador ‘no deixei de julgar provável que fosse parte, ou destacamento do grande bando de salteadores, que eu mandei perseguir, e que se dizia comunicar-se com diversos’. As linhas entre a liberdade e o crime eram, de fato, extremamente tênues na sociedade escravista.”

Esta é, sem dúvida, uma abordagem bem mais abrangente e sofisticada que aquela feita por Denis Antonio de Mendonça Bernardes. Guilhermo Palácios avaliou não só a ação do Estado, mas também como esta distorceu a cultura jurídica da época para impedir o surgimento de qualquer tipo de liberdade pública que não fosse submetida brutalmente ao poder do governador da província. Em Canudos este mesmo tipo de distorção voltaria a ocorrer quando nordestinos construíram um aldeamento e se retiraram deliberadamente da influência dos latifundiários e controle dos poderosos do entorno.

O livro traz ainda textos interessantes e elucidativos sobre a Confederação do Equador, Cabanada, Guerra dos Farrapos, Sabinada e vários outros motins e sedições ocorridos durante o Império. No final, Monica Dantas explica como e por que estes movimentos ajudaram a construir a nacionalidade brasileira. A novidade, segunda a autora, não é o estudo destes movimentos, mas a tentativa de “recuperar e aprofundar o entendimento da participação popular nestes episódios.”

O mito do brasileiro cordial

Um bom livro, sem dúvida alguma. A autora o inicia com uma análise formal e jurídica e o finaliza esclarecendo que o enfoque principal da obra foi a participação popular nas revoltas, motins e revoluções.

“A inversão do foco, ao se colocar a participação popular, em cada um dos movimentos, em uma espécie de lupa historiográfica, permite entender aparentes contradições – dentro e entre os movimentos –, processo fundamental para que a experiência, expectativas e resoluções de homens livres pobres e libertos possam ser compreendidas a partir de sua própria inserção social, de suas realidades e problemas; sem que se confunda tais especificidades com lutas aguerridas pela manutenção, pura e simplesmente, de um status quo ante ou, mais ainda, como a defesa de vivências descoladas das transformações mais amplas pelas quais passava o país. Como parte da sociedade no interior da qual o Estado estava sendo construído, estes homens se mobilizaram e agiram tendo em vista valores e instrumentos próprios à sua inserção social, mas também se apropriando de valores e instrumentos novos que estavam sendo construídos a partir da organização de um regime que se queria monárquico, constitucional e representativo.”

A tensão entre o enquadramento jurídico dos fatos e estes mesmos fatos percorre toda a obra. O livro, portanto, abrange não só a história dos motins, revoltas e revoluções, mas o tratamento jurídico dispensado aos fatos narrados. Em alguns momentos, a obra dá a entender ou deixa claro que preconceitos jurídicos motivaram ações governamentais infames (como a repressão ao Reino da Pedra Encantada do Rodeador).

O livro não trata, entretanto, de como nasceu o mito do brasileiro cordial, como ele se liga ou não ao mito do bom selvagem de Rousseau e que importância histórica este mito fundador tem desempenhado na história. Este, certamente, é um tema para outro livro que já aguardo ansioso.

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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]