Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carlos Heitor Cony

‘Final da noite de 31 de março, minutos iniciais de 1º de abril. Apesar de ter recebido um ofício do ex-chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, comunicando ao Congresso que o presidente da República se achava em território nacional, a caminho do Rio Grande do Sul, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, que fora previamente derrubado por Goulart da chefia de um governo no regime parlamentarista, tomou a iniciativa de declarar vaga a Presidência da República.

Na forma da lei, convocou o presidente da Câmara de Deputados, Ranieri Mazzilli, para assumir o governo. Acompanhado de alguns deputados, Mazzilli dirigiu-se ao Palácio do Planalto, sede do governo, que estava fechado e às escuras. A caravana teve de entrar pela garagem.

Conta Luís Viana Filho, que seria chefe da Casa Civil do primeiro governo militar, em seu livro sobre o governo Castelo Branco, que nenhum funcionário do palácio foi encontrado para acender as luzes, nem havia ninguém que soubesse onde ficavam os registros elétricos. A turma ia acendendo fósforos e isqueiros, à medida que avançava até o gabinete presidencial.

Um historiador parcial dos acontecimentos poderia classificar aquela forma de tomar o poder como um assalto, mas tudo era legal, ali estava o presidente da Câmara que fora convocado pelo presidente do Congresso para assumir a Presidência declarada oficialmente vaga da nação. Conta ainda Luís Viana Filho que, ao acender um dos fósforos, no meio dos deputados brasileiros que acompanhavam Mazzilli, descobriu ‘um jovem secretário da Embaixada americana -Robert Bentley’ (Luís Viana Filho, ‘O Governo Castelo Branco’, José Olympio, 1975, pág. 46).

Só não houve mais confusão porque era impossível haver situação mais confusa. O governo caíra sem resistência, os revoltosos tinham esboçado estratégias e táticas para combates que não se verificaram, os mais otimistas esperavam que os movimentos de tropas durassem até 48 horas.

Enquanto isso, haveria tempo para o tabuleiro melhor se arrumar. Mas, apanhados de surpresa, militares e civis que vinham conspirando há tanto tempo não tiveram tempo para esboçar uma logística. A decisão de Moura Andrade, declarando vaga a Presidência, dera aparente continuidade legal ao país. E todos sabiam que a posse de Mazzilli não era para valer e muito menos para durar.

Legiões vencedoras

Se fosse obedecida a tradição dos fastos guerreiros, ao vencedor seriam dadas as batatas, vale dizer, o poder. Mas, em certo sentido, agora eram vencedores e não havia batata suficiente que desse para tantos.

Pela ordem, o principal guerreiro era Mourão, que chegou ao Rio à frente de suas tropas e, não encontrando nada para tomar, tomou o estádio do Maracanã, onde mandou que seus soldados acampassem e fruíssem a vitória. Nos tempos do Império Romano, um general que chegasse a Roma à frente de suas legiões vencedoras, teria direito a um triunfo, um desfile monumental com o respectivo arco de mármore.

Mourão não teve nada disso. Foi mesmo de jipe, enlameado pela estrada União-Indústria, ao Ministério da Guerra, que julgava acéfalo, ou com um ministro qualquer nomeado nas vascas do governo deposto. Encontrou um novo e já definitivo ministro da Guerra, que àquela hora da madrugada estava dormindo numa das salas do sexto andar.

Mourão invocou sua autoridade de chefe, que chegava vitorioso ao fronte, e ordenou a um coronel que fosse acordar o ministro posto em sossego. Cinco minutos depois, desgrenhado pelo sono interrompido, abotoando a túnica, apareceu Costa e Silva, muito amável, agradecendo tudo o que Mourão havia feito pelo bem da pátria. Mourão esperava proferir alguma frase solene que se tornasse histórica, mas não havia clima. Segundo narra em suas memórias, ‘o ambiente era péssimo. Camas de campanha encostadas umas nas outras. Um cheiro ruim de homens em fim de jornada, misturado com o de cigarros apagados’ (…) ‘um ambiente malcheiroso, militares estremunhados, de barba por fazer, sem escovas de dentes’ -enfim, a platéia não merecia presenciar um grande lance que se incorporasse à história.

Para piorar o seu humor, Costa e Silva deu-lhe a fatia do bolo em hora imprópria e em tamanho de migalha. Para se livrar de Mourão o mais rapidamente possível, o recém-ministro declarou que continuava a precisar dos valiosos serviços de tão bravo guerreiro ‘na presidência da Petrobrás’.

Foi dose. Esbodegado pelas emoções que vivera, Mourão engoliu em seco, ainda se lembrou de argumentar, não entendia nada de petróleo, nem botara suas tropas na rua para pleitear cargos. Contudo, seu desconfiômetro de mineiro o alertou: nada queriam com ele. Já haviam subido ao poder novos homens e nova classe.

No Posto 6, em Copacabana, desci à rua para encontrar Carlos Drummond de Andrade, que me esperava na esquina da Raul Pompéia com a Rainha Elisabeth. Fomos ver o que estava acontecendo ali perto, no Forte de Copacabana, tomado por militares que se levantaram contra o governo de João Goulart. Vimos um oficial da Marinha chutando um operário de obra vizinha que havia dado um grito a favor de Brizola ou Jango, não tenho certeza. Voltando para casa, escrevi minha crônica para o ‘Correio da Manhã’, iniciando uma série de textos que provocaram invasão e depredação de meu apartamento, tentativa de seqüestro de minhas filhas menores, processos, prisões, uma temporada no exterior como apátrida.

Alguns amigos pensavam que eu afinal abraçara um lado na luta ideológica do meu tempo. No ano seguinte, Tancredo Neves ofereceu-me um lugar na chapa de deputados federais do então MDB, que eu recusei. Quarenta anos depois, continuo me negando a qualquer participação pessoal na vida política do país. Como jornalista, mas sobretudo como ser humano, sempre que posso -e mesmo quando não posso nem devo-, sinto-me obrigado a proclamar a nudez do rei, de qualquer rei. Certo ou errado, cumpri uma obrigação para comigo mesmo.’



Janio de Freitas

‘O golpe inequívoco via telex’, copyright Folha de S. Paulo, 31/03/04

‘Em torno do meio-dia, era cedo ainda para o encontro marcado com o economista Gilberto Paim, um dos tantos egressos do Partido Comunista que, à época, ainda se identificavam com várias das posições nacionalistas e, digamos, progressistas. Nem havia muito o que escolher, era um lado ou outro, por maiores que fossem as ressalvas. Resolvi fazer hora conversando com Raimundo Wanderley Reis, era só entrar no Banco Nacional, ali mesmo na esquina de Ouvidor com Rio Branco, e subir ao quarto andar. Os amigos gostavam de saber as novidades de minha ocupação naqueles meses -estava montando um novo jornal. Encontrei Raimundo com ares mais confidentes do que nunca: me mostrou a cópia de uma mensagem que o encarregado do telex lhe contrabandeara, antes de mandá-la ao destinatário na direção do banco.

À 1h, Paim e eu entrávamos no Conselho de Segurança Nacional, que era a instância central no sentido então muito amplo de segurança e de nacional. Desde algum tempo, me interessara por estudar os processos de comunicação subliminar, ou seja, de apreensão sem plena consciência da própria apreensão, e, bem a propósito, a meio daqueles dias tumultuosos me soara um alarme. Espanhol que por anos viveu no Brasil e fizera algumas experiências de subliminar nos estúdios da (extinta) TV Rio, meu amigo Carlos Pedregal me procurara excitado por um fato estranho: fora contatado por um certo Enaldo Cravo Peixoto, que se mostrava interessado no assunto da subliminar. Mais do que integrante do governo lacerdista da Guanabara, Enaldo era participante do círculo extremado de Carlos Lacerda. Falei a algumas pessoas de quanto isso me deixou preocupado, e Gilberto Paim contatou um amigo do Conselho ao qual sugeria que eu alertasse. Era o caso, sem dúvida.

Fui sucinto e cauteloso. E não precisava ser mais do que isso: o coronel me ouvia com o misto de suficiência e indiferença de quem, autoridade, não tem a menor idéia do que está ouvindo, sequer parecia conhecer a palavra subliminar. Melhor assim, porque minha preocupação já era outra.

– E a rebelião em Minas, em que pé está, coronel?

– Rebelião?

– É. Rebelião militar.

Tinha certeza de estar tudo calmo, mas fez um telefonema.

– Falei com a Segunda Seção do Primeiro Exército [A Segunda Seção é a de informações]. Não há nada. Está tudo calmo.

– É melhor falar com outros também, coronel, porque há, sim. As tropas do Exército rebelaram-se em Belo Horizonte hoje de manhã e saíram dos quartéis.

Não imaginaria, jamais, ser necessário informar a principal instância da segurança nacional, o cerne do tão falado ‘dispositivo militar’ do Jango, de que o país estava sendo sublevado. Mas a caminho do elevador já levava todo o dramático sentido do que me dissera dias antes, melancólico e tenso, o coronel Donato Machado, talvez o mais lúcido militar dos que me tornei amigo: ‘Não há dispositivo militar nenhum, o Assis Brasil não montou dispositivo coisa nenhuma. A direita vai dar o golpe. E ganha’ [Assis Brasil, general chefe do gabinete militar da Presidência, era dado como articulador de um dispositivo imbatível, que levava o seu nome e só esperava ‘a direita pôr a cabeça de fora’, como ele dizia].

O golpe estava lá, claro, determinado, inequívoco, no telex em que Magalhães Pinto, governador de Minas, comunicava ao sobrinho e diretor-regional do seu banco, José Luiz Magalhães Lins, que a rebelião começara e deviam ser tomadas as providências convenientes. Semanas mais tarde, quando os militares contrários ao golpe começaram a sair da prisão, tive dos coronéis Donato, Joaquim Ignácio Cardoso, Kardec Leme e outros, a explicação para o alheamento do Conselho no dia 31: os oficiais do golpe usaram de diferentes artifícios para manter os oficiais pró-governo ocupados à distância de telefones, rádios e de outros colegas, enquanto fosse possível. Foi possível pela maior parte do dia. Mas de nada adiantaria estarem informados, porque o ‘dispositivo militar’ de Jango era só uma fantasia do general Assis Brasil, um militar de vida pacata que se deixara fascinar pelas tentações fáceis de Brasília.

A falta do ‘dispositivo’ não quer dizer que o golpe fosse incontível. O coronel Heitor Linhares, que descera com as tropas de Minas para o Rio, em narrativas a José e Maria Yedda Linhares e a mim, contava que os soldados debandaram, em pânico, pelas terras à margem da estrada, e foi difícil recompor a ordem. Tinham se apavorado com o aparecimento de nada mais do que um teco-teco da Líder Taxi-Aéreo, emissário de Magalhães Pinto para informá-lo da altura em que estavam os rebelados a caminho do Rio.

Foi a constatação desse estado da tropa, feita depois em um vôo a jato, que levou o coronel Ruy Moreira Lima, comandante do 1º Grupo de Caça, a uma proposta a Jango, quando lhe levou no Palácio das Laranjeiras o relato de seu vôo de observação: bastaria uma bomba lançada na estrada, à frente da tropa, para acabar com a rebelião sem ferir ninguém. Comandante da 3ª. Zona Aérea no Rio, o brigadeiro Francisco Teixeira, identificado como um dos militares ligados ao Partido Comunista, convenceu Jango a recusar a sugestão. Segundo o coronel Heitor Linhares, a soldadesca, quase toda já à espera de dar baixa do serviço militar, teria reagido como Moreira Lima previra.

Depressa me convenci de que a tese generalizada de mais uma intervenção rápida dos militares, como as tantas anteriores, daquela vez estava errada. Eles queriam ficar, portadores de uma carga de ódio sem precedente. Senti o dever sufocante de convencer Mário Wallace Simonsen (dono da TV Excelsior, da Panair e de um jornal em São Paulo, ‘A Nação’, que Cláudio Abramo e Roberto Gusmão tentavam recompor) de que não devíamos continuar com a montagem do novo jornal. O prédio esplêndido foi vendido, máquinas foram vendidas ou tiveram interrompida sua aquisição. Íamos associar a empresa de um empreendedor avançado e uma cooperativa de jornalistas, em torno de um jornal cujo modelo mesmo hoje seria inovador. Essa, porém, foi uma frustração insignificante, entre as tantas outras, inclusive de vidas, que militares facinorosos levariam sua ditadura a causar.’



Eliakim Araújo

‘Censura no JB’, copyright Direto da Redação (www.diretodaredacao.com), 31/03/04

‘‘Tempo negro, temperatura sufocante, o ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos’.

Essa sombria previsão do tempo foi uma das maneiras que os editores do Jornal do Brasil encontraram para ludibriar os militares-censores que tinham acabado de ocupar a redação, logo após a leitura do AI-5 na noite de 13 de dezembro de 1968, coincidentemente uma sexta-feira 13.

Aquela edição do JB é antológica e merecia até uma republicação pela sua importância histórica. Naquela época, ao lado da marca tradicional – Jornal do Brasil – no alto da primeira página, era publicada uma pequena janela com a previsão do tempo, de um lado. Do outro, uma quase despercebida manchete informava que ‘ontem foi o dia dos cegos’. Esses pequenos artifícios utilizados pela equipe davam bem uma idéia do clima em que se encontrava o país logo após o anúncio do AI-5, que decretou o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado e suspendeu todas as liberdades constitucionais, inclusive o instituto do habeas corpus.

A verdade é que os militares enviados para as redações não tinham a experiência necessária para atuar numa área tão especifíca como a redação de um jornal do porte do JB, ainda mais em hora de fechamento. Resultado: além da falsa previsão do tempo, eles não conseguiram detectar uma porção de ironias e mensagens contidas nas entrelinhas dos textos, fotos e legendas daquela célebre edição.

Pra você ter uma idéia, prezado leitor, as três fotos de primeira página foram escolhidas a dedo e valem mais pelas legendas do que pela imagem. A primeira mostra o general-presidente Costa e Silva na cerimônia de entrega de espadas aos novos guardas-marinha, e a legenda ‘tradição que se renova’. Na segunda, estão os ministros militares confraternizando-se numa festa em homenagem à marinha, com a legenda ‘identidade profunda’. Na última, uma foto que não tinha nada a ver com o momento político, onde aparece Garrincha, ao ser expulso no jogo contra o Chile na Copa de 62, com a legenda ‘hora dramática’.

Fora essas doces ironias, muitos espaços censurados foram ocupados por classificados, inclusive na primeira página, dando ao leitor a certeza de que o jornal estava sob intervenção e que o novo ato institucional dava ao governo militar ‘os instrumentos para fazer tudo o que o Presidente Castelo Branco deixou de fazer por timidez ou por compromisso democrático, nos dias quentes da revolução de março’, no sutil comentário do colunista do JB Carlos Castello Branco, na mesma edição do dia 14 de dezembro de 68. Ou seja, o AI-5 representou simplesmente o golpe dentro do golpe, como enxergam hoje alguns historiadores.

Na Rádio JB, a censura militar se instalou na mesma noite de sexta-feira. Já narrei aqui mesmo, em coluna anterior, as condições em que apresentei a edição de meia-noite e meia de ‘O Jornal do Brasil Informa’, daquela madrugada. Tive como platéia dentro do estúdio o Dr. Nascimento Britto, dono do JB, que descera para apresentar-nos o major fardado que estava se iniciando na improvisada tarefa de censurar noticiários da rádio e exatamente aquela edição era seu primeiro teste.

Depois desse período, que não durou muito tempo, a censura se dava através de comunicados que as redações do jornal e da rádio JB recebiam diariamente da Polícia Federal ou do Comando do I Exército. Eram proibições para se noticiar determinado assunto, às vezes até fatos que não eram do conhecimento do jornal.

Decidi resgatar um pouco desse período da imprensa brasileira, sobretudo depois que li a entrevista de Mino Carta garantindo que ‘o Jornal do Brasil nunca foi censurado’. Respeito algumas afirmações de Carta, mas nesse caso ele está enganado e induzindo o leitor a um erro histórico. O JB foi censurado sim, e os jornalistas que lá trabalhavam são testemunhas. Talvez, até, o JB tenha sido o mais prejudicado pelos governos militares. Primeiro, quando perdeu a concessão do canal de TV da antiga Tupi para a Manchete e depois, durante o governo Geisel, quando sofreu boicote econômico com a retirada de toda publicidade oficial, que representava uma boa fatia na receita da empresa.

Como Mino Carta afirma que a destruição da memória é algo que no Brasil se pratica com extrema habilidade, senti-me no dever de fazer esse flash back daquele momento histórico como forma de homenagear aquela geração de jornalistas do JB, liderada por Alberto Dines, pelo exemplo de resistência à censura e pela memorável edição do dia 14 de março de 1968.’



Daniel Piza

Nos livros, os muitos golpes’, copyright O Estado de São Paulo, 31/03/04

‘Um golpe político era uma idéia fixa em muitas mentes naqueles primeiros anos da década de 60. Estava presente na cabeça de João Goulart, Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Castello Branco, Costa e Silva e de inúmeros outros políticos e militares. Uma saudação comum entre jornalistas no período era ‘E então, qual é o golpe?’, tal a freqüência de bochinchos. O fim do governo Juscelino Kubitschek, com Brasília inaugurada e inflação disparada, misturava esperança e instabilidade em altas doses. Seu sucessor, Jânio, não parecia o mais sóbrio dos democratas, cambaleando entre discursos contra a suposta corrupção de JK e condecorações como a de Che Guevara – até que renunciou, aludindo a ‘forças ocultas’ e abrindo a porta aos golpistas.

Esse quadro fica evidente nos livros lançados e relançados neste ano (veja lista ao lado), que serão destacados pela Bienal do Livro de São Paulo que começa dia 15. O predomínio nos lançamentos é de perfis biográficos – como os de Jango e Castello – e relatos memorialísticos, em particular de guerrilheiros e marinheiros, além dos 4 pequenos volumes de Vozes do Golpe, de Carlos Heitor Cony, Zuenir Ventura, Luis Fernando Verissimo e Moacyr Scliar.

Em comparação com os 30 anos do golpe, a diferença é gritante. Em 1994, um dos poucos lançamentos relevantes foi Trinta Anos esta Noite, de Paulo Francis (Companhia das Letras; em reedição agora pela W11), também em tom memorialista. Agora são pelo menos 13 livros novos. Além disso, nos últimos anos ocorreu verdadeiro ‘boom’ de títulos sobre o tema, com destaque para os best-sellers de Elio Gaspari, que somam três volumes e terão outros dois (leia abaixo).

Os livros deste ano têm a vantagem relativa de se concentrarem nos anos anteriores ao ‘putsch’, os quais continuam não explicados o bastante; Jânio, principalmente, é a esfinge torta ainda por decifrar, pois o livro de Ricardo Azambuja narra suas ambigüidades e megalomanias, mas explica a renúncia por sua recusa à política conciliatória. Daí o destaque merecido por Jango – Um Perfil, de Marco Antonio Villa, que mostra como o afilhado político de Getúlio Vargas cresceu no vácuo sindicalista da esquerda e, eleito senador pelo PTB, terminou vice-presidente de seu adversário político, Jânio. Ao assumir a Presidência, lançou uma série de medidas demagógicas, sem consistência administrativa, alimentando a crise com discursos e lobbies.

Villa demole objetivamente um dos mitos ainda fortes na história do período, o de que Jango começava a construir um país melhor e foi uma simples vítima das circunstâncias. Lira Neto, por sua vez, tenta derrubar um mito oposto, ao mostrar em Castello – A Marcha para a Ditadura que o primeiro presidente do ciclo militar não foi apenas um legalista interessado em dar o golpe para reconduzir o Brasil à democracia e depois traído pelas artimanhas da linha dura de Costa e Silva. Segundo Lira Neto, Castello Branco, general e chefe do Estado-Maior do Exército no governo Jango, planejaria ser exonerado pelo presidente para poder justificar o golpe.

Assim como os livros de Gaspari, que revisou as figuras históricas de Golbery e Geisel – que também não foi o articulador benevolente da reabertura democrática que muitos imaginaram -, Villa e Lira Neto, ao usarem documentos inéditos e interpretações pessoais, comprovam o quanto ainda há por estudar. Isso sem mencionar as personagens menos importantes, como o general Peri Bevilacqua, ministro do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1965 e 1969, cujos documentos são reunidos por Renato Lemos em Justiça Fardada. Bevilacqua, que apoiou o golpe de 64, ajudou depois a impedir arbitrariedades contra opositores do regime como o advogado Sobral Pinto e o sociólogo Florestan Fernandes, até ser afastado pelo AI-5. O único lançamento mais propriamente analítico é Além do Golpe, de Carlos Fico, que comenta os diversos livros sobre o tema. Quanto aos de Gaspari, por exemplo, é crítico: acha que ele deu peso demais às decisões individuais dos presidentes do regime e atribuiu excessiva visão de ‘estadista’ a Geisel.

Já Flávio Luiz Tavares, em Vozes do Mar, defende a tese de que a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais não era uma instituição golpista que pretendia fomentar a derrubada de Jango; para o historiador, era uma agremiação de marujos discriminados e reprimidos pelo alta casta da Marinha. O mesmo é dito em forma de memórias militantes pelo fotógrafo Pedro Viegas em Trajetória Rebelde. Memórias militantes não faltam. Em O Baú do Guerrilheiro, de Ottoni Fernandes Jr., preso durante seis anos, e Uma Tempestade como a sua Memória, de Martha Vianna, militante da Ação Popular torturada e exilada, assim como no relançamento Tirando o Capuz, de Álvaro Caldas, guerrilheiro que sofreu nos porões do DOI-Codi, temos relatos que mostram a crueldade da repressão de modo tocante, sem deixar de mostrar a ilusão de poder – a ‘mística da guerrilha’ inspirada em Guevara – que os acometia.

O jornalismo é tema da historiadora Beatriz Kushnir em Cães de Guarda, que mostra como jornalistas profissionais se tornaram censores em seguida ao AI-5. Dentro das redações, eles trabalhavam para a censura e alguns até eram policiais. No extremo oposto, a reedição de O Ato e o Fato, de Carlos Heitor Cony, traz as crônicas mais importantes escritas por um jornalista renomado à época da ditadura. Crítico de Jango, a seu ver cercado por ‘certa esquerda oportunista e desonesta’, ele denunciou o golpe militar com melancolia e galhofa, abrindo com bisturi a farda do arbítrio. Em Revolução dos Caranguejos, Cony relembra esses atos e fatos e conclui: ‘Ainda não tive condições objetivas para compreender o que aconteceu comigo e com os outros.’

Zuenir Ventura também optou pela memória jornalística em Um Voluntário da Pátria, notando igualmente o voluntarismo dos que, como ele, não conseguiam ou não podiam enxergar a realidade do regime autoritário. Verissimo, em A Mancha, fez um conto sobre um ex-preso e exilado que se tornou especulador imobiliário e tenta fugir das lembranças dos anos de chumbo, ‘refugiado na burrice’ sem sucesso. E Moacyr Scliar, em Mãe Judia, 1964, entra nas angústias de uma mulher que vê seu mundo ruir quando o filho se envolve na luta armada. É uma demonstração de como, também na ficção, o passado do regime militar poderia estar bem mais presente.’