Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Briga de foice com martelo

Leio, em Carta Maior, reportagem da colega Najla Passos dando conta de que a proposta do governo para o novo marco regulatório para os meios eletrônicos de comunicação, rádio e TV, deve entrar em consulta pública nos próximos dias. Falta o aval da presidenta Dilma Rousseff, segundo o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo.

Se alguém, em devaneio súbito, imagina que vem aí algo semelhante à Ley de Medios da vizinha Argentina, que coloque as barbas ou a cabeleiras de molho. A palavra “regulação” dá urticária no governo, popular e democrático, quanto mais o “controle social da mídia”. Ou ele, governo, não entende lhufas do que seja controle social ou, o mais provável, finge de égua, como se diz lá em Minas.

A reportagem deixa clara a posição de Paulo Bernardo durante o Seminário Políticas de (Tele) Comunicações organizado pela Converge, na terça-feira, 14/02, em Brasília – também no Observatório pelo Direito à Comunicação. Em nada difere de seus pronunciamentos anteriores, e da própria Dilma, a respeito: não se vai regular conteúdo, “para isso existe o controle remoto”. Até as pedras sabem que não é bem assim. Cai-se no conto dos “donos” dos veículos – que são, na verdade, concessões públicas e, portanto, passíveis de regulação. A mídia nativa, em geral, acusa qualquer tentativa de norma como “censura”, mordaça, na propalada liberdade de expressão, convenientemente misturada com liberdade de imprensa.

Um cabo de guerra desigual

Liberdade de expressão para quem?, é o caso de perguntar. E a resposta não é outra: para ela, mídia, fazer o que bem entende, da maneira que lhe aprouver. No caso das TVs, taí o BBB e congêneres que não nos deixam mentir. Sem falar nas claras tentativas de desestabilização do próprio governo, que ajuda a sustentar a mesma mídia que o chantageia com farta verba publicitária. Nada como um círculo vicioso. Ocorre que o próprio ministro, que é o governo, se contradiz quando afirma que se respeitará, “estritamente”, o que está na Constituição. Ora, se for assim, vamos muito bem, ou menos mal.

A Constituição Cidadã, em seu Capítulo V, estabelece uma série de princípios que são, flagrantemente, desrespeitados pelos concessionários. Por exemplo: limitação a oligopólios e monopólios, artigo 220; finalidade educativa, cultural e informativa dos meios; regionalização e produção independente, art. 221; complementaridade dos sistemas estatal, público e privado de comunicação, artigo 223. Sem falar nos limites à participação estrangeira, que hoje é limitada a 30%.

Ainda que francamente favoráveis à visão mercantilista que impera na mídia, tais avanços foram resultantes da queda de braço entre o movimento social e os “donos” de veículos. Que se quedaram sem regulamentação nos 23 anos seguintes. Sem esquecer que, nessa luta, ficou pelo caminho o Conselho Nacional de Comunicação, de caráter deliberativo, regulador e de fiscalização. Em seu lugar, criou-se um conselho consultivo, ligado ao Senado, cuja regulamentação tornou-se novela sem fim. Naqueles idos da segunda metade dos anos 80, de um lado estavam a Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas – cuja direção esta escriba integrava – e entidades afins, de radialistas e telecomunicações; de outro a Abert – Associação Brasileira de Rádio e Televisão, principalmente. Cabo de guerra desigual no poder de força junto aos parlamentares-constituintes – o Observatório do Direito à Comunicação tem artigo detalhado a respeito, a propósito dos 20 anos da Constituição, em 2008.

História pra boi dormir

É briga de foice com martelo, desde sempre.

Perfeitamente expressa em uma das falas do ministro Paulo Bernardo no acima referido seminário, reproduzida na matéria do Observatório do Direito à Comunicação. Ele definiu o debate do marco regulatório como “espinhoso” porque mexe com um setor “forte economicamente, com faturamento de R$ 20 bilhões por ano, e forte socialmente porque seus serviços são extremamente populares”. Dá para entender os motivos de o anteprojeto de regulação, herdado do governo Lula, ter levado oito anos para se corporificar no papel. Até onde se sabe, ele incorpora decisões da I Conferência Nacional de Comunicação, que saiu a fórceps, após sete anos de pressão dos movimentos sociais. Mas, há de se crer, não fala em “regulação de conteúdo” – este palavrão inominável.

“Ouvi, pessoalmente, da boca do Franklin Martins (ministro da Comunicação Social do governo Lula), que ele se posicionava claramente contrário ao “controle social da mídia”, lembra Raquel Moreno, do Observatório da Mulher, integrante da Rede Mulher e Mídia, e estudiosa do assunto, com quem troquei ideias pelo correio eletrônico. Mesmo assim, o projeto deixado por Franklin Martins está engavetado há mais de um ano. Ainda que o atual ministro, Paulo Bernardo, tenha se comprometido, publicamente, a trazê-lo à luz para discussão até o fim de 2011. Por exemplo, no II Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, em Brasília, no final de maio.

Por outro lado, na imodesta opinião desta escriba, temos que dar a mão à palmatória. Nós, os defensores da comunicação como direito humano e, portanto, do direito à informação com qualidade e respeito individual e coletivo, à diversidade, pluralidade, equidade e à democracia. Neutralidade ou imparcialidade é história pra boi dormir, já que hoje baixou a mineirice. Infelizmente, a gente não tem conseguido traduzir a necessidade de regulação como bem essencial – da mesma forma que educação, saúde, terra, trabalho e liberdade – para além do nosso círculo. A despeito de sermos, em boa parte, comunicadores. E apesar do poder de amplificação da blogosfera e das redes sociais.

Alguém sugere alternativas?

Sem difusão pedagógica, sem atração popular para isso, fica difícil se contrapor ao pensamento do poder vigente. Nas palavras de Raquel Moreno, um poder que “demoniza” a expressão “controle social da mídia”, deliberadamente, fazendo-a confundir-se com “censura”. A postura do governo, eleito como popular, é exemplo da nossa impotência. E digo que mais: tomara, mas tomara mesmo, que eu esteja enganada. Vou comemorar ter que admiti-lo.

Mas, e aí, correr para onde? Recorro, uma vez mais, a Raquel Moreno, que responde de bate-pronto: “Aí, ficamos numa encruzilhada”, diante da qual:

“1) Ou rebatizamos a criança – a legislação de outros países designa ou justifica de forma diversa, chegando exatamente onde queremos, conforme a pesquisa que fiz – e aí não sei o que fazemos com o controle social da saúde e dos demais serviços públicos, que já existe de fato.

2) Ou insistimos na legitimidade da demanda e da designação. Ou nós (Movimento Feminista e Rede Mulher e Mídia), e o MST, e o Movimento Negro, e todos os movimentos sociais que se agregaram à luta pela democratização da mídia, junto com os profissionais da área, enfiamos a viola no saco e assistimos às discussões sobre os demais aspectos, mais afeitos às tecnicalidades – também políticas, é claro,mas que não nos pegam pelo âmago.

3) Ou insistimos na legitimidade da demanda e da designação.”

Alguém sugere alternativas?

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[Sulamita Esteliam é jornalista e escritora, autora dos livros Estação Ferrugem, Em Nome da Filha e o infantil Para que Serve Um Irmão]