Ainda não são conhecidas as características editoriais dos programas que a TV Cultura de SP, da Fundação Padre Anchieta, levará ao ar em parceria com a revista Veja e o jornal Folha de S.Paulo. O vínculo desses veículos com a emissora de TV pública, anunciados na mídia no início deste mês, entretanto, provoca a imediata associação sobre a oportuna afinidade político-ideológica entre os dois meios de comunicação privados e o governo do estado de São Paulo, que controla atualmente a Cultura.
O consórcio entre jornal e revista de posição política partidária declarada – Folha e Veja cultuam o PSDB – com a emissora que já foi modelo, no Brasil, de programação e formulação de políticas públicas em TV não comercial, pode colocar em xeque uma característica intrínseca à televisão pública, que é dar espaço (com qualidade) à pluralidade de vozes.
Para Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, professor de Jornalismo da ECA-USP, trata-se, esta parceria, de mais um golpe no papel da radiodifusão pública no Brasil. “Nós já temos uma mídia excessivamente concentrada, que praticamente tem uma visão única do mundo em geral e da sociedade brasileira, em particular, e cabe às emissoras públicas apresentar uma visão diferenciada, para permitir que o público possa, a partir dessas visões, formar sua opinião”, diz.
As parcerias com empresas privadas de mídia são um recurso comum e legal na estrutura das emissoras públicas, utilizado tanto para suprir uma carência de recursos financeiros – bastante recorrente nas TVs não comerciais –, quanto para abrir espaço à produção audiovisual independente, carente de veicular seu conteúdo.
O jornalista Gabriel Priolli, ex-coordenador de conteúdo da TV Cultura de SP, produtor independente de televisão, vê com naturalidade essas associações, mas pondera que, neste caso, a questão se apresenta complexa, porque o convênio envolve a programação jornalística com empresas da grande mídia justamente no momento em que há um grande debate a respeito do posicionamento político dos grandes veículos de comunicação. “Isso é preocupante, na medida em que significa uma terceirização de programação jornalística, o que é incomum em televisão em geral – mais ainda em TV pública. E, ainda, porque essa terceirização está focando em veículos que têm uma clara posição editorial e que não prezam exatamente pelo pluralismo e a diversidade”, reflete Priolli. Mas, diz ele, “só conhecendo o produto resultante vamos poder avaliar se vai decepcionar ou não”.
Priolli lembra que a TV Cultura teve, historicamente, parcerias às vezes simplesmente como cliente, compradora de programação, outras vezes parceria mesmo, como com a BBC, com a PBS, ou várias empresas de mídia provedoras de conteúdo, no âmbito da programação de entretenimento, cultural e eventualmente alguma coisa de documentarismo, no âmbito do jornalismo.
Conselho calado
O professor Lalo diz estranhar que até agora o Conselho Curador da TV Cultura tenha se omitido a respeito dessa programação. Ele salienta que a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, não é um órgão estatal, mas uma fundação de direito privado que juridicamente tem independência total em relação ao governo do estado. Portanto, seu órgão máximo, pela lei, é o Conselho Curador, sua última instância. “Esse conselho tem que se manifestar, legalmente ele tem que opinar sobre esse tipo de parceria. Acho que a sociedade, principalmente a sociedade paulista, que banca através dos seus impostos a Fundação, tem que cobrar do conselho uma posição em relação a essa privatização dos espaços públicos – porque isso nada mais é do que a privatização do espaço público”, argumenta.
Durante a semana, entretanto, conforme matérias publicadas pela Rede Brasil Atual, dois membros do Conselho Curador – o deputado paulista Simão Pedro e o presidente da União Estadual dos Estudantes, Alexandre Silva – declararam desconhecer a decisão acerca dos convênios (leia aqui).
Presidente da Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec) e diretor da TVE Bahia, o cineasta Pola Ribeiro também defende o sistema das parcerias entre as emissoras públicas e privadas – desde que preservada a coordenação editorial dos programas. “Aqui na Bahia [na TVE], a gente cobre o carnaval em parceria com outra TV privada, mas o controle editorial é nosso. Num caso mais demorado [grade de programação fixa], acho que seria necessário a constituição de um comitê que cuidasse da autonomia da TV em relação a esse conteúdo. Se for para ceder um espaço para produção jornalística de um meio privado, não acho um bom negócio”, avalia. Pola diz que entre as 19 TVs associadas à Abepec, há emissoras ligadas a governos do PSDB, do PV, PcdoB, do PT e que a entidade procura trabalhar com essas televisões no sentido do avanço da democratização das comunicações, da diversidade.
“Reestruturação” da emissora
Há um ano, em fevereiro de 2011, a RTV Cultura de São Paulo anunciava a demissão de 150 servidores, em mais uma decisão radical do presidente da casa, João Sayad, que já havia desmontado a sucursal em Brasília, entre outros atos batizados de “reestruturação”. A Frente Paulista pelo Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão (Frentex) publicava nota (leia aqui) de repúdio ao desmonte promovido pelo governador do estado de São Paulo. A TV Cultura teve um corte de mais de 50% do seu quadro funcional. “Evidentemente, com uma gestão tão agressiva em relação à mão-de-obra, os remanescentes não se sentem à vontade para externar pontos de vista”, avalia Priolli.
Para o professor Lalo, essas mudanças fazem parte de uma política mais geral do PSDB, que é justamente a de reduzir o papel do Estado em quase todos os setores da economia e da sociedade, abrindo espaços públicos para serem ocupados pela iniciativa privada. “É mais um passo de um processo que já vem desde o início dessa gestão Sayad, de reduzir a Fundação Padre Anchieta a dimensões quase irrelevantes – processo do qual fez parte a demissão de quase duas centenas de funcionários altamente qualificados, com mais de 20, 30 anos de casa”, reflete. Lalo destaca a dificuldade em formar quadros profissionais para a radiodifusão pública, como havia na TV Cultura, que “teve o desplante de jogá-los para a rua”.
“A TV Cultura de SP, durante muito tempo a TVE do RS, e agora a TV Brasil são lugares de formação de profissionais especializados em comunicação pública. O Estado investiu durante anos nesses profissionais e quando eles estão prontos, formados, e podem passar a formar outros quadros, são colocados na rua, dentro dessa política de privatização do PSDB”, ressalta Lalo.
Priolli salienta que o grupo que controla atualmente a TV Cultura de SP não participa do debate conceitual da televisão pública no país. Além disso, lembra, o PSDB deixou bem claro, no debate que fez sobre a criação da TV Brasil, que tem uma visão bastante crítica sobre a TV pública: “Eles acreditam que a televisão comercial brasileira dá conta suficientemente das necessidades do país, e que a TV pública é uma desnecessidade.”
De acordo com Priolli, o PSDB vem aplicando na Cultura a linha de privatização – no sentido de uma concepção de televisão comercial privada. “Ainda não propuseram a ideia de privatizar o patrimônio, mas já venderam uma parte enorme dele, têm a ideia de vender inclusive a sede física da emissora, terrenos. É uma perspectiva privatizante”, reflete. Contudo, salienta, quanto às novas parcerias, que num primeiro olhar parecem inadequadas e preocupantes, prefere aguardar para julgar pelos resultados.
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[Ana Rita Marini, do FNDC]