A Folha de S.Paulo publica na edição de quarta-feira de cinzas (22/2) reportagem de sua enviada especial à reunião da Associação Americana para o Progresso da Ciência, dando conta de que ainda neste ano será apresentado ao mundo o primeiro hambúrguer feito em laboratório. O texto, produzido em tom de almanaque de curiosidades, lembra a mais célebre “barriga” do jornalismo científico no Brasil, o famoso caso “boimate”, ocorrido em abril de 1983, quando a revista Veja publicou como sendo verdade uma brincadeira de primeiro de abril da revista semanal New Scientist, baseada em Londres.
No caso de Veja, houve um enorme equívoco provocado pelo fato de que o editor não conhecia a tradição da publicação científica de brincar com seus leitores no dia internacionalmente dedicado à mentira. O texto dizia que dois biólogos de Hamburgo, na Alemanha, haviam protagonizado um “ousado avanço da biologia molecular”, fundindo pela primeira vez células de animais com células vegetais – as de um tomateiro com as de um boi. “Deu certo”, celebrava a revista Veja.
A suposta sede da pesquisa, Hamburgo, e os nomes dos supostos cientistas, que remetiam às denominações de duas cadeias de fast-food, não foram suficientes para alertar a malícia do editor. O desmentido só veio após dois meses, depois que todo o resto da imprensa brasileira já havia transformado a “reportagem científica” em uma grande piada.
Questão central
No caso da Folha, não se trata propriamente de uma “barriga”, mas de um tema sério espancado por critérios controversos de edição.
O jornalismo científico é sempre um desafio para a imprensa diária, principalmente quando faltam profissionais qualificados, ou quando as redações se livram de seus especialistas.
O risco de transformar em mera curiosidade um tema controverso, sobre o qual pesquisadores dedicam eventualmente toda sua vida, se multiplica quando o próprio jornal que abriga esse material considera que precisa interpretar e traduzir a informação especializada nos mínimos detalhes.
A redução de custos eliminou das redações os jornalistas especializados, habituados à leitura de trabalhos científicos, e a busca da leveza faz o resto do desserviço.
A rigor, não há graves erros de informação na reportagem da Folha sobre as pesquisas em busca da produção artificial de carne comestível. Nos relatos oficiais, publicados no site da Associação Americana para o Progresso da Ciência, há referência a disputas entre entidades científicas pela precedência na definição do melhor método para alcançar esse objetivo.
Mas, ao se concentrar na concorrência entre os cientistas, o jornal acaba deixando de lado a questão central, que é a perspectiva de esgotamento da capacidade humana de seguir produzindo animais suficientes para abate nas próximas décadas.
Pensando no futuro comum
A reportagem sobre a busca do “hambúrguer de laboratório” afirma, por exemplo, que se trata de uma meta “inusitada”, quando se sabe que há grandes debates em conferências sobre a questão ambiental a respeito da necessidade de criar uma alternativa para as grandes manadas de gado como forma de suprir a necessidade de proteína da humanidade.
No mesmo encontro em que se divulgaram os resultados de estudos sobre a carne artificial foram relatados avanços na melhoria genética de vegetais e produção de alimentos em solos pobres e desérticos.
O centro dos debates entre os cientistas não é sobre quem produz o primeiro bife ou o primeiro hambúrguer a partir de células-tronco extraídas de músculo de boi. Trata-se de uma corrida para duplicar a produção mundial de alimentos até 2050, quando seremos cerca de 9 bilhões de seres humanos no planeta, porque já se sabe que, pelos métodos tradicionais de criação e abate, o risco de uma crise alimentícia global é quase certo.
Os métodos de pesquisa mais promissores, aliás, não passam por esse caminho, mas pela produção mais barata de proteína a partir de vegetais – que a Folha chama de “carne de soja 2.0”.
Não é função da imprensa alarmar seus leitores sobre os riscos de uma carestia no futuro próximo. Mas a divulgação de informações consistentes que ajudem a mudar os hábitos de consumo pode contribuir para a consolidação de uma nova consciência sobre a responsabilidade de cada pessoa na criação de um futuro comum mais auspicioso.