Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O bloco de Bloch

Era o sábado da semana anterior ao Carnaval. Renato Sérgio não via a hora de largar seu posto de redator da revista Manchete e ir confraternizar com a turma da Banda de Ipanema: o comandante Albino Pinheiro, com dragonas douradas; o escrivão juramentado Hugo Bidet e seu Corcel branco; o ator Joseph Guerreiro; o artesão Caio Mourão; Ronald de Chevalier, o encrenqueiro Roniquito.

Àquela altura – três da tarde – todos já deviam estar esquentando os motores na praça General Osório, e ele, ali, preso na redação. Foi quando o pior aconteceu: o diretor Justino Martins lhe entregou meia dúzia de leiautes, com fotos do baile “Noite do Havaí”, para que escrevesse o texto e as legendas.

Adeus, Banda de Ipanema – não fosse a intervenção do cronista José Carlos Oliveira, que se levantou da mesa ao lado, brandindo o leiaute feito uma arma apontada para o chefe. Carlinhos espalhou as fotografias, aos brados: “Eu faço essa bosta. Mas libera ele, pô!”

Sob aplausos, Renato Sérgio saiu correndo. Nos rescaldos da banda, reencontrou seu salvador Carlinhos Oliveira, bolsa hippie a tiracolo, em frente ao velho bar Jangadeiros. “Ajoelhei-me diante dele e fiz o gesto de beijar-lhe os pés. Então a gargalhada do Carlinhos ecoou por Ipanema inteira”, conta Renato Sérgio.

Tradição

Antes que alguém pense que Justino Martins atuava como um verdugo, é preciso dizer que, se havia algo sagrado na Manchete, era a cobertura de Carnaval. Em fevereiro de 1953, antes de completar um ano de circulação, saiu a primeira edição especial dedicada à festa, tradição que seria mantida por cinco décadas.

Informava que nos salões “havia muito brotinho parecendo show-girl e muita show-girl com ares de brotinho”. Para cobrir os desfiles das escolas de samba, das sociedades carnavalescas e a folia dos salões – do fogo alto do Baile dos Cafajestes, no Cassino Atlântico, aos sofisticados bailes do Theatro Municipal e do Copacabana Palace –, mobilizou oito fotógrafos e a redação “20 horas por dia”.

Dono de um império de comunicação (tendo a Manchete na comissão de frente), Adolpho Bloch, nascido na Ucrânia, em 1908, era louco por Carnaval desde os tempos em que, recém-chegado ao Brasil, assistia às batalhas de confete da rua Dona Zulmira, no rodriguiano bairro da Aldeia Campista.

Bloch viu no então chamado “tríduo momesco” a possibilidade de aumentar de 250 mil para 500 mil exemplares a tiragem da revista, desde que conseguisse ser o primeiro a chegar às bancas. Ou seja, na Quarta-Feira de Cinzas.

Armava-se uma operação de guerrilha envolvendo redação e gráfica. “Ficávamos dois dias e meio, sábado, domingo e segunda, trancados no edifício da rua do Russel, comendo sanduíche de pão com ovo trazido do botequim e vendo o sol nascer redondo e vermelho na baía de Guanabara”, lembra Roberto Muggiati, editor da Manchete entre 1974 e 2000. “Cá para nós, passei a odiar o Carnaval.”

Muggiati ainda tem pesadelos com a visão dos quilômetros de cromos coloridos 6 x 6 cm que lhe chegavam à mesa. A primeira triagem ficava a cargo do secretário de redação, Alberto Carvalho, que marcava os melhores com um X a lápis de cera.

A equipe se trancava numa sala para ver a projeção dos slides. “De acordo com a admiração que cada uma provocava, a edição da revista ia sendo montada”, lembra Muggiati. Depois de mais uma conferida na “churrasqueira”, como era conhecida a mesa de luz, o material passava às mãos do diretor de arte Wilson Passos, para a montagem dos leiautes.

Ecos

A aposta de Bloch não se resumia à Manchete: a própria editoria punha nas bancas, para concorrer com seu carro-chefe, a Fatos&Fotos Carnaval. Circulando dias depois, a revista mostrava os “ecos” da folia.

Quem conta é o colunista da Folha Carlos Heitor Cony: em seus 33 anos de “vivência e sofrimento” na Bloch Editores, chegou a editar alguns números da Fatos&Fotos.

“O receio era a edição encalhar”, conta. “Quando isso acontecia, o Adolpho mandava depositar todo o encalhe na porta de quem ele achasse que havia sido o responsável pelo desastre. Invariavelmente, sobrava para o Roberto Barreira, um talentoso editor de moda, mas que não dava sorte com o Carnaval.”

No início dos anos 1980, Cony estampou na capa “a foto formidável de um crioulo, pele reluzente e dentadura perfeita à mostra, fazendo malabarismos com um pandeiro. Sabe que ele nos processou? E era um anônimo. Naquele momento começou o reino das nulidades que se tornam celebridades”.

O grande artífice da Manchete era Justino Martins. Gaúcho de Cruz Alta, ele foi o responsável pelo sucesso da revista a partir de meados dos anos 1960, quando desbancou a mitológica O Cruzeiro, que circulou entre 1928 e 1975. A receita de Justino Martins, aparentemente fácil, era exigir “mais objetividade, mais graça e simplicidade nos textos”.

“Justino era um craque. Conseguia tornar qualquer assunto interessante”, contou, semanas antes deste Carnaval, Ruy Castro, repórter da revista em 1969 (ano em que cobriu o baile do Quitandinha e os desfiles das escolas de samba) e redator entre 1971 e 1972.

Na madrugada de uma terça-feira gorda, avisaram a Justino que o único filho dele, Carlito, sofrera um acidente na avenida Niemeyer. Quando o pai chegou ao local, não era mais possível fazer nada. Enquanto o corpo era levado ao Instituto Médico Legal, ele retornou à Redação: só se entregou à dor depois do fechamento.

Aos 23 anos, chamado de Castrinho, Ruy era o caçula em meio à velha guarda formada por Carlos Heitor Cony, o veterano R. Magalhães Jr., o futuro cineasta Maurício Gomes Leite e nomes graduados como Narceu de Almeida, Flávio de Aquino e Heloneida Studart.

“Tínhamos muito jogo de cintura porque, nas coberturas de Carnaval, a foto ia para a gráfica com muita antecedência”, recorda Ruy. “Éramos obrigados a fazer o texto e as legendas com pouquíssima informação. E saía tudo direitinho, milagrosamente.”

“Eu gostava de acompanhar o desfile no chão, praticamente no meio dos componentes, pegando os detalhes que ficam escondidos. Mas era obrigado a fazer a foto cheia, aquela que traduz a grandiosidade da escola, por recomendação editorial”, revela Orlando Abrunhosa.

Esperteza

Para Ruy Castro, a revista foi “esperta” em perceber a transformação da festa no Rio. “No início da década de 1970, com a decadência dos bailes e o crescimento das escolas de samba, os cariocas que não iam à avenida fugiam da cidade. Na volta, compravam a Manchete para saber o que tinha acontecido de bom.”

Era arriscado dar a capa para uma escola de samba, mesmo a que houvesse se destacado e contasse com o favoritismo do público, porque o resultado do desfile só seria conhecido com a revista nas bancas. No mais das vezes, a capa trazia uma foto de estúdio.

E – detalhe fundamental – jamais utilizando-se do inocente confete para realçar o clima carnavalesco. Sob o argumento de que “dava azar” e encalhava a edição, Adolpho Bloch proibira as pequeninas rodelas de papel a flutuar em torno das personalidades.

Uma capa típica podia trazer o costureiro Clodovil, destaque da Imperatriz Leopoldinense; a Miss Brasil; Evandro Castro Lima, Clóvis Bornay ou Zacharias do Rego Monteiro, figuras de proa do concurso de fantasias nas categorias luxo e originalidade; a cantora Rosemary, da Mangueira – mas sem o seu fiel escudeiro, o passista Gargalhada. A campeã é Xuxa, garota da capa 37 vezes.

“Antes mesmo de me tornar rainha de bateria, primeiro na Beija-Flor e depois na Imperatriz, sempre fui convidada para fazer as capas de Carnaval”, conta a vice-líder Luiza Brunet, com 35 capas.

“Modéstia à parte, meu corpinho na época vestia bem qualquer fantasia. Sair na Manchete era chique e popular ao mesmo tempo. Jamais vou esquecer o dia em que fotografei ao lado da Marta Rocha, morrendo de emoção e nervosismo.”

Cony

Com a experiência de quem em criança brincou fantasiado de morcego na bucólica ilha de Paquetá, no meio da baía de Guanabara, Carlos Heitor Cony exibia sua verve nas edições momescas.

Acompanhado por cenas dos bailes mais quentes, ele anotava: “Os anacoretas do deserto, alucinados pelo jejum, devastados pela abstinência, se entregavam a lúbricas visões. A mise-en-scène ficava a cargo do diabo, uma espécie de Joãosinho Trinta medieval, de festiva imaginação. No Carnaval do Rio, o diabo ficou fora da jogada. O carioca se virou como pôde e construiu o seu próprio paraíso.”

Não raro, exemplares da revista entravam em processos de separação nas varas de família. “Estávamos fechando o número e aparecia um sujeito tresnoitado na Redação, pedindo, pelo amor de Deus, para que não publicássemos a foto dele com aquela mulher enganchada no pescoço”, lembra Cony.

Depois da falência da Bloch Editores, em 2000, um grupo de jornalistas conseguiu, com autorização judicial, continuar editando as revistas do grupo, sendo que a primeira a sair – com o número cabalístico de 2.520 – foi a “Manchete Carnaval 2001”.

No ano seguinte, o empresário Marcos Dvoskin arrematou em leilão alguns títulos da casa e, com a ajuda de ex-funcionários, lançou mais uma edição em março. Dali em diante, com exceção de 2003, tudo se passou como nos velhos tempos, com os jornalistas botando de novo o bloco na avenida.

Até 2008, quando, trazendo na capa a miss Brasil Natália Guimarães, a história da Manchete no Carnaval – ou do “Carnaval da Manchete” – se interrompeu. Por enquanto.

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[Alvaro Costa e Silva, o “Marechal”, é jornalista]