Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Os jogos têm um sentido claro de preparação para a vida adulta’

Fátima Cabral, pesquisadora da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em Marília, São Paulo, fez um estudo sobre o papel que os jogos eletrônicos ocupam no processo de sociabilidade infanto-juvenil e como eles se inserem no mercado de mídia.

O trabalho mostrou que grande parte dos jogos eletrônicos tende a despersonificar e a homogeneizar valores e comportamentos. E, para que possam ser consumidos em todos os países e classes, suas idéias e valores assumem caráter abstrato, desterritorializado, desenraizado.

A pesquisadora também constatou que não há nenhuma preocupação qualitativa no processo de criação dos jogos. Há, sim, apenas a preocupação estética de apresentar jogos cada vez mais realistas e de conteúdo vendável. Em entrevista, Fátima alerta: ‘Os jogos eletrônicos não podem ser vistos como simples passatempo’.

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A senhora afirma que os jogos eletrônicos exercem um duplo papel em uma sociedade dominada pela tecnologia. Que papéis são estes?

Fátima Cabral – Refiro-me ao caráter educativo e disciplinador dos jogos. A formação da subjetividade humana demanda um processo que apenas se inicia na infância, pois nem mesmo a fase adulta representa a plena realização do ser, que estará, sempre e inevitavelmente, em formação. A variante, nesse caso, é o elemento mediador: durante a infância os brinquedos e as brincadeiras constituem os mediadores por excelência entre a criança e o mundo. Já na vida adulta, o trabalho, atividade na qual o sujeito está inserido, diz muito sobre sua consciência e forma de apreensão do mundo. Depois da televisão, o acesso aos computadores acelerou e aprofundou, na criança e nos jovens, o processo de autonomia frente aos tradicionais e mais rigorosos controles educacionais. O que se vê, hoje, são crianças que, cada vez mais precocemente, participam e sofrem a realidade social e emocional do mundo adulto, ao mesmo tempo em que substituem o mundo da fantasia criadora pelo mundo do simulacro. Por serem concebidos e produzidos por empresas internacionais – japonesas e norte-americanas –, os jogos eletrônicos tendem a despersonificar e a homogeneizar valores e comportamentos. Para que possam ser consumidos em todos os países e por todas as classes da sociedade, suas idéias e valores assumem caráter abstrato, desterritorializado, desenraizado. Porém, ao se apagar as diferenças, naturalizam-se e perpetuam-se os valores competitivos do presente. É inegável, por exemplo, o apelo à violência que grande parte dos jogos coloca à disposição dos jogadores. Ao se desprezar o caráter sócio-histórico – tanto das qualidades quanto das virtudes humanas – as individualidades dos personagens são tomadas como se já tivessem sido determinadas de antemão pela ‘natureza’ ou pelo ‘destino’. É como se os jogadores fossem naturalmente violentos, aguardando apenas um momento, uma oportunidade, para liberar os instintos e viver o seu ‘dia de fúria’. A justificativa da violência, nos jogos eletrônicos, aparece dentro de uma lógica também violenta, desumanizadora, onde músculos e força bruta se apresentam como as mais fundamentais qualidades dos seres.

Portanto não podemos ver os jogos como simples passatempo?

F.C. – Diferente daqueles que tomam os jogos como uma atividade apenas para diversão, considero que os jogos têm um sentido claro de preparação para a vida adulta. Carregam elementos reveladores de características civilizatórias. Assim compreendidos, os jogos eletrônicos não podem ser considerados simples passatempos. Representam uma atividade lúdica criadora e socializadora, pois transportam crianças e adolescentes para experiências diversas, abrindo-lhes as portas para o entendimento da realidade e ajudando-os a construir os valores tomados como próprios. Evidentemente que tais jogos também entretêm e isso explica seu sucesso entre crianças, jovens e adultos. Os jogos permitem ao jogador experimentar, virtualmente, aventuras e emoções que, muito provavelmente, já não são vivenciadas no mundo real. Oferecem aos jogadores a oportunidade – ainda que virtual – de se afirmarem triunfantes sobre alguns obstáculos às capacidades e aos desejos. Diante da impossibilidade concreta de exercitar um papel mais pleno de sentido na vida real, os jogadores encontram uma oportunidade de evasão e distração passiva, à medida que essa atividade não requer nenhum envolvimento social ou existencial em proporção real. Além de contribuir para o desenvolvimento sensório-motor e cognitivo, pode-se dizer que os jogos satisfazem desejos inconfessos, levando à catarse impulsos agressivos e violentos, fatores esses que a psicologia individual identifica e estuda no homem desde, pelo menos, o século XIX. Como produto do seu tempo, os jogos desempenham um papel ao mesmo tempo utópico e ideológico. Alimentam ilusões e pacificam espíritos. Oferecem, mesmo que virtualmente, um significado para a vida. Motivam o jogador-personagem a assumir o papel de herói libertário.

Face ao papel que esses jogos exercem, existe uma preocupação com a qualidade nos processos de criação?

F.C. – Trata-se de uma mercadoria e, como tal, é produzida com o objetivo de se obter lucro. Em uma entrevista, Scott Miller, o criador da série Duke Nuken, diz que há apenas uma regra a respeitar: a do mercado. Defendendo-se das críticas que recebe a respeito do conteúdo violento de seus games, justifica: ‘Não vamos começar a fazer games em que as pessoas se abraçam e dão flores umas às outras, porque isso não vende; fazemos jogos que vendem’. De um modo geral, a velocidade com que é preciso tomar as decisões, e não propriamente a compreensão da história, é que propicia ao personagem vencer o desafio do jogo. Quanto menos o jogador se envolver com a história, maior é a chance de vitória. Não é à toa, portanto, que esses jogos trazem informações curtas e pistas a serem testadas antes de qualquer reflexão a respeito da sua veracidade ou eficácia. As grandes atrações são os golpes, as estratégias da disputa, sejam elas morais e eticamente legítimas ou não. É esse, aliás, o maior desafio do designer de jogos: apresentar um leque de decisões suficientemente interessante, capaz de deixar o jogo atraente, dinâmico, dispensando o jogador de escolhas conscientemente refletidas. Maior será a diversão quanto maior for o número de decisões capazes de envolver o jogador em um ambiente competitivo e não reflexivo. Não se pode dizer que haja qualquer interesse ou preocupação qualitativa. Há apenas a preocupação estética: apresentar jogos ‘realistas’ e de conteúdo vendável. Para se pensar na superação do caráter extremamente fetichista dos jogos eletrônicos, creio que o primeiro passo é fazer emergir dos jogos as contradições ao mesmo tempo obnubiladoras e enriquecedoras das individualidades socialmente postas. Faz-se necessário uma consciência crítica para escolher e selecionar, em vez de incorporar tudo, submetendo-se ao sabor da coerção publicitária que aposta na transgressão estética, na ‘desorientação’, na ‘sobrecarga sensorial’, no embaçamento de fronteiras entre cultura popular, alta cultura e comércio, entre o real e o virtual, entre o natural e o social, entre o racional e o irracional. A perversidade maior da ideologia em curso está exatamente em atingir sujeitos pouco preparados para essa atitude mais seletiva.

Como se configura o atual mercado de jogos eletrônicos?

F.C. – Até praticamente o ano de 2001, as multinacionais japonesas Sega, Sony e Nintendo lideravam o mercado de jogos eletrônicos no mundo todo. Ainda em 1997, as três marcas chegaram a colocar cerca de 40 milhões de novos consoles (aparelhos para jogos) no mercado mundial. Japão, EUA, Inglaterra e diversos outros países realizam, anualmente, feiras para apresentar ao público os novos lançamentos. O Brasil, na década de 90, já era um dos maiores mercados consumidores mundiais da indústria de jogos eletrônicos: representava 50% do mercado latino-americano. Na disputa por esse mercado, a Microsoft adquiriu a FASA Interactive, firma responsável pela criação da bem sucedida série de simulação de robôs MechWarrior e MechCommander. Também investiu mais de US$ 20 milhões na compra de pequenas produtoras de jogos: Bungle Software Products Cop. e Digital Anvil Inc., além de estabelecer parceria com a Konami Company. A estratégia da empresa, que nunca havia produzido ou vendido computadores, era produzir jogos para seu primeiro console-computador, já no mercado, o Xbox, e jogos da Konami para PC. O Xbox é, atualmente, o mais veloz console de videogame, com porta para conexão de rede por banda larga. Com ele, a Microsoft quer atingir um público com idade entre 18 e 30 anos. Foi lançado na feira Comdex Las Vegas, em novembro de 2001, e o resultado nas vendas surpreendeu os analistas do setor: as primeiras 300 mil unidades foram vendidas em apenas duas semanas, a um preço médio de US$ 299. A expectativa é que surjam gigantes no ramo do entretenimento eletrônico. Entre elas: Nintendo, Electronic Arts, Sega, Sony, Hasbro, Activision, Eidos Interactive, Cendat, Mattel, Lucas Arts, Encore Software, Microsoft e Infogrames. Esse cartel de empresas certamente abrirá um novo caminho na rentável indústria de jogos, permitindo maiores investimentos tecnológicos e intensa mercantilização da cultura lúdica.

A realização de uma cúpula internacional para discutir a qualidade dessa mídia é urgente e necessária?

F.C. – Acredito que sim. Os altos investimentos na indústria de jogos eletrônicos mostram que, longe de um modismo, essa é uma atividade que se estabeleceu em praticamente todo o mundo, o que nos permite e exige pensá-la como uma questão social. Esse fabuloso e milionário mercado do entretenimento eletrônico chega mesmo a concorrer com a indústria do cinema de Hollywood, seja em faturamento, seja em utilização de efeitos especiais, gastos com publicidade etc., podendo, mais do qualquer outra empresa na atualidade, ser reconhecido como a ‘indústria do efêmero’, graças ao apelo ao descartável – lógica que impulsiona a concorrência e as relações de poder entre as empresas líderes. É cada vez mais evidente que o estoque crescente de suportes e utensílios eletrônicos, performáticos e informacionais está alterando a maneira de se conduzir a vida e a cultura. A sobrecarga de informações e de imagens estende-se e prolifera-se com uma velocidade jamais experimentada socialmente e, sem dúvida, prenunciam mudanças ainda mais profundas, sem que se possa, com segurança, avaliar benefícios e/ou malefícios, particularmente para as crianças e adolescentes. Nesse sentido, uma cúpula internacional para se discutir a qualidade de mundo que estamos legando para nossas crianças e jovens é urgente e de fundamental importância. Também não basta criticarmos os jogos, o cinema ou a TV. É preciso discutir que alternativas as cidades estão disponibilizando aos nossos jovens. A violência tem rendido muito lucro e muitos votos. Seja a violência real, seja a violência estética ou a virtual. Quando vamos parar de atender aos apelos do mercado para atender aos apelos de uma vida mais plena de sentido?