O documentário de Nelson Hoineff sobre Paulo Francis serviu mais do que o livro de Daniel Piza para desvendar sua personalidade em todas as facetas apesar de ficar prejudicado o rigor crítico, obviamente, pela falta de distanciamento, evidente nos depoimentos de amigos e desafetos. Aliás, no quesito amigos fica claro, como não poderia deixar de ser, o abrandamento do julgamento por força da amizade. Mesmo no depoimento dos mais críticos da guinada ideológica dele e de toda uma boiada de intelectuais para a direita, como Fausto Wolff, se percebe um depoimento matizado de carinho ao amigo. Inclusive, mais para o final do documentário, um dos depoentes, cujo nome não me ocorre agora, destaca a lealdade dele com amigos. Sergio Augusto demonstra o quanto isto era verdadeiro, pois Francis, ao saber que estava desempregado, logo o indicou para emprego em órgão da imprensa onde tinha prestígio e poder. Existe outro depoimento com o mesmo teor no documentário indicando que Francis, embora dissesse – talvez para cultivar a imagem de iconoclasta – que não tinha amigos, era, a julgar pelos vários depoimentos, um cultivador de amizades leal e dedicado.
Na contramão deste aspecto humano e merecedor de admiração do homem Paulo Francis, o material de vídeo (Jornal da Noite, da Globo e Manhattan Connection) do documentário é rico e demonstra por si o multifacetado e questionável jeito de ser do Francis, personalidade pública pós-Pasquim. Nada ali é escamoteado. Quase desnecessário dizer que todo o material de imagens de vídeo, com uma ou outra exceção que mais confirma a regra, corresponde ao período do Francis ícone da direita brasileira. Antes da conversão ideológica sua vida profissional se deu toda relacionada à imprensa escrita (revistas Realidade, Senhor, Visão e Status, e jornal Pasquim).
Fazendo eco ao discurso dominante
Em depoimento sobre as causas que o levaram a abraçar o trotskismo ele disse, com um ar irônico, como que a indicar que estava mais interessado em cometer uma boutade do que revelar a verdade, que se tornou trotskista porque este era o único que escrevia bem entre os líderes marxistas. Francis é mais um dos vários trotskistas que viraram a casaca. Sei, não foram os únicos da esquerda, mas é sintomático estarem na linha de frente dos mais estridentes dos adesistas ao novo credo situado no lado oposto do dial ideológico. Vou-me abster de fazer uma lista dos mais notáveis trotskistas que se bandearam para a direita. Seria muito longa. Outra questão intrigante relacionada aos trotskistas é que só existe ex-trotskista. Eis um belo material para estudo de sociólogos, politólogos e, por que não?, psicanalistas freudianos e lacanianos.
Alguém, senão me engano Sergio Augusto (vou ter que ver de novo este documentário), atribui influência importante de intelectuais como Edmund Wilson ao seu estilo de jornalismo. É um nome de peso ao qual deve-se acrescentar o de Gore Vidal, que também era seguidamente mencionado por Francis. Gore Vidal, com seu estilo ferino, desmistificava os pretensos valores americanos com um olhar de dentro do sistema. Sua família era do establishmentamericano. A estas e outras influências, Francis acrescentava o seu toque pessoal singular, reinventando o jornalismo ao misturar política, filosofia e arte de uma forma que se ajustou perfeitamente ao estilo informal, debochado e crítico do Pasquim.
Gente como Francis e FHC significaram, por sua ascendência intelectual, um chancelamento para a virada ideológica de muitos que estavam indecisos e atônitos depois da perda de referência com a queda do muro e o fim do socialismo real. Muitos dos que se bandearam, inclusive Francis e FHC, demonstraram assim o quanto eram surfistas da onda do momento. Quando era charmoso ser de esquerda lá estavam eles, afinadíssimos e capitaneando o discurso e a prática hegemônica de então no meio intelectual, estudantil e político. Agora, que se revela ser possível ser de direita sem perda de prestígio, lá estão os mesmos desfrutando desta agradável e cômoda condição. Digo cômoda porque nada mais lucrativo e eficaz para alavancar uma carreira na política e na grande mídia conservadora, para aqueles que já tinham talento comprovado e um nome consagrado, do que fazer eco ao discurso dominante.
Adorno não gostava de jazz
Em Francis dá para perceber que nada foi mais fácil do que dar vazão ao seu vezo reacionário. É visível o quanto saem naturais as suas tiradas racistas, sexistas e direitosas. As imagens de vídeo, principalmente quando ele não percebia que estava sendo filmado, demonstram toda a sua truculência. Não se vê nenhuma forçação de barra quando emite impropérios contra a esquerda, contra as estatais, contra os funcionários públicos, contra Lula ou contra os nordestinos. Parece que aquilo era um pensamento existente desde sempre e que estava represado pela ideologia de esquerda que professava antes. Ele soa mais autêntico na direita do que como homem de esquerda que foi. Em certo momento do documentário ele diz, quando inquirido, ter se tornado adulto, daí a razão principal de sua conversão política. Já tinha lido o mesmo veredito no livro do seu biógrafo Daniel Piza, que deduziu ter sua conversão ao credo neoliberal ao fato dele ter amadurecido.
A bem da verdade, para um bom observador, já havia alguns sinais sutis deste viés de alguém que se achava superior à turba e que não escondia o horror ao povo real. Basta lembrar os bordões que ele não se furtava de utilizar tipo “intelectual não bebe cerveja, bebe uísque”, “intelectual que se preza não gosta de praia, futebol e carnaval” e por aí vai.
Existe um biombo conceitual que ajuda a mascarar o sentimento de distinção e de soberba para os intelectuais de esquerda: os conceitos da Escola de Frankfurt, principalmente em Adorno. Assim como existe a chamada leitura vulgar de Marx ou de Nietzsche, existe uma leitura vulgar de Adorno e, também, de Marcuse, com seu homem unidimensional, que leva os incautos a tornarem sinônimo povo e massa ignara, disforme, sem nenhum atributo digno. Não estou pondo em dúvida muitos dos achados importantes da Escola de Frankfurt como, por exemplo, a distinção entre razão crítica e razão instrumental e as análises ainda atuais sobre as principais características da sociedade de massa. Apenas dizendo ser possível uma leitura preconceituosa e elitista de alguns de seus conceitos. Adorno, por exemplo, não gostava de jazz nem de Charles Chaplin.
Para bater na vulgata marxista
Arrisco dizer que Francis, desde sempre, é daqueles para quem a massa ou o povo é invisível. David Letterman, entrevistando Regis Philbim, entrevistador famoso nos EUA, indagou, quando este último falou que tinha jantado com Donald Trump, se ele alguma vez jantou com gente comum. Uma indagação que cabe como uma luva para Francis, que em seus escritos nunca menciona, nem quando era trotskista e depois socialista Fabiano, admirador de Bertrand Russell e Bernardo Shaw, algum episódio onde demonstra ter privado e gostado de estabelecer um contato com gente comum. Igual ao outro pavão, FHC, que, segundo Marilena Chauí, escreveu “uma teoria da escravidão em que o escravo não entra e uma teoria da dependência em que a classe operária não entra”.
O depoimento no documentário de Gustavo Krause, a quem dizem que Francis bateu pesado, é elucidativo da chamada elite podre branca, termo usado por Claudio Lembo. Diz ele, que foi prefeito de Recife pelo PFL, que não se importava com os impropérios de Francis – imagino que os impropérios contra ele e contra os nordestinos – porque precisava ter mais paulos francis na mídia para bater na vulgata marxista. Um salvo-conduto para ser xingado a si e aos irmãos nordestinos, desde que ele continue atacando à esquerda. Impossível exemplo maior de pragmatismo político.
Revelando o que podia
De tudo fica evidente o carisma pessoal que cresceu com a passagem para a mídia televisiva. Ele era bom de texto e de televisão. Tanto que mesmo os que, como eu, lamentam a sua conversão para a direita, não deixamos de admirá-lo. Praticamente aprendi a ler e a ver um lado das notícias de cultura e política que inexistia no cânone convencional e formal que prevalecia até o advento de jornais como o Pasquim. Como disse Mário Lago, as pessoas, na época, vestiam sobrecasacas para escrever. Debito a ele, também, o meu gosto por escrever e pensar de um modo que, suponho, foge do convencional. Por força desta influência distante e impessoal, não estou a acusá-lo de um modo veemente e agressivo. Daí a compreensão, que não significa concordância, das causas que levaram muitos, que foram mais próximos, a silenciar sobre a virada ideológica cometida por ele em troca de poder e prestígio na mesma mídia que até então era combatida ferozmente.
Um belo e honesto documentário sobre uma personalidade influente e interessante. A direção demonstra o interesse de revelar o máximo possível dentro das limitações de material disponível, o que praticamente levou a abordagem para o período mais recente da historia pessoal de Paulo Francis. Mesmo assim, confesso que descobri através do documentário informações que até então desconhecia. Merece elogio o fato de não estarmos diante de um material oficialista. Nem mesmo os chiliques famosos dele em frente das câmeras foram escamoteados. Se Paulo Francis não está em toda a sua integridade, não se debite ao do documentarista que, mesmo sendo amigo pessoal do seu biografado, não deixou de revelar o que podia e devia ser revelado. Até a questão controversa do Paulo Francis romancista é abordada por amigos que, ao contrário do crítico José Onofre, foram mais críticos ao dizerem ter sido uma área em que ele não foi nada bem, não atingindo o mesmo nível de excelência que atingiu no jornalismo de opinião em que foi um dos grandes, abstraída a questão ideológica.
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[Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor, Porto Alegre, RS]