Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aquilo que não é dado ver ou ouvir

A transmissão, via TV, dos carnavais dos sambódromos, tanto do Rio quanto de São Paulo, não são, na realidade, o que se vê nos respectivos locais – isso todos sabemos. Richard Wagner (1813-1883), que era um exímio leitor de partituras e que dispensava as audições físicas das obras, conta que só foi entender alguns aspectos da nona sinfonia de Beethoven quando a escutou ao vivo, em Paris. A música, o teatro ou os espetáculos das escolas de samba são eventos para além das telas da TV; por maiores que sejam os aparelhos, eles nunca dimensionam o vento, a presença viva das pessoas e – no que as escolas de samba têm de melhor, fundamentalmente para os ouvidos – não há equipamentos de som que ressoem como nos sambódromos. Dá-se, então, que pensemos que determinada escola será a mais premiada. Mas a “São Clemente” acabará perdendo para a “Vila Isabel” ou, em São Paulo, não será a “Vai Vai” a campeã – mas outra qualquer. O problema, o grande problema, parece ser os comentários das transmissões.

Eles quase sempre discorrem a favor da telinha da TV. Dizem que o espetáculo está bonito – mas ninguém está achando feio (mesmo porque o que a transmissão demonstra dispensa opiniões em contrário). Quanto às baterias das escolas, não há a menor chance de que se as escute por três ou quatro minutos sem a interferência de alguém. Haverá sempre a conversa de um dos “tradutores”, seja das imagens, seja dos sons. Eles dirão que há um repique interessante no acompanhamento do samba-enredo que não nos é dado escutar, já que o mais importante é que o trabalho dos repórteres repita o óbvio: que há, de fato, o tal repique, que alguns versos são bonitos e, por fim, mas não finalmente, que as cores da escola se compõem muito bem. E daí que fica sempre a suposição do daltonismo dos espectadores: o azul é preciso se dizer que é azul. E que os belos tons de roxo, vejam, senhores telespectadores, são belos tons de roxos.

O comentário que mais ocorre

A Fundação Gulbenkian, de Lisboa, compõe-se de muitos equipamentos, mas principalmente de um dos “pequenos” grandes museus da Europa. São incontáveis as obras expostas, desde o período da dominação moura, na Península, aos impressionistas franceses. Em seu catálogo, porém, muitos dos comentários sobre as obras de arte não são quaisquer adendos, mas autênticas descrições para cegos: talvez importe informar que o verde “de Veronese” está justamente num quadro de Veronese – pintor veneziano seiscentista – e que sua cor está realmente entre o verde e o azul – mas haverá algo mais expressivo do que o quadro, além da descrição do quadro?

Miguel de Cervantes, no século 17, já tinha consciência dos truísmos e pleonasmos que enxameavam os compêndios, não apenas de sua época. Talvez, para prevenir os ilustres leitores para o que os esperava, muitos autores faziam uma espécie de abstract do que se seguiria. Eram redundâncias tão grandes que Cervantes resolveu imitá-los. Só que no seu Dom Quixote não se pode conter o riso: a cada capítulo o autor faz um resumo que, não raro, ressalta o óbvio clamoroso, que se torna mais engraçado justamente por isso. Assim, ao tentar reter a curiosidade do leitor, Cervantes alerta: “Onde se lê o que se segue”. É a relevância da bobagem, mas de que, modernamente, se inferem muitas outras questões.

Por exemplo: para os telespectadores refestelados em suas cadeiras talvez não ocorram os níveis de redundâncias a que estão subjugados. Dizer que a bateria faz uma pausa longa certamente não acrescenta à própria o que todos estão escutando – mas esse é justamente o comentário que mais ocorre. E não para chamar a atenção, demonstrando o fato, mas para que os espectadores vejam e escutem muito menos do que está, por si mesmo, já restringido pela tela da TV.

Imbecis, cegos ou surdos

Talvez, contudo, essa questão – a da obviedade – não seja tão desimportante ou dispensável. A ideia de contraponto – de algo que contradiz uma imagem ou um som – para alcançar uma outra dimensão pode ser um recurso cênico ou dramático em torno de um discurso que não se propõe à contradição; ou que o dispense pela simploriedade. No cinema mudo, nas cópias sonorizadas que nos chegam, o olhar de Carlitos se enternece com a música que reflete os olhos da jovem na melancolia ou na correspondência do seu olhar, também emocionado. Mas a cena dramática, ou francamente trágica, pode ser acompanhada de uma música saltitante e alegre.

Numa bienal de muito tempo atrás havia uma instalação que raiava sadismo com muito maior contundência do que o comum delas: era uma sucessão de filmes, nunca divulgados para o grande público, de cenas verdadeiras de acidentes aéreos. Ensaiava o mais macabro possível: todos sabiam que no imenso telão, que ocupava uma parede de mais de três metros de altura, as cenas dos aviões se despedaçando – em alguns casos, divisavam-se os corpos sendo cuspidos para fora das aeronaves – eram todas verdadeiras, nada era de mentirinha. O pior, porém, era certamente o que o autor da instalação mais queria – provocar o mais puro pânico nos espectadores. Tudo muito consentâneo, digamos, com as suas autênticas intenções terroristas. O que tornava a cena ainda mais assustadora, horripilante mesmo, não eram vozes ou gritos – mas uma valsa muito amena, até bonita. Ela palpitava em três por quatro o paradoxo dos milhares de mortos – pois os desastres se sucediam uns depois dos outros – uma centena deles, talvez. Sempre ao som de uma valsa. E todos, com aviões de passageiros enormes, desses que carregam dezenas, senão centenas de pessoas.

Não há muito o que concluir. No “Maior Espetáculo da Terra”, como dizem os locutores, repetindo redundantemente que os desfiles das escolas de samba são realmente representações grandiosas, fica-se, apesar de tudo, ou por isso mesmo, num mar de dúvidas. Vivemos um mundo de redundâncias: todos os que gostam de futebol, sabemos que o gol foi belíssimo, que o chute de fora da área encobriu o goleiro numa parabólica perfeita, quase milagrosa. No entanto, precisamos ouvir do locutor que o gol, dado desde fora da área, foi belíssimo? E que encobriu o goleiro, sendo que foi exatamente isso que as várias câmeras registraram?

Não parece apenas uma leve desconfiança de que a partir do momento em que nos propomos a ver TV, seja para o que for, não se mostre difícil que os competentes comentaristas nos alertem, a todo o instante, de que somos imbecis. Ou cegos, ou surdos.

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[Enio Squeff é artista plástico e jornalista]