Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lúcio Flávio Pinto, passageiro da agonia

O atual embate judicial do sociólogo e jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, 62, está para o bizarro assim como o Jude Law tá pro charme masculino: vezes onze. Tudo começou em 1999, quando ele veiculou no seu independente Jornal Pessoaluma reportagem sobre as manobras que um tal Cecílio do Rego Almeida balizava pra grilar nada menos que 4,7 milhões de hectares de terra no vale do Xingu – 8% do Pará ou chão suficiente pra constituir o “21º maior Estado do Brasil”, lembra o repórter. Beleza, que munido da “documentação sobre a fraude” o LFP conseguiu melar o surgimento da “Ceciliolândia”. Só que o patinete não parou, e a porra ficou bem séria.

Passados dez anos e fatalizado por uma recente voadora desferida pelo presidente do STJ, Ari (Olá, Eu Sou Ministro do STJ e Você Está Demitido)Pargendler, agora o Lúcio vai ter que pagar uma indenização que estima poder chegar a R$ 22 mil. Para os herdeiros do Almeida, que o Almeida mesmo morreu. É que naquela mesma matéria o empreiteiro foi chamado de “pirata fundiário”, se sentiu moralmente ofendido e foi cobrar muito na Justiça. E o agonizante desistiu de brincar (como disse – e muito mais – na entrevista a seguir).

Só uma recapitulaçãozinha antes de tudo. “Eu provei com documentos que ele era mesmo pirata. Documentos esses que foram usados pra inocentar as outras três pessoas que ele também processou.” A diferença é que a citada trinca foi julgada e absolvida em São Paulo, enquanto o caso do Lúcio Flávio foi deslocado pra Belém – afinal, o foro competente – a pedido do próprio. Hoje ele se arrepende disso. O caso foi indo, até que: pulamos pra 2006. Viajava a juíza titular [de uma das varas cíveis do foro de Belém] do TJ-PA para um curso no Rio de Janeiro, quando seu interino (substituto) Amílcar Bezerra resolveu pegar o processo, “mesmo ainda sem condições de ir a julgamento – ainda estava em fase de instrução”, pra dar uma lida durante o fim de semana. “Ele tinha pedido os autos na sexta-feira e só devolveu na terça-feira seguinte. Só que a juíza titular reassumiu a 4ª vara na segunda-feira. Ele não tinha mais poder jurisdicional e não podia sentenciar. Foi um ardil.”

Mas sentenciou: LFP, seu cretino, pague R$ 8 mil de indenizações ao homem [valor daquele ano]. O cretino recorreu. “Provei tudo isso na reclamação que fiz à corregedoria da Justiça. A desembargadora acolheu meu pedido e recomendou instauração de procedimento administrativo disciplinar contra o juiz. Mas os desembargadores do Conselho da Magistratura votaram contra.” A partir daí, “todos os meus pedidos foram indeferidos e as maiores aberrações foram cometidas para que a condenação se mantivesse”.

Uma delas: o autor da ação morreu em março de 2008 e ficou sem sucessor durante “quase três anos”. “Eu pedi várias vezes ao tribunal que intimasse os herdeiros a se habilitarem, mas ninguém se interessou. Só em dezembro de 2010 foi aberto o prazo, quando a única decisão que cabia era a extinção do processo pela deserção do autor. Mas mesmo com a lacuna ilegalmente aberta, os herdeiros deixaram de se apresentar, só o fazendo depois de perderem um novo prazo”. 

Mas como disse, ele desistiu de recorrer. Não por derrota, e sim por cansaço – o cara, ao todo, já foi processado 33 vezes. Por ora pretende continuar seu Jornal Pessoal, que, fundado em 1987, atualmente corre Belém a R$ 3 cada cópia dos dois mil exemplares. Não xingando muito como numa tuitosfera de aRTaques epiléticos e arrobados, e sim na reportagem. Aliás, como um jornalista de verdade, ele obviamente não tem dinheiro pra arcar com a sentença, então conta toda uma mobilização de colegas, ativistas e cancerianos pra arrecadar algum trocado pra arcar com a sentença. Tá aí uma causa pra chamar de sua.

A seguir, a entrevista:

O Sr. pode recorrer até terça-feira, mas já disse ter desistido. Depois de mais de 10 anos, o que o desanima agora?

Lúcio Flávio Pinto –Não acredito mais. O Tribunal teve várias oportunidades de se corrigir e não o fez. O presidente do STJ foi rigoroso demais ao ignorar o recurso por causa de detalhes formais. Trata-se de uma perseguição política, contra a qual decidi reagir politicamente. Há quase duas décadas litigo na Justiça contra pessoas poderosas. São nove apenas as que me acionaram: donos do maior grupo de comunicação do Norte, magistrados, grileiro, madeireiro, político… Mas elas abusaram do seu poder e extrapolaram seu direito na tentativa de me condenar. Como provo tudo que digo, a verdade está do meu lado. Para eles a única saída era extrapolar a lei. Fizeram isso, tanto que me cansei. Depois de 33 processos, numa história que fará 20 anos em setembro (quando o Jornal Pessoalcompletará 25 anos). Achei que a melhor resposta era mobilizar a opinião pública e não permanecer circunscrito ao fórum.

Quando o presidente do STJ não acolheu o meu recurso, por falhas na formação da documentação, falhas todas meramente formais, sem atentar para o contundente conteúdo dos autos, provando todos os absurdos, decidi reagir politicamente a um processo que sempre foi político. Ao invés de continuar preso à instrução processual que me sonegou o direito de defesa, resolvi denunciar a justiça, por sua parcialidade. Não recorri e vou pagar a indenização ao grileiro, protegido na justiça estadual enquanto a justiça federal de Belém decidiu, em novembro do ano passado, mandar cancelar os registros imobiliários de propriedade feitos em nome dele.

Minha decisão não significa desistência. Pelo contrário. Faço Jornalismo profissional há 46 anos. Vou continuar. O que sei fazer de melhor é jornalismo. E só sei fazer jornalismo como tenho feito até agora. [Nota: ao longo de toda essa carreira ele chegou a trabalhar na Realidade, Veja, O Estado de S.Paulo e angariou pra si quatro prêmios Esso.

Li em algum lugar que nem durante a ditadura o Sr. foi tão processado.

L.F.P. –Comecei no jornalismo profissional dois anos depois do golpe militar de 64. Nem sei como – me alfabetizei lendo dicionários. Aos 16 anos escrevi meu primeiro texto para um grande jornal. Já seguia as regras do new journalism americano e jornalismo investigativo. Comecei fazendo o que faço hoje – exerço minha profissão e cumpro meu ofício. Só isso. Sou um caçador de fatos cuja obrigação é entregá-los à sociedade para o melhor uso possível em prol do interesse coletivo. [Enfim, durante a Ditadura] fui processado uma única vez, em 1976, pela Lei de Segurança Nacional. O processo foi para a Justiça Militar, mas o auditor militar a desqualificou. Na justiça comum, o representante do Ministério Público disse que eu devia ser era condecorado, por denunciar a violência policial, e não punido. O processo foi arquivado.

Esse processo do CR Almeida, pelo que parece, de uma hora pra outra pareceu se transformar num lance Estado do Pará versus Lúcio Flávio Pinto.

L.F.P. –O que ficou claro foi a tendenciosidade do Tribunal. Um contraste brutal entre o que fizeram os desembargadores e como agiu a juíza da 10ª vara criminal do fórum de Belém. Ao ser informada sobre a morte de Cecílio Almeida, que propôs também duas ações penais contra mim (uma delas distribuída para a 10ª vara), ela deu prazo para os sucessores se habilitarem em 60 dias. Como eles não se apresentaram, ela simplesmente extinguiu o processo. Os desembargadores fizeram o contrário, e só depois de dois anos e meio abriram prazo para os herdeiros — que perderam esse primeiro prazo. Ganharam um segundo [prazo], e mesmo assim não preencheram as exigências. Até que a cumpriram, de forma completamente ilegal. O tribunal sabia o que estava fazendo: violando a lei.

Quanto já foi gasto no atual processo e quanto já foi arrecadado até agora?

L.F.P. –O maior gasto é emocional, de tempo perdido, de frustração. As despesas materiais derivam das custas processuais, da coleta de material, da movimentação… Os quatro advogados que já me defenderam (dois amigos e dois parentes) nada cobraram. Mas a campanha é para pagar a indenização. Ela já atingiu R$ 7 mil. Prefiro que as pessoas depositem valores pequenos para que seja como pensei: o máximo de pessoas com o mínimo de custo individual. Pretendo fazer um pagamento simbólico no tribunal na companhia de quantos dos pagantes quiserem me acompanhar. Vamos responsabilizar o Tribunal por estarmos pagando a um grileiro, que queria ficar com 8% das terras do Pará.

Em uma das suas notas veiculadas pelos sites que estão acompanhando o caso o Sr. diz: “Mas também é verdade que, na linha de frente e agindo poderosamente nos bastidores, um grupo de personagens (para não reduzi-lo a uma única figura fundamental) continua disposto a manter a condenação, alcançada a tanto custo, depois de uma resistência extensa e intensa da minha parte. Esse grupo (e, sobretudo, esse líder) tem conseguido se impor aos demais de várias maneiras, ora pela concessão de prêmios e privilégios ora pela pressão e coação. Seu objetivo é me destruir. Tive a audácia de contrariar seus propósitos e denunciar algumas de suas manobras, como continuo a fazer, inclusive na edição do meu Jornal Pessoalque irá amanhã às ruas.” Quem é esse grupo e quem é esse líder?

L.F.P. –Ao contrário do que sempre faço, preferi não identificar essa pessoa, que age pelos bastidores, à espera de que seus pares o façam, além dos servidores. Para que todos saibam que também estou informado sobre algumas ações que quase não deixam pistas nem provas, mas em relação às quais é possível apresentar evidências tão fortes que funcionam como provas, inclusive no procedimento judicial. Gostaria que as pessoas de bem da justiça paraense também reagissem e afastassem aqueles que podem realmente ser classificados de “bandidos de toga”. Se a correção não vier por dentro, certamente virá de fora. Com essas denúncias, não é possível mais manter tudo dentro do tribunal ou circunscrito aos autos. Tudo isso virou segredo de polichinelo.

Chegou a ser agredido ou sofrer ameaças de morte durante isso tudo?

L.F.P. –Já sofri muitas ameaças anônimas de morte, já consegui desfazer uma tentativa de pô-la em prática e já fui agredido fisicamente três vezes. Mas não desisti. A melhor maneira de me proteger é me antecipar aos que planejam me fazer mal. Para isso conto com minha excepcional rede de informantes, em todas as posições e locais. Recorro sempre a eles quando há alguma indicação hostil.

Isso quer dizer o quê: andar escoltado, armado, evitar sair de casa…?

L.F.P. –Previno-me contra qualquer forma de paranoia. Procuro viver uma vida normal. Não tenho seguranças e nunca tive. Nem ando armado. Procuro apenas evitar sair pela noite, ir a bares, festas. Evito concentrações de pessoas. Ando rápido, mas sempre andei assim, desde menino (sempre fui um andarilho, antes de essa atividade se tornar moda). Os belenenses têm que andar assim, mas para prevenir assaltos e outras agressões. Belém é uma das quatro capitais mais violentas do Brasil.

Vive com medo?

L.F.P. –Não, felizmente. Já houve época em que meu medo era maior do que a minha coragem. Mas o jornalismo impõe tanta coisa a quem o exerce na linha de frente que a gente perde o cacoete. Tenho medo, às vezes, quando o jornal sai da gráfica e vou lê-lo. Digo em silêncio: “Lúcio, tu és maluco em publicar isso aí”. Depois esqueço.

Tem recebido apoio da OAB, ou órgãos ligados à imprensa (Fenaj, Sindicatos etc.)?

L.F.P. –Sim, tenho. Mas o maior apoio tem sido das pessoas. Sem esse apoio dificilmente eu teria prosseguido.

Depois de tudo isso e tanto tempo, guarda alguma mágoa de tudo isso? Da Justiça, da mídia, do Pará, do Brasil ou sejá lá de quem for? O que mais doeu em tudo isso?

L.F.P. –Já são quase 20 anos de uma vida de 62 anos acorrentado a processos judiciais. Com sinceridade, não sei como consegui manter a sanidade e a disposição para o trabalho com o tanto que amarguei nesse longo período, que ainda não tem fim – muito pelo contrário. Não tenho mágoa alguma de ninguém. Mas fico perplexo que esse Gulag se tenha constituído durante o período de mais longa democracia na república brasileira, tantas vezes vítima de golpes de estado. O que me preocupa é não conseguir sensibilizar a sociedade para a gravidade do meu caso. Não é um caso individual fortuito, uma briga pessoal. Ele prova que ainda não vivemos numa democracia, embora o nosso regime tenha todas as aparências de democrático. Muita coisa é destruída por pressão ilegítima e pela covardia das pessoas.