Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“O Tribunal transformou o processo jurídico em político”

O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto recorreu à internet para buscar apoio em um processo judicial que se arrasta há mais de dez anos. Com agravo rejeitado no Superior Tribunal de Justiça, Lúcio Flávio terá de pagar oito mil reais em indenização à família do empresário Cecílio do Rego Almeida, por conta de uma matéria escrita em 1999 que demonstrava um esquema de grilagem de terras de milhões de hectares no Pará. Depois de tentar todo tipo de recurso na Justiça, restou ao jornalista pedir solidariedade à rede para arrecadar a quantia e dar visibilidade ao caso, criando uma corrente na blogosfera.

Há 25 anos, Lúcio Flávio é o editor solitário doJornal Pessoal, publicação quinzenal que circula no estado. Depois de trabalhar em grandes veículos, como o Estado de São Paulo e o jornal O Liberal, maior publicação do Pará – e autor de 19 de 33 ações contra ele nos últimos vinte anos – resolveu abrir seu próprio meio de comunicação para veicular uma matéria de longa apuração sobre o assassinato do deputado estadual Paulo Cesar Fonteles de Lima.

O jornal continua vivo até hoje. À CartaCapital, o jornalista contou ter sofrido todo tipo de perseguição, de ameaças de morte, a processos judiciais intermináveis e agressões físicas. Entre eles, a ação movida por Cecílio, que morreu em 2008. O processo chegou a ficar dois anos sem autor, parada na Justiça, o que por si só poderia ocasionar seu arquivamento. Depois de recursos infindáveis, o STJ negou o agravo, restando a Lúcio pagar a indenização para a família do grileiro. A partir daí, Lúcio desistiu da Justiça e teve de recorrer a arrecadações e apoio de internautas.

“Responsabilidade exclusiva”

Quando fundou o Jornal Pessoal, em1987, a ditadura já tinha chegado ao fim. Lúcio Flávio imaginou, portanto, que em breve os veículos de comunicação voltariam à normalidade e passariam a publicar conteúdos sem censura. “Todo mundo dizia que a imprensa alternativa não tinha mais razão de ser, porque a grande imprensa podia publicar tudo. Com o tempo, eu vi que tinha uma autocensura cada vez mais parte dos jornais, ligados a interesses coorporativos e políticos e por covardia de jornalistas”, diz ele.

Foi por isso que o jornal continuou a existir e publicar matérias que muitas vezes, não são veiculadas em nenhum outro lugar. Durante o período da ditadura, foi processado apenas uma vez e absolvido. À frente do Jornal Pessoal, em pleno período democrático, foram 33. Ele conta já ter visto de tudo: desde pedidos formais de censura por juízes ditos imparciais, agressões e até ameaças de morte. “O poder decisório nas empresas jornalísticas é mais verticalizado do que em todas as outras empresas. O que o dono da empresa quer é o que sai ou não sai”, diz ele.

“Em 1992, passei a criticar o jornal O Liberal, mostrando que eles são partido político e agem como se tivessem poder decisório no estado”, afirma. “Uma das diretora do O Liberal entrou com cinco processos contra mim”. Outra guerra permanente é com a Justiça paraense. Em 1999, quando publicou a matéria sobre a “Cecíliolândia”, um repórter da revista Veja e um vereador de Altamira foram alvo da mesma ação, no Tribunal de Justiça de São Paulo. Sem recursos para bancar um advogado em São Paulo, Lúcio transferiu a ação para o Pará, mas se arrependeu. Em São Paulo, o juiz não só absolveu os dois réus como os elogiou, pela preocupação com o patrimônio público.

No Pará, ao contrário, o jornalista coleciona histórias do empenho da Justiça em condená-lo a qualquer custo. “Eu tinha certeza que ganharia, porque estava com a verdade na mão. Minha crença foi sendo erodida por ter lidar com os atos mais injustos, violando a norma legal e vi que não era comigo só”, afirma. “O Tribunal transformou em processo político e não jurídico”. Quando foi condenado, conta, o juiz fraudou a data de emissão para fazer valer sua sentença, já que substituía a titular da Vara, que já havia retornado à função. Lúcio pediu a anulação, mas foi negada por meio de manobra, segundo ele. As dificuldades durante o processo vão desde irregularidades da justiça até encontrar um advogado que aceite o caso, em oposição a profissionais de grandes escritórios que defendem o outro lado. Por isso, sempre foi defendido por amigos.

Ainda durante a ditadura, Lúcio Flávio chegou a ser ameaçado de morte, por conta de matérias que fez para O Liberal sobre suspeitas de corrupção no governo de Jader Barbalho (PMDB-PA), em 1985. “No início, você tem medo e depois se acostuma”, diz. O diretor do jornal chegou a disponibilizar dois seguranças para ele, que rejeitou a oferta. “A melhor forma do jornalista se defender é trabalhar: apurar de onde vem a ameaça”, explica. Assim, descobriu que as ameaças vinham de pessoas próximas ao governador. Então, ligou para Jader e disse que enviaria uma carta a Julio de Mesquita Neto, diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, alertando que, se morresse, seria responsabilidade exclusiva do governador. Assustado, Jader contou que não sabia das ameaças, mas tomaria providências para que parassem, como de fato ocorreu logo depois.

Terra sem lei

Lúcio Flávio já rodou a Amazônia inteira nesses anos. E afirma que o Pará, sua terra natal, é um lugar onde prevalece a “lei da selva”. Ele relata que, em 1972, o então ministro da Fazenda Delfim Netto recebeu o ministro do Comércio e Exterior do Japão Naburo Okita. Okita perguntou ao Delfim qual era a taxa de poupança do Brasil e o ministro respondeu que era baixa, mas seria suplementada com a abertura de uma nova fronteira, que é a Amazônia. Primeiro, seriam enviados os bandidos para amansar a terra, depois os moçinhos. “Mas os moçinhos nunca chegaram”, constata Lúcio Flávio.

A grilagem, que ajudou a combater, continua. Segundo ele, há um terreno receptivo a esse tipo de manobra. “O aparelho de estado não acompanha a velocidade de especulação de terras. No interior, há um clima favorável à corrupção. Aqueles que atuam em campo, fiscais, ganham pouco, mas a informação real depende deles”, conta. Soma-se a isso a diferença de preço entre as terras no sul/sudeste e no norte: cinco mil hectares no Pará equivalem a 300 no sul do país. E terra, diz, é reserva de valor. “Toda vez que tem crise econômica, as terras da Amazônia são griladas. É uma relação de causa e efeito”, comenta. “A elite amazônica sempre foi intermediária da elite brasileira, mas tem suas contas particulares: eu sou conta de várias pessoas poderosas”, alerta.

“Eu não sei dizer as coisas de outra maneira. O que eu lamento é que tantas coisas acontecem na Amazônia e esse tanto de gente medíocre me persegue e tira meu tempo de trabalhar”, conclui.