Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ministério Público quer censurar dicionário

Poucas vezes na história recente da imprensa um dicionário chamou tanta atenção da mídia. O Ministério Público Federal, em Uberlândia, aceitou denúncia de um homem misterioso que se declarou cigano e acusou o dicionário Houaiss de preconceituoso e racista, em suas definições desta etnia. Segundo o misterioso cidadão, o honrado e conhecido dicionário apresenta uma visão depreciativa e condenável de sua gente.

O Estado de S.Paulo, o Último Segundo, a BBC Brasil e a revista Veja publicaram matérias sobre esta curiosa querela. Que cruzou o Atlântico e foi publicada no TVi 24 de Portugal (ver “Dicionário brasileiro processado por causa da palavra cigano”, 28/2). O jornal paulista fez a primeira abordagem, explicando que “o Ministério Público Federal havia entrado com ação na justiça federal em Uberlândia, Minas Gerais, para tirar de circulação o dicionário Houaiss, um dos mais conceituados do mercado”, registrou Marcelo Portela pelo Estadão, em 27/2 (ver “MPF quer tirar de circulação o dicionário Houaiss”). Portela contou que o MPF considera que a publicação “contém expressões pejorativas e preconceituosas, pratica racismo contra ciganos e não atendeu às recomendações de alterar o texto, como fizeram outras duas editoras com seus dicionários”. O MPF referia-se à Globo e à Melhoramentos.

Por aqui já percebemos que algo não vai bem para a liberdade de publicação. Quer dizer que o MPF vem sugerindo cortes de expressões e verbetes nos nossos dicionários? Editoras importantes, como a Globo e a Melhoramentos, estão a aceitar pressões externas e censuras do MPF? Desde quando esse órgão tornou-se censor de publicações? Esta é uma questão muito grave e que não foi abordada em nenhuma das publicações examinadas. E se esta ingerência existe, é indevida, inapropriada e ilegal. Pode ser constitucionalmente correta, mas é injusta e obtusa.

Uma ação “grotesca”

Tudo começou em 2009, anotou Portela, quando a Procuradoria Geral da República aceitou “representação de pessoa de origem cigana, afirmando que havia preconceito por parte dos dicionários brasileiros, com relação à etnia”, informou o periódico de São Paulo. O MPF então passou e enviar “diversos ofícios e recomendações às editoras para que mudassem o verbete”. A editora do Houaiss, a Objetiva, não atendeu às recomendações e adiantou que apenas detém os direitos de publicação do dicionário e que o Instituto Houaiss é que edita a publicação.

O promotor Cléber Eustáquio Neves não gostou (ou não entendeu) a resposta da editora e entrou com ação solicitando a “imediataretirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição do dicionário”. Ele considera que, mesmo quando assinalado como verbete de uso pejorativo ou injurioso, o uso da palavra cigano significa “aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero. Ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação”, acredita o promotor de Uberlândia. “Trata-se um dicionário”, disse ele. “Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra.” Neves também crê que os significados pejorativos atribuídos ao verbete serão internalizados pela população, o que levaria a “uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia que deveria, por força da lei, ser respeitada”. O MPF ainda quer aplicar multa de R$ 200 mil reais na editora Objetiva e no Instituto Antônio Houaiss por “danos morais coletivos”. É difícil acreditar que o dicionário de um dos intelectuais mais íntegros e progressistas do Brasil esteja a ser processado por crime de racismo e xenofobia.

Em 28/2, o canal de informação português TVi 24 , a revista Veja e o Instituto Antônio Houaiss apresentaram suas apreciações sobre o assunto. A publicação brasileira trouxe uma pequena reportagem que acusou a ação do MPF de “grotesca”. E explicou por que:

“Supor que dicionários inventem os sentidos das palavras, em vez de simplesmente registrar com o maior rigor possível os usos decididos coletivamente por uma comunidade de falantes ao longo de sua história, é uma crença obscurantista e autoritária. Sua origem deve ser buscada no cruzamento entre a velha ignorância e uma doença intelectual mais recente: a ilusão politicamente correta de que, para consertar as injustiças do mundo, basta submeter a linguagem à censura prévia.”

“Curiosidade etimológica”

Concordo com Sérgio Rodrigues, autor do artigo. O articulista da Veja lembrou que “a última ação do tipo a ter repercussão semelhante originou-se há 10 anos, em Campinas (SP), iniciada por cidadãos de origem judaica contra o mesmo dicionário, graças a referências pejorativas devidamente assinaladas. A ação não deu em nada e o mesmo deve acontecer com esta agora, ajuizada pelo MPF sobre o verbete “cigano”, acrescentou o jornalista. Rodrigues também buscou no dicionário do famoso linguista a etimologia do termo: a palavra foi importada do francês no século 16 (cigain), mas na realidade vem do grego athígganos, que significa intocável, “nome dado a certo grupo de heréticos da Ásia Menor que evitava o contato com estranhos, a quem os ciganos foram comparados quando de sua irrupção na Europa Central”.

A definição da palavra é pouco clara: o nome grego que significa intocável foi emprestado aos ciganos e veio originalmente de um grupo não-identificado da Europa Oriental que evitava contato com estranhos. Mas não eram ciganos. Quem foi este povo? Quem são os ciganos, afinal? Os ciganos, na verdade, fazem parte de uma corrente migratória que eventualmente deixou a Índia e sua sociedade de castas e ganhou o mundo. Os povos nórdicos, profundamente imersos no politicamente correto, não usam o termo “cigano”. Preferem dizer “povo da estrada”… Os ciganos são uma nação em movimento, mas não um país. Não há território cigano em parte alguma. Chamá-los de “gente da estrada” talvez seja mais ofensivo que “cigano”.

O artigo da Veja fez uma boa crítica à descabida ação do MPF, mas apresenta um problema que apequenou um pouco a importância do assunto tratado: espaço editorial errado. A matéria foi apresentada como “curiosidade etimológica”, quando na realidade é muito mais do que isso. A coluna de Sérgio Rodrigues pretende apresentar “nossa língua escrita e falada numa abordagem irreverente”. O que estaria perfeito se a censura ao dicionário fosse assunto curioso, trivial ou engraçado. Mas não é. Não há lugar para gracejos e irreverências num caso grave como esse. O artigo deveria estar em outra parte da revista (ver “Ciganos X Houaiss: faltam judeus, baianos, japoneses…”).

Ignorância histórica

O Instituto Antônio Houaiss, corréu no processo, apresentou comunicação (28/3) onde explica que havia recebido recomendação da Procuradoria da República do Estado de Minas Gerais, referente aos significados da palavra “cigano” empregados no dicionário. A resposta do Instituto foi tímida e prudente demais, no início. Explicou que os significados ofensivos estavam em edições que não seriam mais impressas e que também havia alterado a definição de cigano, “assim como todas as palavras ligadas ao tema, pois preparávamos a segunda edição do dicionário, que ainda não foi publicada”. A nota explicou ainda que os outros dicionários da família Houaiss “atualmente não trazem os termos considerados pejorativos citados pela procuradoria”. Parece que a editora e o Instituto estão muito à vontade com a censura do MPF. Cedem terreno ao politicamente correto, ao atender todas as demandas da justiça.

Mas a coisa muda de figura na segunda parte do comunicado. O Instituto saiu de sua posição meramente reativa e passou a instruir a promotoria em lexicografia, a técnica de criação e publicação de dicionários. Estes não inventam termos. São como coleções históricas de palavras utilizadas pela população. E os verbetes pejorativos estão sempre assinalados como tal “e muitas vezes explicam a origens destes preconceitos”. A nota diz mais:

“Nenhum dicionário deve ocultar empregos preconceituosos de palavras quando se vê diante deles. Registramos precisamente o que encontramos, tanto dentro do padrão culto da língua como no informal. Os dicionários não inventam palavras nem acepções. Nesse espelho em que nos constituímos refletem-se a realidade da língua e os sentimentos dos seus falantes, ora com sua beleza e simpatia, ora com sua crueldade, com seus sentimentos e atitudes desfavoráveis para com minorias etc. Ninguém supõe eliminar dos dicionários palavras como guerra, tortura, violência, pedofilia com fim de conter ou impedir que tais tormentos continuem a existir. Fazê-lo seria apenas varrer para debaixo do tapete o que nos envergonha, mas isso não serve de ação preventiva nem eliminadora do mal que tais conceitos e outros preconceitos acarretam. Que fazer nos dicionários em tais casos, então? Registrar a palavra ou a acepção e dizer claramente, quando é o caso, que ela é pejorativa e preconceituosa. É como fazem os dicionários modernos em todo o mundo.”

A comunicação do Instituto começou meio fraca das pernas, mas recuperou-se rapidamente no segundo e terceiro parágrafo, demonstrando a estultice de se tentar esconder dos olhos dos leitores todos os vocábulos ofensivos contidos numa língua. Os dicionários revelam significados construídos historicamente que não devem nem podem ser esquecidos. É ignorância histórica e imprudência pedagógica querer, ou aceitar, que estas palavras, usadas para humilhar e ofender, sejam eliminadas dos dicionários. A sociedade as criou. E é através delas que recuperamos a história de tempos tirânicos passados que propiciaram o surgimento e disseminação dos significados pejorativos dos inocentes verbetes catalogados. Censurar tais termos dos dicionários é ocultar da História e das sociedades seus momentos mais cruéis. Seus períodos de intolerância e violência verbal e vocabular (ver “Comunicado do Instituto Antônio Houaiss”).

Obediência irrefletida

O artigo de Ivan Lessa, publicado em 29/02 na BBC Brasil e no Último Segundo, trouxe uma abordagem original, um ângulo novo para a cobertura deste infeliz ato da justiça. Lessa, com seu humor mordaz e às vezes agressivo, fez pouco caso dos exageros absurdos do MPF, alfinetou a Academia Brasileira de Letras por seu pedantismo, sua distância do povo e das necessidades da língua e insinuou que por trás de tudo poderiam estar interesses de publicadores e da Academia, que ganham dinheiro com a reforma ortográfica. Que os empresários do setor gostam de chamar de “acordo”, ironizou Lessa (ver “Nossa língua, nossa alma”).

O canal de notícias TVi 24, de Portugal, apresentou uma enxuta e boa reportagem sobre o assunto. Estruturou bem a notícia, localizou o leitor no espaço, descreveu o absurdo do MPF usando as palavras e a razão inconteste do Instituto Houaiss: não se deve ocultar o significado de algum verbete preconceituoso. É um ato de obscurantismo e atraso, apoiado no politicamente correto, e que deve ser evitado. O informativo também avisou que o litígio não envolve Portugal. Ninguém ou nenhum órgão propôs algo tão “grotesco” por lá, como caracterizou a Veja (ver “Dicionário brasileiro processado por causa da palavra cigano”).

O Instituto respondeu à altura à medida incabível e retrógrada da ação judicial, mas ainda apresentou bastante tolerância às censuras do MPF. O que está a acontecer no setor de publicações dos dicionários? Estão a aceitar injunções, interferências e sugestões de corte (censura) com muita tranquilidade e subserviência. Todas as três editoras envolvidas no assunto (Globo, Melhoramentos e Objetiva) estão a obedecer irrefletidamente aos “conselhos” das Procuradorias de Justiça, que não são órgãos preparados em lexicografia e não deveriam dar opiniões ou sugestões apenas para reforçar a Lei Magna e sufocar da liberdade de impressão.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]