Fim dos anos 1980, aulas de alemão no Instituto Goethe, no centro do Rio. Certo dia o professor perguntou aos alunos quais imagens que associavam com a Alemanha. Cerveja, salsicha, chucrute e carros de qualidade foram as respostas mais frequentes. Mesmo com o avançado estágio de globalização com qual hoje deparamos, mesmo com os iPhones, os iPads, os Nextel, Facebook e Twitters, a atual imagem que a opinião brasileira tem da Alemanha não difere muito daquela época.
Nunca na história da humanidade estivemos tão diretamente conectados uns aos outros, nunca as distâncias geográficas foram tão relativizadas, nunca tivemos tanto acesso imediato à informação de forma ativa e passiva e ao mesmo tempo nunca fomos tão superficiais em filtrá-las e digeri-las.
Depois da queda do muro de Berlim, a Alemanha vive um período muito importante de sua modernidade. Em 2006, durante a Copa do Mundo de futebol, câmeras de TV mostravam alemães alegres, espontâneos, mulheres fazendo parte das torcidas de futebol balançando freneticamente a bandeira, sem medo de ser feliz. Algo havia mudado naquele país tão marcado pela sua história de 12 anos de nacional-socialismo de Hitler e o que isso causou e causa no continente europeu e no resto do mundo.
Grécia fora
Sempre presente nas arquibancadas dos estádios pelo país afora, Angela Merkel era só sorrisos em ver o seu país manchete positiva nos jornais. As imagens rodaram o mundo e mostravam a nova Alemanha, aberta, desenvolvida e rica, além do indispensável aval moral da figura do “Kaiser” Franz Beckenbauer, que fez uso de sua empatia em todo o mundo e, conseguindo domar os céticos da Fifa, trouxe o evento para o país. Depois do feedback mundial muito positivo, foi possível para os alemães lidar de uma forma mais resolvida com a questão de pátria e nacionalidade sem imediatamente se autoestigmatizarem e se autotorturarem com isso pela história do passado.
Erroneamente, o interesse da imprensa brasileira no país, antes e depois da Copa, continua focado nas pautas chamativas de apelo imediato e se restringe às “notícias secas” das agências parceiras desses veículos. Um exemplo dos últimos dias foi o banho de cerveja em Angela Merkel causado por um garçom nervoso na festa política tradicional de quarta-feira de cinzas.
Muitos dos editoriais internacionais das rádios, TVs e jornais do Brasil ainda teimam em apostar no velho e obsoleto trio: Washington-Paris-Londres. Outros veículos se dão o privilégio de contar somente com um correspondente presencial no continente europeu: Lisboa. A crise do euro abrange muito mais as do que as especulações dos mercados financeiros, dos hedge funds, das indenizações para ex-empresários falidos, das agências de classificação de risco de créditos. A Europa passa por uma crise de identidade. Aquela ideia da “Casa Europa” do ex-chanceler Helmut Kohl e do ex-presidente François Mitterrand se desmembrou num processo de “salve-se quem puder”. Não faltam membros do governo de Angela Merkel (incluindo o ministro do Interior, Hans-Peter Friedrich) que querem forjar a saída da Grécia da zona do euro.
Estatísticas são das melhores
As mudanças de paradigma na sociedade alemã também atingem ao sistema partidário: o partido dos liberais (FDP, na sigla em alemão) conta somente com 2% de respaldo dos eleitores, segundo pesquisas divulgadas semanalmente. Na última eleição parlamentar de Berlim, o Partido dos Piratas foi do zero à marca de 8,9%, conquistando 15 cadeiras para o partido e tomando o lugar dos liberais que, desde então, não estão representados no parlamento da cidade de Berlim.
O resultado sensacional do Partido dos Piratas não está acoplado ao seu programa por menos controle na internet e passagens grátis nos transportes para todos os estudantes, mas, sim, pela necessidade de uma mudança de estilo na classe política. Isso aconteceu também na região de Baden-Württemberg, onde pela primeira vez na história do país um verde, da fração pragmática, foi eleito ministro-presidente e colocado no poder por estar acima de rótulos partidários.
No contexto de crises, terrorismos e questões de urgência, os partidos não têm mais tempo hábil para polir seus perfis e se diferenciar dos adversários. O eleitor espera do político capacidade para resolver conflitos da forma mais pragmática possível. A maior prova disso é que Angela Merkel governa um barco furado e sem qualquer respaldo da população para os partidos do governo. Por outro lado, a chanceler lidera a lista dos políticos com maior percentual de aceitação pelos eleitores. Não porque seja uma pessoa querida, que esbanje simpatia, mas sim pelo seu pulso forte diante de tempestades e derrotas políticas cada vez mais frequentes.
Enquanto toda a Europa afunda na crise, as estatísticas da Alemanha, seja no quesito exportação, desemprego ou coleta de impostos, são das melhores. Os índices econômicos são dos melhores. E, em tempos difíceis, é isso que conta. Até mesmo a crise causada no cargo da presidência pela recente renúncia de Christian Wulff perde em frequência para as notícias diárias sobre o desastre da crise do euro. Mesmo assim, o prejuízo causado por Wulff ao cargo outrora livre da mídia é imprevisível.
A participação do Xingu
Fatos de repercussão como a crise do euro ou as eleições presidenciais no próximo 18/3 não convencem editores internacionais de vários veículos de comunicação no Brasil a dar uma cobertura mais regular à Alemanha. As chamadas “notícias secas” das agências não contribuem (e nem mesmo podem contribuir) para um conhecimento abrangente e aprofundado da sociedade alemã e do centro político europeu que é, de fato, Berlim. Não é de relevância para o Brasil o mau humor crônico dos motoristas de táxi e de ônibus na capital. Mas é, sim, imprescindível saber que os detalhes dos diversos pacotes de resgate financeiro para a Grécia têm influência na economia mundial, até mesmo nos trâmites parlamentares, sem contar o efeito nos nossos bolsos.
Também a questão da ética política e/ou como o jornalismo investigativo atua no país como a quarta força no Estado são aspectos enriquecedores para a jovem democracia que é o Brasil, além de possibilitarem um melhor entendimento do terremoto político que acontece no velho continente. É importante questionar se a opção de veículos brasileiros pelas “notícias secas” pode ser justificada somente pelo intuito de economizar nos custos de produção. Essa tese cai por água abaixo quando vemos equipes de TV se deslocando de Londres para a cidade de Hoppenheim para acompanhar a comemoração do segundo título mundial do simpático piloto Sebastian Vettel. Ou, nos jornais, as fotos de lindas louras vestidas a caráter no Oktoberfest.
O que a imprensa brasileira não sabe ou não divulga é que o Oktoberfest tem a triste estatística anual do maior número de jovens embriagados até a perda de consciência no país. Isso sem contar os de além-mar que visitam Munique especialmente para ter o prazer de beber como se não houvesse amanhã.
Fica sempre faltando o outro lado da notícia. Falta o aprofundamento nos fatos. Tomemos como exemplo o maior evento cultural do país: o Festival de Cinema de Berlim, cuja mostra da competição há quatro anos não apresenta um filme brasileiro, apesar da intensa atividade cinematográfica de qualidade e quantidade em território nacional. Falta também um discurso crítico quando se trata de um filme brasileiro exibido no festival. Aparentemente, ser exibido em Berlim exime o filme de qualquer crítica. Isso ficou transparente com a participação do filme Xingu, de Cao Hamburger, na mostra paralela do festival.
Também a cobertura jornalística do Festival de Cinema de Berlim é, em sua esmagadora maioria, feita de pautas focadas nos filmes que, na sequência, estreiam em circuito nacional. É raro encontrar uma cobertura fundida de teor crítico que não se deixe seduzir pelos aspectos do mercado cinematográfico.
Fatos impossíveis de serem ignorados
A inflação de portais de cinema invade a internet de forma que fica quase impossível distinguir qualidade de quantidade. Em 2008, fizemos um trabalho pioneiro, e até agora único, de cobertura diária de um festival de cinema para uma rádio de notícias de abrangência nacional. O procedimento inusitado foi coroado com a vitória de Tropa de Elite 1, que levou pra casa o Urso de Ouro como melhor filme.
É de fato muito questionável se a teimosia de veículos de comunicação brasileiros no eixo Washington-Paris-Londres é explicável somente pelo intuito de manter baixos os custos de produção ou se falta uma disponibilidade intelectual de editores internacionais em atualizar e harmonizar com o Zeitgeist (espírito da época) a imagem que se tem do país que passa por transições decisivas.
Não é possível riscar das pautas lugares de importância para o desenvolvimento mundial. No momento, o centro do mundo não é Washington, e sim o velho continente. Esses são fatos impossíveis de serem ignorados. Caso contrário, sobra o caminho da alienação e da ignorância.
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[Fátima Lacerda é formada em Letras, curadora da mostra “Perspectiva América Latina” e está radicada em Berlim desde 1988]