Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aves de rapina na TV pública

O misto de cantor e comediante, o autodenominado brega-star Falcão, é o apresentador do novo programa da TV estatal cearense, a TV Ceará (TVC). A emissora colocou no ar na quarta-feira (29/2), no horário nobre das 22 horas, o talk show semanal intitulado Leruaite [conversa mole, xavecagem, conversa para boi dormir (ver aqui)]– com duas reprises, às quintas e aos domingos.

Nada contra reprises, nada contra programas de entrevista e música, muito menos contra o talentosíssimo e necessário Falcão. Mas alguém tem que alertar o Ministério Público do Ceará e os verdadeiros donos da TV Ceará, que este pode ser mais um abuso da emissora controlada pelo governo cearense; que este pode ser mais uma expressão do patrimonialismo promovido por alguns, em detrimento do interesse coletivo.

Aproveito o fato para oferecer algumas possíveis reflexões sobre o papel das TVs ditas públicas em relação aos desafios de ampliar a cidadania e aprofundar a democracia. Primeiro, é preciso entender que, no mundo inteiro, as TVs estatais são entes públicos por essência, porque utilizam um canal público do espectro eletromagnético – como também o são as TVs privadas – e, sobretudo, porque são mantidas, direta ou indiretamente, com recursos públicos. Estas emissoras, nas democracias menos desenvolvidas, tendem a ser governamentalizadas ou patrimonialiszadas. Ou seja, são postas mais ao serviço dos interesses de um governo passageiro e de seus escolhidos, menos às necessidades de informação, expressão e diálogo da sociedade.

Exceções à regra

Mas há também as TVs públicas. Estas são instrumentos não da política partidária, mas de políticas de Estado. Não são ferramentas de interesses particulares, mas do direito difuso e do interesse coletivo. São emissoras financiadas com dinheiro público, recolhido e repassado pelo governo, mas são geridas por grupos formados exclusiva ou prioritariamente por representações da sociedade. Um conselho de administração e um conselho curador decidem, respectivamente, o que fazer com os recursos e como fazer a grade de programas. São orientadas pelo diálogo e para o diálogo. Não se movem prioritariamente pela construção de olhares cativos – a audiência, este produto da TV privada –, mas pela construção de liberdades.

O Estado brasileiro, não obstante os 61 anos de televisão no país, ainda tem dificuldade em relação a esses conceitos e em desatrelar as práticas de TV governamental das de TV pública. Não obstante a referência que a TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta, representa e a experiência mais recente da TV Brasil, da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), os governos da Federação pouco ou nada fazem por desgovernamentalizar ou despatrimonializar as emissoras estatais.

A TV Pernambuco (PE) e a TV Piratini (RS), inspiradas talvez nos espíritos confederado e farroupilha, podem ser as únicas exceções, por compartilharem as falas do governo com da comunidade e desta com o governo.

Investimento produtivo

Em relação à TV Ceará, as decisões são tomadas entre o gabinete do secretário da Casa Civil e a mesa do superintendente da Fundação que administra a emissora – imagino ser assim também na TV estatal do seu estado, especialmente se for uma ex-TVE. Tudo muito natural: quem manda na TV “do governo” é o governo. Mesmo que seja só para tentar, equivocadamente, a “eficiência” da TV privada e concorrer com ela.

No caso do programa Leruaite, não houve um edital que promovesse a concorrência entre interessados, não houve uma seleção pública para o uso dos recursos públicos. Fazer ou não o programa, o gênero do programa, o roteiro, o apresentador, se seriam destinadas três horas semanais para a atração… tudo decidido como numa emissora privada.

A TVC destacou em seu site na internet a estreia do programa. E fez uma campanha publicitária nos dois maiores jornais do Ceará, em que oferecia um “tauco show”, escrito assim, “mais uma atração brega pra você que adora novelas, reality shows e programas de fofoca”. Foram 10 páginas coloridas em página determinada ao longo de quatro dias, num custo aproximado, em valores de tabela, de R$ 200 mil.

Melhor investimento, talvez, fosse financiar, via edital, produtoras locais. E, se fosse o desejo da sociedade, fazer um programa com humoristas cearenses em busca de visibilidade, com pessoas com deficiência, afrodescendentes e outros grupos que têm voz, mas não fala, nos meios de comunicação particulares.

Dono do pedaço

Em relação ao programa, incomodou-me o escracho de chamar o grupo de cegos do regional Asa Branca de conjunto “Num Tô nem Vendo”. Talvez melhor que fossem eles, e não o cantor Fagner, os entrevistados da estreia – se assim quisesse a sociedade.

Estranhei também ver no figurino do Falcão um crachá com o telefone de contato para shows. Se não conseguir novos contratos, quem sabe seja convidado para o lugar nunca ocupado pelo Rafinha Bastos na Rede TV!.

E quanto às aves de rapina, citadas no título deste artigo – as harpias, águias e corujas –, os falcões, abutres e urubus vivem isolados por natureza, não convivem com o público. E se tornam agressivos quando outro ser ameaça tomar-lhe o espaço.

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[Alberto Perdigão é jornalista e editor do Blog da Dilma]