Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Furtado

: ‘Isenção é uma palavra menos presente em manuais de redacção ou textos teóricos do que outras, de certa forma equivalentes. Significando, nos dicionários de linguagem corrente, desprendimento moral e independência de carácter, no léxico do leitor de jornais, isento é, afinal, o jornalista que trata os factos e os relata com aquele desprendimento e aquela independência a que podemos chamar distanciação, imparcialidade e equidade. Objectividade, portanto?

Muito discutido e questionado nos últimos anos, designadamente, pelo chamado ‘jornalismo cívico’ (como um entrave a que o jornalista se afaste da neutralidade tradicional e se empenhe em favorecer causas de cidadania), objectividade é um conceito há muito associado ao jornalismo norte-americano e nem por todos adoptado.

É conhecida a opinião de Hubert Beuve-Méry, fundador do ‘Le Monde’: ‘a objectividade não existe; a honestidade, sim’. É também neste sentido que estabelece o Livro de Estilo do Público (à semelhança, aliás, do que faz o código deontológico dos jornalistas, onde a palavra não surge). Considerando-se a objectividade como algo inatingível, o jornalista deve, no entanto, persegui-la usando de ‘honestidade intelectual’ no relato exacto dos factos e das opiniões. A credibilidade do jornal passa pela observação desta prática que, no fundo, condensa os vários conceitos citados, num único valor a que o leitor chama, muitas vezes, isenção.

Exactamente, a palavra destacada por Rodrigo Lourenço, de Lisboa, para titular um e-mail em que exprime ‘desagrado e desacordo’ relativamente à cobertura da manifestação contra a despenalização do aborto, publicada no dia 4, sob o título ‘E se eu o matasse agora mesmo?’: ‘entendo que o tratamento daquela notícia não é isento, é tendencioso e acaba por instrumentalizar a notícia como argumento em favor dos que defendem a despenalização do aborto’.

Em concreto, como fundamenta o leitor as suas observações? Por um lado, acha que aquele título, bem como o de outra notícia publicada na mesma página (‘Você mata crianças!’) são ‘auto-explicativos’; por outro, contesta o ângulo de abordagem escolhido: ‘numa notícia sobre manifestação pró-vida, acompanha-se a perspectiva de… dois contra-manifestantes!’

Além de Rodrigo Lourenço, um outro leitor, também de Lisboa, escreveu ao provedor sobre esta notícia, assinada pela jornalista Maria José Oliveira. Apresentando-se como participante na manifestação, Pedro Viana diz que ‘faz pena ver que, numa publicação que se pensa imparcial, os artigos sejam manifestação da opinião pessoal da jornalista’. Acha que o título da notícia ‘tenta ridicularizar’ a iniciativa e critica também o enfoque escolhido: ‘O artigo deveria descrever uma manifestação de quinhentas pessoas pela vida, mas descreve a de duas pessoas que reclamavam o contrário (…)’.

Confrontada com estas opiniões, a repórter admite que a manifestação ‘representa, tal como qualquer outro protesto, um acontecimento sensível no contexto de uma cobertura jornalística’ . Recorda, a propósito, uma polémica desencadeada pela reportagem da manifestação anti-globalização, realizada no final do Fórum Social Europeu, e comenta a ênfase que certos distúrbios, surgidos ‘neste tipo de protestos’, merecem na comunicação social: ‘São ocasionais, são desencadeados por uma ou duas pessoas, mas são estas as iniciativas que têm mais projecção nos media, cujos critérios de escolha das notícias assentam precisamente no nível de interesse jornalístico da situação’. A resposta serve para os dois leitores, considerando Maria José Oliveira que ‘a indignação manifestada’ por Pedro Viana ‘carece de argumentos, uma vez que não basta escrever que a jornalista ‘deveria descrever uma manifestação’.

Para quem não leu, estamos a falar de que notícia? Na verdade, trata-se de uma reportagem em que a jornalista começa por descrever a presença, no percurso da manifestação, de dois anti-manifestantes, (um deles interpelado, a certa altura, por uma manifestante, com a frase que fará o título da peça). A jornalista descreve depois, aspectos da manifestação, contextualizando-a e, por fim, refere-se aos comícios que aquela, e outra concentração de sinal contrário, realizaram junto ao Parlamento.

Há parcialidade, falta de isenção, ‘tendenciosismo’, no relato dos factos? É patente a opinião da jornalista, relativamente à matéria da reportagem? Para o provedor, as respostas são negativas.

No entanto, as observações dos leitores são pertinentes: o título da peça (sem dúvida, jornalisticamente forte), a ‘entrada’, bem como toda a parte inicial da notícia (parcela considerável do texto integral), são espaços ocupados a relatar a presença dos dois contra-manifestantes. Deste modo e a avaliar pelo próprio texto, a real importância daquela presença sai assim valorizada de forma desproporcionada.

Para explicar a sua opção, a repórter refere apenas que fez aquilo que os media fazem, nestes casos, ao destacarem episódios ‘ocasionais’ a que atribuem ‘interesse jornalístico’.

Convidada a pronunciar-se, a editora da secção, Ana Sá Lopes, também cita o caso da cobertura da manifestação anti-globalização realizada no final do Fórum Social Europeu, (em que ‘fomos ‘acusados’ de retirar o enfoque ao verdadeiro objectivo’ da manifestação) e afirma que teve dúvidas no momento em que editava o texto de Maria José Oliveira: ‘Deveríamos ‘abrir’ por aí, não deveríamos? Era um episódio anómalo na manifestação, e nós, por ‘vocação’ damos relevo a episódios anómalos’.

Rejeitando qualquer intuito de fazer campanha contra os manifestantes ‘que não é regra da casa’, Ana Sá Lopes não hesita em afirmar que ‘percebe a sensibilidade’ deles, nem em reconhecer que podia ter optado por uma alternativa: ‘destacar o episódio anómalo num segundo texto, dando primazia às opiniões dos promotores da manifestação num primeiro’.

Na verdade, o provedor acredita que essa teria sido a opção correcta. De outra forma, só se, pelas suas próprias dimensões e repercussões, o episódio ‘ocasional’ ou ‘anómalo’ dos dois contra-manifestantes, se sobrepusesse, em real relevância noticiosa, ao evento principal, que era a manifestação. Já tem acontecido. Mas não desta vez. O que legitima as observações dos leitores.’