‘Um acontecimento como os atentados terroristas de Madrid é daqueles que, pela magnitude que reveste, pelas situações-limite que encerra e pelas ondas de choque que desencadeia, se constitui como um marco na nossa relação com o tempo: cria um antes e um depois. Tanto mais que, longe de se confinar a um problema de Espanha, ele exprime e produz a globalização das relações e dos problemas à escala planetária. O facto de se verificar às nossas portas torna-o ainda mais devastador.
Quando a notícia chega à Redacção e se adquire a percepção do seu alcance, o dispositivo organizacional corrente para cobrir a actualidade altera-se e, sob a coordenação geral da Direcção, uma boa parte dos jornalistas é mobilizada a diferentes níveis e com distintos níveis de responsabilidade, para fazer a adequada cobertura.
No caso do JN, além do correspondente local, já se encontravam em Madrid dois jornalistas, por causa da campanha eleitoral que os atentados vieram bruscamente interromper. A esses profissionais a Direcção decidiu juntar um redactor e um fotógrafo. ‘Aos enviados o que pedimos foi reportagem nas ruas e nos hospitais. As questões políticas, com base nas agências, seriam tratadas na sede’, observa, em mensagem a este provedor, o director de Redacção, José Leite Pereira. Outro aspecto que o director sublinha é a importância que teve o facto de, ao longo do dia 11, ir reunindo a direcção e a chefia, para confrontar factos e informações, em ordem a apurar o que seria importante apresentar aos leitores no dia 12. A primeira página desse primeiro dia foi mantida em aberto até depois das 23 horas, como ocorreu também noutros dias subsequentes, o que permitiu dar realce, desde cedo, à emergência da pista islâmica, no que respeita à autoria do massacre. Como balanço, o director nota que ‘do ponto de vista editorial, tudo foi muito conversado e pesado’, fazendo da cobertura efectuada um balanço globalmente positivo. Genericamente falando, da parte dos leitores o provedor não recebeu mensagens que contrariem tal leitura.
Estes aspectos que nos mostram, a nós, leitores, os bastidores do jornal que lemos, são importantes para compreender duas coisas: em primeiro lugar, uma ocorrência como os atentados altera o modo normal como a redacção se estrutura, obrigando a decisões que têm de ser rápidas, pertinentes e eficazes, para que o jornal não se torne um mero amontoado de peças soltas e sem nexo entre elas; e, em segundo lugar, as opções sobre o que seleccionar, o que destacar, que mensagem principal introduzir na primeira página não são tomadas por uma única cabeça, por brilhante que pudesse ser; antes são discutidas e ponderadas em equipa, convertendo-se em opções que vão ganhando forma e que, mesmo assim, ainda ficam abertas às leituras e opiniões dos que lêem o jornal.
Com tantas vítimas mortais, com tantos feridos, com tamanhos estragos, com tanta gente envolvida, um dos desafios com que os jornalistas, os editores e os directores dos jornais, rádios e televisões se defrontam será encontrar o justo equilíbrio entre o direito e o dever de informar, e, por outro lado, a sensibilidade para não ferir indevidamente os direitos das vítimas e dos destinatários da informação.
No caso dos jornais e revistas, uma matéria habitualmente problemática, em circunstâncias como as que se verificaram em Madrid, é a das fotografias, uma vez que ocorrências destas proporcionam quadros terríveis de dor e choque.
No caso presente, correu mundo uma foto de Pablo Torres Guerrero, do diário ‘El País’, em que se pode ver, no meio das linhas férreas, e com um comboio destroçado em fundo, a desolação e o desespero de pessoas feridas, de gente anónima que lhes dá apoio e, no cascalho, uma parte de um braço ou uma perna. Em resumo: um quadro chocante, talvez um dos casos em que se pode aplicar o ditado que diz que ‘uma imagem vale por mil palavras’. Muitos foram os jornais e revistas que acharam que esse seria o melhor documento fotográfico para dizer aos leitores a tragédia que tinha ocorrido. Mas vários foram os modos de proceder. O ‘El País’ ocupou grande parte da capa com a foto original, exposta a toda a largura. O ‘Jornal do Brasil’ ou o ‘Times’ manipularam a foto e limparam o pormenor chocante. ‘The Guardian’ acinzentou o vermelho de sangue e a revista Time colocou um título a disfarçá-lo. Em todos estes casos houve opções editoriais. Mas a verdade é que alterar o conteúdo de uma foto, que não seja por razões, digamos assim, técnicas, é semelhante a truncar ou modificar qualquer texto.
Outro caso polémico foi a foto do interior de uma carruagem esventrada em que se vê, em plano perfeitamente identificável, uma ou (conforme o recorte feito) duas vítimas, provavelmente mortas. Sobre este caso, que serviu de ilustração à pág. 3 do JN do dia 12, este provedor foi contactado por um leitor que considerou que o JN não a deveria ter publicado. O subdirector David Pontes justifica a publicação dizendo que ‘além de ser exactamente essa a matéria jornalística a ser tratada [os cadáveres], era uma boa foto plasticamente e de maneira nenhuma exibia gratuitamente a dor’. E acrescenta: ‘Temos como regra que a procura de alguma descrição no tratamento fotográfico não pode ir ao ponto de esconder o que na realidade se passou. O horror vivido naquele dia tinha que ficar reflectido no jornal – a morte de duzentos inocentes, de uma forma brutal’.
Provavelmente haverá leitores que concordam e que discordam das opções tomadas, neste caso específico e noutros casos do mesmo melindre. Regista-se a ponderação interna de que o assunto foi objecto. Mas seria talvez de pensar em partilhar mais com os leitores os critérios e as dúvidas que os editores e directores tiveram ao fazer as suas escolhas e os fundamentos das opções que tomaram. Pode passar também por aí a redução do fosso que separa a redacção e o público.
Continua em Espanha a polémica sobre se o governo de José Maria Aznar mentiu ou não mentiu ao povo e ao Mundo, nos dias mais imediatos aos atentados. A questão era muito simples: todos estavam unidos na condenação do terrorismo e na solidariedade com os mais directamente atingidos. Mas, em cima de um acto eleitoral, a autoria do massacre tornou-se inevitavelmente uma matéria politizada ao mais alto grau: se fosse a ETA, podia beneficiar eleitoralmente o partido no poder; se fosse a al-Qaeda podia beneficiar a oposição. Como pano de fundo estava a decisão de Aznar de envolver o país na guerra do Iraque, ao arrepio da vontade da maioria esmagadora do povo espanhol.
A gestão do calendário foi decisiva: na quinta, dia 11, dão-se os atentados e suspende-se de imediato a campanha eleitoral; para dia 12, ao fim da tarde, o Governo convoca a impressionante manifestação de unidade antiterrorista; dia 13, sábado, era dia de reflexão, pelo que deveriam estar vedados pronunciamentos políticos; e domingo, dia 14, era dia de ir a votos.
O Governo de Aznar procurou fazer impor interna e externamente um ‘regime de verdade’ que atribuía à ETA a autoria da tragédia, mesmo quando por todo o lado, desde o primeiro dia, incluindo no JN, se desenhava claramente o pesadelo da al-Qaeda. Depois passou a fazer equivaler o peso das duas pistas. E só no sábado, ao fim do dia, perante o clamor dos que exigiam a verdade, veio assumir o que de facto se passava.
A gestão política deste tipo de ‘crises’ não é facto novo. O Governo espanhol, veja-se a questão do lado que se quiser, foi de uma inabilidade inaudita neste caso. Mas o que surpreende e preocupa é que meios de comunicação importantes tenham embarcado de imediato na versão oficial, eventualmente tocados pela deferência do presidente do Governo, que teve a gentileza de, logo no dia 11, telefonar aos directores dos principais media do país, a dizer que não tivessem dúvidas sobre a autoria do massacre. Os especialistas de sociologia política têm aqui muito que estudar e que aprender. Mas os sociólogos do jornalismo e dos media não têm menos.’