Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carlos Heitor Cony

‘O movimento de 1964 está sendo lembrado com a atenção devida a uma data que criou e manteve grave e longa ruptura no regime democrático.

Como sobrevivente dessa etapa que o Brasil viveu, estranho a unanimidade dos textos e declarações relativas àquele período da vida nacional. Tem-se a impressão de que o golpe militar (e foi realmente um golpe militar) contrariou a vontade do povo.

Militares, empresários, a Igreja Católica ainda não dividida, jornais, revistas, emissoras de rádio e TV e, finalmente, o povo em geral, todas as expressões da alma brasileira estavam a favor do golpe. O único jornal contrário à deposição de João Goulart, a ‘Última Hora’, pagou o preço de suas ligações governistas, vindas desde o tempo de sua fundação, ligações que provocariam o suicídio de Vargas.

Alguns repórteres e pesquisadores ficam admirados quando, ao ser questionado por eles, digo exatamente isso. Pouquíssimos eram contrários ao golpe, o jornal em que eu trabalhava na ocasião, o ‘Correio da Manhã’, era o mais violento na campanha contra aquilo que era chamado de baderna comunista e peleguista.

Evidente que as barbaridades do novo regime, gradualmente aumentadas, criaram o repúdio consensual ao regime então instaurado. O próprio ‘Correio da Manhã’ foi o primeiro e durante algum tempo o único que se colocou contra a maioria dominante que incluía militares, empresários, igreja e povo em geral. E a própria mídia.

Também o ‘Correio’ pagou o preço da mudança de sua atitude, mudança iniciada no dia seguinte ao golpe, a 2 de abril daquele ano, com uma crônica de segundo caderno que apenas debochava do aparato bélico para depor um governo no qual ninguém mais acreditava.

Depois sim, o mesmo jornal passou a denunciar a tortura, a delação, a violência e a burrice daquele movimento. E não ficou sozinho nessa posição, que logo se tornou aspiração de todos e pela qual tantos morreram.’



Mário de Almeida

‘O golpe ainda está aqui’, copyright Época, 29/03/04

‘Os militares não estavam dispostos a voltar correndo para a caserna, como esperavam os conspiradores. No poder, para escândalo dos liberais, abusaram do intervencionismo estatal como remédio para todos os males brasileiros

Formidável no conteúdo, desastrada nas palavras, medíocre na coreografia, uma operação para destruir o Estado de Direito magnetizou o Brasil naquele tórrido verão de 1964. Foi crise política de manual, com objeto claro, que podia ser identificado em qualquer esquina e figurava com todas as letras nos discursos parlamentares: disputava-se o privilégio de reescrever a Lei de alto a baixo, em vista da notória má vontade – tanto dos adeptos quanto dos inimigos do presidente João Goulart – para ouvir os argumentos do outro lado, num esforço para retocar o compromisso vigente. Era uma conspiração de mão dupla, cujo desfecho começaria a ser delineado na madrugada de 1o de abril – faz 40 anos na próxima quinta-feira.

O país mudara profundamente desde o acordo nacional estipulado na Constituição de 1946. Mas a impressão vendida nos comícios era de que aquelas regrinhas exalavam perfume de dinossauro. Multidões incandescentes ocupavam as ruas para escandir versos revolucionários nos dias pares, sendo rendidas nos dias ímpares por solenes cortejos em louvor à família, guiados pela hierarquia da Igreja e inspirados na melhor tradição das cruzadas.

O conflito ideológico transbordava do noticiário e animava as madrugadas da televisão nascente. Luiz Carlos Prestes, Fidel Castro, Carlos Lacerda e numerosos clones de fama local freqüentavam a sala de visita da classe média, despejando bravatas contra as normas de conduta da democracia e da representação do povo.

Revistas na superfície, as peripécias que embalaram o quarto pronunciamento militar da era republicana não sugeriam mudança no padrão do golpe latino-americano. E muito menos da peculiaridade então louvada pelos brasileiros de pura ascendência européia, que, além de discriminar contra os mestiços da América de fala espanhola, se orgulhavam da vocação dos militares deste lado da fronteira para viver enfurnados nos quartéis.

Desde 1889, passando por 1930 e também pela supressão do Estado Novo, em 1945, a tropa apeara administrações desmoralizadas, sem contudo apoderar-se da caneta. Herança do patriarcado escravocrata, este ritual de submissão ao poder civil merecia aplausos, até porque representava objetivamente o motivo real da existência de uma força armada na vida deste país sem inimigos: preservar os direitos de hereditariedade, tanto nos costumes como no traçado da Lei. Esse compromisso pré-capitalista – que por sinal vigora até hoje – entrou na mira da aliança de Jango Goulart. E se tornou o pomo da discórdia.

Os adversários do presidente queriam obter, por quaisquer meios, o poder para redigir um novo contrato nacional, capaz de expressar o dinamismo da vida urbana e da indústria nascente, sem, porém, abrir flanco às idéias distributivas que sugeriam taxação nas heranças e até a partilha do muito que restava das sesmarias originalmente cedidas pela dinastia lusitana. Simultaneamente, os adeptos das chamadas Reformas de Base imaginavam reescrever a Constituição pelo manejo demagógico do referendo popular.

Nesta altura, é bom recordar que todas as sociedades ocidentais, com a exceção reconhecida dos Estados Unidos, padeceram a transição do clã feudal para o Contrato capitalista. Foi assim na Revolução Inglesa de meados do século XVII, quando o rei Tiago I foi decapitado pelos revoltosos de calça curta, liderados pelo republicano Oliver Cromwell, abrindo espaço para uma composição que inaugurou a primeira monarquia constitucional. Foi também com sangue e choques inomináveis que a França superou o absolutismo, depois de 1789. Só a democracia americana nasceu sob o contrato – e assim vive, sem interrupção, por mais de dois séculos.

No Brasil, a primazia dos clãs nunca tinha sido ameaçada. Clérigos, funcionários, fazendeiros, comerciantes, todas as linhagens bem-sucedidas na conquista da terra acharam maneiras de influir para salvaguardar privilégios. Organizações profissionais, reservas legais de mercado, articulações regionais, fórmulas concebidas na Europa medieval acabaram reconhecidas e preservadas aqui em pleno século XX.

Quando as cidades brasileiras começaram a se libertar da tirania rural, seja pela força das migrações internas seja pela mão do Estado, que criou oportunidades nas carreiras públicas e, já na década de 40, aprendeu a produzir e se tornou o principal financiador da indústria e do ciclo de geração de bons empregos urbanos, o sistema de proteção aos direitos hereditários achou que podia, outra vez, reger uma safra controlada de atualizações no texto constitucional, entregando anéis para manter sua jóia mais valiosa, a liberdade absoluta na transmissão dos bens aos herdeiros. Foi por esse troféu que a sociedade de clãs se aproximou da hierarquia militar, em nome da identificação na fé anticomunista – mas guardando a convicção velada de que a intervenção seria outra vez breve e pouco dolorida. Simultaneamente, mobilizou a hierarquia católica, para com ela encenar o ato de contrição que servia para mimetizar espíritos modestos, enquanto a Lei Magna passava no retificador. Contava para isso, naquele momento, com a estrela ascendente de dom Helder Câmara, figura lendária no Rio de Janeiro e recém-promovido para a diocese do Recife.

Na última semana de março de 1964, os clãs estavam a postos. Comércio, lavoura, bancos, grande parte do funcionalismo civil de alto escalão, sólida maioria parlamentar e o vértice da Igreja divisaram a oportunidade quando a hierarquia militar se inquietou pela movimentação ostensiva dos sargentos das três Armas e deu sinal de que se inclinava ao golpe. O que se viu a seguir foi a marcha triunfal de um engano com proporção inédita.

Primeiro, os militares não estavam dispostos a voltar correndo para a caserna. Além disso, tinham idéias próprias acerca do remédio para os males brasileiros. Na realidade, era uma receita simplista, que cabia numa única frase – intervencionismo estatal. E nisso eram antípodas da sociedade de clãs, privatista da gema. Logo, essa contradição suplantaria qualquer afinidade ideológica. O Brasil ingressou num período orientado por medidas de cunho estatizante, cujo maestro foi ninguém menos que o grande ídolo dos liberais, professor Roberto Campos.

A coleta de impostos, que representava 16% da renda nacional no começo da década de 60, subiu para 26% no período autoritário. Tudo era controlado nas repartições federais – do preço das camisinhas ao valor do câmbio, editado a cada manhã no Banco Central. Investimentos, importações, lucros, tudo passava pelo crivo das autoridades. Grandes industriais mendigavam notícias privilegiadas na ante-sala dos gabinetes e, pressurosos, retribuíam esse tipo de favor com donativos para grupos de militares, que suprimiam adversários do regime sob a cobertura de grupos de extermínio da polícia civil.

Também os coadjuvantes dotados de idéias próprias começaram a percorrer caminhos inesperados. Dom Helder Câmara se transformou no símbolo da batalha pela liberdade. Universitários cultuavam mitos guerreiros, músicos e poetas bradavam desafios belicosos. A mídia descobriu que o projeto de restituição do poder aos civis era uma piada entre os chefes militares. E o ritual solene das Constituições se tornou escárnio. Enquanto a República dos civis tinha sobrevivido quase um século debaixo de três Leis Magnas, o regime militar produziu seis textos com pretensão constitucional em menos de 20 anos: Ato 1 (1964), Ato 2 (1965), Constituição outorgada de 1967, Ato 5 (1969), Revisão Constitucional de Abril de 1977 e Revogação do Ato 5 (1978).

Aliada sólida e leal, os militares só contavam com a classe média, que nos primeiros dez anos do regime autoritário progredia aceleradamente. Também se alinhou a horda dos excluídos, considerada exército de reserva da mão-de-obra, aquelas dezenas de milhões de lavradores sem terra que migravam para a franja das metrópoles em busca de emprego com registro em carteira. O sindicalismo só reapareceu já no fim dos anos 70, quando a inflação voltou a botar fogo no poder de compra das famílias pobres.

Nesse momento, também o capital encontrou seus motivos para desertar. As fotos das manifestações gigantescas em favor das eleições diretas, movimento que tomou as ruas em março de 1984, exatos 20 anos depois que as damas fervorosas e os redutos familiares tinham marchado em defesa da família, revelam uma sociedade totalmente diferente. Jovens de pele mais escura gritavam versos de civismo leigo, no mesmo lugar em que as preces extremadas reclamavam apoio celestial em 1964.

Os últimos governantes militares literalmente fugiram com medo dos aldeões. Um Boeing 707, pintado com as cores da Varig, permaneceu estacionado na pista do aeroporto de Brasília durante boa parte de 1984. Pertencia ao governo, mas ficava lá disfarçado, em todo caso pronto para decolar, levando o vértice do poder. O saldo intelectual do pessoal da Defesa após a experiência de 20 anos no poder é a consciência de que o treinamento do soldado profissional não é suficiente para formar bons governantes. Além do reconhecimento silencioso de que seu desempenho ficou abaixo da média, que já não é brilhante, dos eleitos civis.

Como saldo dessa hecatombe política, salta aos olhos que o impasse constitucional de 1964 impregnou os representantes do povo que receberam mandato para redigir a Constituição de 1988. É a primeira da história brasileira que prevê reparações concretas para a dívida social acumulada em meio milênio. Aposentadoria dos trabalhadores sem documento, garantia de assistência médica e outras providências que compõem a primeira rede de segurança para crises sociais no país foram incluídas no texto e, já depois da estabilidade monetária, são praticadas com eficácia crescente.

A única coisa que não mudou, antes, durante ou depois da ditadura militar, foi a garantia de que heranças passam sem nenhum imposto aos descendentes dos afortunados. Se a medida do sucesso para o Movimento 1964 for reduzida a esse único ponto, é forçoso reconhecer que o Golpe foi um triunfo. Pois ainda está para ser posto na mesa, negociado e subscrito um compromisso social que coloque todos os brasileiros na mesma linha de partida quando recebem a certidão de nascimento. Sociedades contemporâneas requerem igualdade nas oportunidades, ou seja, o princípio oposto à intangibilidade patrimonial. Nisso, o clã está mais forte que nunca.’



Luís Antônio Giron

‘Um homem de sorte’, copyright Época, 29/03/04

‘A novidade na bibliografia sobre 1964 – uma das maiores da História política do Brasil, com duas centenas de títulos – é Jango – Um Perfil (Editora Globo, 288 páginas, R$ 38), do historiador Marco Antonio Villa. A obra desmonta o mito do político gaúcho João Goulart (1919-1976), derradeiro presidente antes do golpe militar. A leitura dominante dos historiadores gira em torno da figura de Goulart como herói injustiçado e paladino constitucional. Villa seguiu outro caminho.’Ignorei as grandes interpretações e fui aos fatos – o material do historiador’, revela. O que ele descobriu em quatro anos de pesquisa não estava nos livros: Goulart ressurge como uma espécie de Forrest Gump, o personagem interpretado no cinema por Tom Hanks. Como ele, Goulart não era dado a idéias nem a projetos, não possuía carisma ou oratória. Mesmo assim, tudo acabava dando certo para ele. ‘Foi um homem de sorte’, define Villa.

Estancieiro em São Borja, Rio Grande do Sul, vizinho de Getúlio Vargas, Jango – apelido familiar – estudou Direito em Porto Alegre e logo subiu como dirigente do Partido Trabalhista Brasileiro, levado por Getúlio. Quando o ditador caiu e se exilou no Sul, Jango serviu-lhe como conselheiro e administrador de suas fazendas. Coordenou a campanha de 1950 que reconduziu Getúlio ao poder e se tornou ministro do Trabalho. O suicídio do padrinho lhe deu mais sorte ainda porque passou a figurar como seu herdeiro político. Assumiu a Vice-Presidência nos mandatos de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. Este renunciou, em agosto de 1961, e Jango tomou posse, aos 42 anos. O ciclo virtuoso acabou aí. Segundo o historiador, Jango cedeu aos parlamentaristas para não perder o poder, criou programas de reforma inviáveis e demagógicos e jogou contra a Constituição. Ajudou, enfim, a desmoralizar a democracia. Exilou-se no Uruguai e comprou fazendas. Gostava de beber, jogar e de vedetes do teatro. Morreu de infarto na Argentina, sem ambições políticas. O livro ensina que Jango se revelou um excelente fazendeiro, mas, como presidente, um desastre.

MEMÓRIAS DA GUERRILHA

O texto claro e simples do jornalista Ottoni Fernandes Júnior contrasta com a escuridão e violência do tempo que ele descreve. Em O Baú do Guerrilheiro (Record), Ottoni narra seus quatro anos de militância política e seis de prisão. É o retrato de um beco. Jovens na clandestinidade, esgueirando-se em fuga até a ratoeira da repressão. Isolamento completo. As idéias que animaram estudantes a enfrentar a ditadura passam a valer pouco nas ações da esquerda armada. Companheiros só se encontram na preparação dos assaltos. E depois, presos e torturados, não conseguem confiar nem mesmo nos parceiros de cárcere. Ex-militante da ALN, de Cláudio Marighella, Ottoni faz um relato impressionante daqueles anos.’



Leandro Loyola

‘Bom de conspiração’, copyright Época, 29/03/04

‘O marechal cearense Humberto Castello Branco sempre atuou com extrema discrição. Primeiro presidente militar a governar o país após o golpe de 1964, morto em 1967, teve sua figura ofuscada pelas marcas de seus sucessores: a violência de Costa e Silva, o milagre econômico de Médici, a abertura de Geisel e as crises de Figueiredo. Pouco analisado pelos historiadores, Castello é revelado agora em uma rigorosa biografia escrita pelo jornalista Lira Neto, conterrâneo do biografado.

Lira pesquisou por três anos arquivos familiares e públicos numa investigação detalhada. Teve total acesso ao baú da família da viúva, Argentina, com fotos, cartas e documentos. Só não foi recebido por Antonieta, a única filha de Castello ainda viva. Seu trabalho triunfa pelo ineditismo, por revelar, pela primeira vez, em detalhes, o ditador que defendia a curta permanência dos militares no poder e dizia querer entregar a Presidência a um civil, mas foi atropelado pela linha dura que prolongou a ditadura até 1985. Derrotada em sua sucessão, em 1967, sua linha de pensamento só voltaria ao poder em 1974, com Ernesto Geisel.

Um dos grandes méritos da obra é mostrar as contradições da vida de Castello. Ele ficou fora da revolta dos tenentes, em 1922, porque achava que lugar de militar era no quartel, participava de discussões políticas e escrevia virulentos artigos sob pseudônimo. No fundo, Castello revela-se o típico militar de sucesso na ditadura: aquele que combateu pouco, mas conspirou muito, que era ruim de fuzil, mas bom de telefone.

Castello morreu em julho de 1967, quando o avião em que viajava foi atingido por um caça em pleno ar. Lira mostra as lacunas da História: o leme e o estabilizador do avião de Castello, atingidos pelo caça, sumiram, assim como a perícia feita nessas peças. O que restou do avião foi retalhado a machadadas. Tudo isso alimenta até hoje teorias conspiratórias, mas nenhuma conclusão definitiva. ‘O que se pode tirar como moral é que, se não tivesse morrido, ele teria sido uma nota dissonante na ditadura’, diz Lira.

QUATRO VISÕES DE 1964

Na coleção Vozes do Golpe (Cia. das Letras) impera a diversidade. Em A Revolução dos Caranguejos, Carlos Heitor Cony prioriza a ótica pessoal, mas dentro do contexto histórico. Mescla suas lembranças com reprodução de crônicas nas quais cutucava os militares com vara curta. Em Um Voluntário da Pátria, Zuenir Ventura faz o mesmo, mas em estilo de reportagem. Relata o lado anedótico de sua experiência na véspera do golpe para depois fazer uma reconstituição jornalística dos bastidores da quartelada. Moacir Scliar opta pela ficção com traços pessoais em Mãe Judia. Emprega um alter ego para contar a história da mãe de um terrorista que fala em uma capela com a imagem da Virgem. Luis Fernando Verissimo também investe no ficcional. Em A Mancha, narra o encontro de um empreendedor imobiliário com fantasmas de sua história em um prédio abandonado.’