A arte imita mesmo a vida. Se o contrário fosse a verdade, se a vida imitasse a arte, a vida até que teria alguma chance de surpreender os meros mortais porque entre os artistas sempre há aqueles que conseguem escapar do comodismo oficial, da permissividade estética e moral e dos círculos especialistas que oficiam os verdadeiros valores artísticos (será que faltaram maiúsculas?), no melhor estilo eclesial. Mas há poucas surpresas, na vida como na arte, e só isso pode explicar a razão pela qual o Oscar de melhor atriz de 2012 tenho voltado às mãos de Meryl Streep (The Iron Lady) e sequer passado perto de sua legítima possuidora, a atriz Viola Davis, de Histórias Cruzadas (The Help). Eu não gosto de pensar muito nisso, mas já desconfiava que o prêmio iria para a primeira-ministra da Inglaterra, e não para uma empregada doméstica.
Não se trata aqui de acusar qualquer tipo de ideologia nos bastidores da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, nem que seja de cunho cultural e não político. Trata-se de preferência mesmo. É o único modo como eu consigo julgar o trabalho artístico, já que desconheço oficialmente os verdadeiros valores artísticos: pelo gosto. Nem desconfio que seja racismo – basta ver os prêmios já conquistados pelos negros sob as cortinas do Teatro que Não se Pode Dizer o Nome. Na verdade, estou pensando em algo bem pior que isso. Explico.
O que eu penso é que os jurados preferiram “apenas” premiar o certo em relação ao duvidoso. Afinal, quem irá questionar um prêmio destinado a uma atriz do porte de Meryl Streep? Ou pior, deixar de concedê-lo? Essa lógica, esse critério, é tão mais cruel para o cinema e a arte do século 21 que a suspeita de uma ação ideológica no métier artístico. É a lógica da covardia, mesma razão que submete historicamente o talento ao mercado, pise-se ou não no tapete vermelho porque assim é que o show é, como é sabido.
O certo e o errado
Viola Davis não deixará de ser uma grande artista por não ter ficado com a estatueta. Seu papel, dito lacrimoso para alguns, e o filme que estrelou ainda aparecerão muito nos canais de TV. É um filme fácil (assim como deve ter sido fácil tolerar o apartheid não sendo um negro), plasticamente bem acabado e não maniqueísta do ponto de vista da abordagem. Que bom que a TV vai mostrá-lo muito. Há muitas pessoas que deveriam assisti-lo diariamente para entender que o racismo não acontece apenas na imagem cristalizada do negro acorrentado em praça pública dos fins do séc. 19, mas também nos simples gestos do ser humano para com outro ser humano, em lugares tão íntimos quanto um simples banheiro ou um elevador.
Já que o Oscar que não foi para Viola Davis foi para as mãos de Octavia Spencer, pelo seu papel coadjuvante, talvez isso signifique que o filme tenha sido, sob algum ponto de vista, adequadamente premiado. Octavia tem uma ótima atuação e é merecedora do prêmio, não resta dúvida, mas simbolicamente (de onde eu tirei de fazer especulações semióticas sobre um prêmio como o Oscar?) a premiação conferida ao filme coloca o drama racial, como de hábito, em segundo plano, subalternizado como a profissão das protagonistas de Histórias Cruzadas. Muito mais importante é destacar o papel de um político do porte de Margaret Thatcher que, mesmo sendo uma única pessoa, tem uma imagem bem mais visível que toda uma população negra de um país. A lógica diz: premie-se o certo! Destaque-se que a despeito da minha vontade e compreensão, pese isso o nada que pesar.
Não é somente pela premiação de Meryl Streep que me revolto com essa fascínio pela não-ousadia e pela falta de coragem das premiações. No mundo inteiro, e no Brasil também, os prêmios artísticos há muito estão a serviço da premiação dos “confirmados”. Prêmios literários destinados a autores consagrados, financiamentos públicos monumentais a monstros sagrados da música, das artes plásticas e do cinema são um recado claro àqueles que buscam uma nesga de visibilidade no campo da arte e cultura: ponham-se no seu lugar, ó subalternos, observem bem como se faz! O certo era que tivessem a grandeza de declinar dos prêmios que levam e levariam de qualquer maneira, mas o certo e o errado não estão em questão aqui. Afinal, isso é questão da ética, não da arte. E desde que o filósofo Jean-Paul Sartre recusou o Nobel de Literatura, nos idos de 1964, parece que os braços da ciência aristotélica vêm se dissociando de forma cada vez mais definitiva. O Oscar de melhor atriz deste ano apenas é mais uma entre tantas confirmações dessa perspectiva.
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[Lucio Carvalho é coordenador-geral da revista digital Inclusivee autor de Morphopolis]