O órgão inglês de autorregulação da mídia impressa na Inglaterra – a Comissão de Reclamações sobre Imprensa [Press Complaints Commission (PCC)] – está com os dias contados. A PCC vai ser substituída por um órgão interino, até que seja redefinida a nova entidade de regulação dos jornais impressos, um desdobramento quase previsível do inquérito presidido pelo juiz Levenson, que vem levantando toda a sujeira por trás do escândalo das escutas do News of The World.
Alvo de críticas de analistas da mídia importantes como John Kampfner, ex-editor do Índice na Censura (Index on Censorship), o serviço foi acusado de não cumprir seu papel e, quando de sua intervenção, em 2009 – e ali já havia suspeitas de irregularidades – a comissão decidiu que não havia nada de errado. Capachos de Murdoch, pois o homem que quis controlar a mídia inglesa (ou pelo menos boa parte dela) foi favorecido pela impotência ou incompetência do limitado sistema de autorregulação da mídia impressa inglesa.
Os fatos que ocorrem neste momento na Inglaterra no contexto do inquérito Levenson já saíram da atenção da mídia tradicional. Viraram assunto local, mas seus desdobramentos terão alcance global para a mídia do mundo inteiro. Por outro lado, é desconfortável para os adversários da regulação da mídia, impressa, eletrônica ou digital, admitir que um país de imprensa livre e diversa como a Inglaterra mantenha um sistema de regulação forte nos setores eletrônicos e digitais, por meio do Ofcom (Office of Communications, Autoridade para as Comunicações), e um sistema de autorregulação para a mídia impressa, até o momento representado pela PCC.
Inócuo e impotente
Lorde Hunt, presidente da comissão de autorregulação inglesa, declarou ao The Guardian (8/3) que o novo órgão não deverá estar pronto para atuar até o ano próximo, e poderá começar a cumprir suas funções somente em 2014, “caso sejam necessários estatutos para uma unidade de arbitragem com a proposta vigente do serviço de resolução de difamações”. Os jornalistas ingleses já haviam pleiteado uma mudança nas leis sobre difamação, que atualmente sufocam o trabalho dos profissionais da notícia na Grã-Bretanha. O acordo sobre o fechamento da PCC já era consenso na indústria de jornais na ilha e na quarta-feira (7/3) foi formalizado o compromisso.
Por enquanto, a presidência do órgão interino de transição a ser criado ficará vaga, e o trabalho será dividido entre o triunvirato formado por Michael McManus, um ex-conselheiro conservador, o diretor da transição, Jonathan Collet, outro conservador que já foi consultor de imprensa do Michael Howard (outro conservador), e Charlotte Dewar, a chefe de reclamações que já trabalhou para o Guardian. Um grupo majoritariamente tradicionalista foi designado dirigir a transição da autorregulação da imprensa inglesa. O que não é necessariamente um mau sinal. Pode indicar apenas que a tendência é manter a regulação na Inglaterra afastada de normas estatutárias e longe da presença do Estado.
Hunt, que deverá se recandidatar ao cargo de presidente, afirmou também que parte do corpo de funcionários do PCC será mantida, “inclusive o serviço de resolução de reclamações”. No dia seguinte, ainda falando ao Guardian, ele declarou que o novo órgão não será inócuo e impotente como o PCC, mas garantiu que haveria de persuadir as casas publicadoras e proprietários de jornais a “subscrever e pagar pelo novo órgão, um regulador ‘com dentes’” (ver “Press Complaints Commission to close in wake of phone-hacking scandal”, 8/3).
“Braço separado”
Se Lorde Hunt acredita que empresários da imprensa vão vigiar e punir seus próprios interesses, vai estar dentro do papel previsível de alguém interessado em mudanças a partir do topo e que quer manter as coisas no lugar. Fazer uma faxina rigorosa e continuar como se o escândalo que abalou a mídia mundial nunca tivesse acontecido. A verdade é que os ingleses estão divididos: não há como resolver os casos das retrógradas leis antidifamação, e das superinjunções jurídicas sobre a imprensa, que obrigam as publicações a avisar a todos os que têm dinheiro para dispor deste recurso jurídico que estão sob investigação, com tempo suficiente para que os investigados possam impedir na justiça a publicação da matéria.
Hunt também avisou que “a liberdade de expressão não é direito divino”: “O povo britânico merece uma imprensa que leve a sério suas responsabilidades, ao reconhecer que a preciosa liberdade é um privilégio, e não num direito dado por Deus”, acrescentou. Hunt me confundiu aqui: a liberdade de expressão é um direito, ou privilégio? Há uma grande diferença entre os dois. Seu discurso parece aristocrático demais, ao submeter o povo das ilhas britânicas a privilégios impostos na forma de direitos. Quem conhece um pouco a monarquia inglesa sabe por que os franceses sempre a acusaram por usar as liberdades civis para fortalecer seu próprio poder e a perpétua legitimação do poder da coroa.
No mesmo dia, a BBC publicava matéria que deixava bem claro que os profissionais que fazem a análise da mídia inglesa acreditam que a autorregulação é insuficiente para resolver os problemas da imprensa na ilha. A secretária da União Nacional dos Jornalistas, Michelle Stainstreet, declarou que “em 40 anos, foram dadas todas as chances a autorregulação, e esta falhou no teste em todas as oportunidades”. A BBC também informou que o novo regulador terá “um braço separado para supervisionar padrões e conformidade, e poderá multar publicadores por graves violações” Foi isso o que Lorde Hunt quis dizer com “regulador com dentes” (ver “BBC News – Press Complaints Commission to close before Leveson report”).
O anátema de qualquer regulação
Em seus 21 anos de vida, a PCC pouco fez pela imprensa inglesa além de apresentar alta complacência com os erros da mídia impressa. Seu fechamento assinala os limites da autorregulação na Inglaterra. Aqui no Brasil, nem a autorregulação é bem-vinda. Compreendo bem o principal motivo daqueles que não querem nenhum tipo de regulação para a mídia impressa: o medo de a politização de algum órgão estatutário estabelecer regras e comportamentos de seu interesse político para a imprensa do país. Só que a autorregulação não depende do Estado para formar seus quadros: os membros do órgão regulador são oriundos da indústria e das publicações, que também financiam a agência para que a mesma tenha independência relativa da indústria dos impressos.
Um bom exemplo disso é o Conar. Fundado a partir do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária em 1978 diante da ameaça da censura prévia, o setor de publicidade decidiu pela autorregulamentação para quebrar o ímpeto dos censores que ameaçavam a liberdade de expressão das agências. Surgiu o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Todo isso aconteceu durante a ditadura, no final dos anos de 1970. O governo estava firme em seu propósito de estabelecer censura prévia na publicidade, mas foi convencido pelo trabalho de respeitáveis publicitários que o conselho daria conta do recado sem necessidade de censura prévia.
Os opositores da regulação da mídia impressa devem ter a garantia que não serão submetidos a órgãos estatutários. E que o próprio setor pode regular a mídia impressa. Mas este não parece ser o interesse nem dos donos de publicações, nem dos jornalistas. Muitos entendem a autorregulação, ou qualquer tipo de regulação, como ingerência estatal na imprensa. E seu medo é compreensível, até certo ponto: muitos políticos já andaram a falar o que não deviam, criando um falso consenso que vê como anátema qualquer tipo de regulação. Ou uma falsa imagem de um comitê estatal fiscalizador da imprensa. Por isso não querem regulação alguma.
Não há liberdade sem regulação
Mas quando não há nenhum tipo de regulação institucionalizado, prevalece a regulação dos grandes monopólios da mídia. Que cria um cenário no qual a liberdade de imprensa fica subordinada aos interesses da grande mídia. Não há paisagem midiática sem regulação. Principalmente nos setores das mídias eletrônicas e digitais. Na Europa e nos Estados Unidos a regulação estatutária destes setores é a regra: o FCC nos Estados Unidos, o Conselho Nacional de Audiovisual em França e o Ofcom na Inglaterra têm poderes de intervenção, convocação e punição para arbitrar conflitos entre os interesses das empresas, população e sociedade. E coibir abusos por parte das companhias destes setores.
Não estou certo das vantagens da regulação pelo Estado da mídia impressa. Mas aceitar o domínio absoluto das grandes empresas é sinal de subserviência ao grande capital. Pelo menos a autorregulação deveria ser considerada para a imprensa brasileira. Foi por este caminho que a publicidade brasileira, em plena ditadura, decidiu regular a si mesma, evitando a presença do governo e a ameaça da censura. Não há liberdade de imprensa sem regulação. Ou autorregulação. Queriam ou não os adversários desta, é melhor controlar de dentro os abusos e arbítrios equivocados da imprensa do que ter que aceitar, por força de lei, a regulação do Estado.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]