Nas democracias modernas, onde há uma efetiva preocupação com a legitimidade dos governos – e a ação política destes é pautada pelo interesse público –, cada vez mais os cidadãos são chamados a participar da tomada de decisões no planejamento a curto, médio e longo prazo, para que haja uma aplicação correta dos recursos públicos. Mas como a sociedade vai usar esses recursos que ela mesmo destina para serem utilizados em prol de todos?
No Brasil, a falta de pluralidade e diversidade constatadas na mídia esvazia a dimensão pública dos meios de comunicação. Um conjunto de regras que poderá garantir a democratização dos meios está para ser criado – e precisará organizar uma arquitetura institucional democrática.
Na Plataforma de 20 pontosessenciais para compor um novo marco regulatório para o país elaborada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) – com a participação da sociedade e a partir das resoluções da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) –, um “esqueleto” institucional é o primeiro item apontado, aquele que desenha o espaço para se discutir a estrutura formal, os mecanismos institucionais de regulação para o setor. Veja a seguir.
Arquitetura institucional democrática
De acordo com as propostas de plataforma do FNDC, a organização do sistema nacional de comunicações deve contar com:
** Um Conselho Nacional de Comunicação, com composição representativa dos poderes públicos e dos diferentes setores da sociedade civil (que devem ser majoritários em sua composição e apontados por seus pares), com papel de estabelecer diretrizes normativas para as políticas públicas e regulação do setor;
Seja da área que for, um Conselho público é a tradução de um governo legítimo, que trabalha com a participação da sociedade em prol do interesse comum, explica a cineasta Berenice Mendes, integrante da Coordenação Executiva do FNDC. “A sociedade, ao participar de um conselho, passa a decidir, colaborar com a decisão do uso dos recursos públicos naquela área específica. Ao mesmo tempo, ela também está sendo responsabilizada pelas decisões que vão ser tomadas sobre o uso desses recursos. É uma via de mão dupla. Se, por um lado, ocorre uma maior fiscalização da população dos atos de governo, dos ministérios, das agências; por outro, existe a responsabilização da sociedade. Há um amadurecimento da cidadania. Isso é fundamental”, reflete Berenice.
O sistema dos Conselhos existe em vários países com democracias consolidadas e serve de exemplo para o mundo, lembra Venício Lima, jornalista, sociólogo e professor aposentado da UnB. Ele destaca o caso da Inglaterra, onde um conselho independente, autônomo e com participação dos diferentes setores interessados – governo, sociedade civil, legisladores – define há décadas a política pública da área das comunicações.
Mas os Conselhos de Comunicação Social, nacional ou regionais, são sempre combatidos pela grande mídia – e até por políticos – como se fossem organismos criados para “controlar o conteúdo, privar a liberdade de expressão”. “Faz parte do velho anseio das classes empresariais da comunicação brasileira não quererem sua atividade regulada de forma alguma”, destaca Berenice. Um organismo como este, diz ela, tem que ser um guardião dos preceitos constitucionais e das leis específicas que regem a comunicação no Brasil. A cineasta acentua, porém, que não basta apenas criar um Conselho se não houver instrumentos legais, jurídicos, uma atualização da legislação “para que todo mundo saiba como se portar.”
No país, o Conselho de Comunicação Social (previsto no artigo 224 da Constituição Federal de 1988, instituído em 2002 e inativo desde dezembro de 2006), no âmbito do Congresso Nacional, era meramente consultivo, de suporte especializado aos congressistas sobre os temas afetos à comunicação, relata Berenice. “O CCS sequer era propositivo, muito menos deliberativo. E ainda assim, como não havia instrumentos para estabelecer que, efetivamente, deveria ser ouvido, o Conselho, enfim, não conseguiu atuar”, relata Berenice, que foi conselheira nas duas gestões do CCS (2002 a 2006), representante da categoria profissional dos artistas.
Conselhos locais
** Estados e municípios poderão constituir Conselhos locais, que terão caráter auxiliar em relação ao Conselho Nacional de Comunicação, com atribuições de discutir, acompanhar e opinar sobre temas específicos, devendo seguir regras únicas em relação à composição e forma de escolha de seus membros. Esses Conselhos nos estados e municípios podem também assumir funções deliberativas em relação às questões de âmbito local;
Conselhos locais (regionais – dos Estados e dos municípios) decorrem da necessidade do modo de organização político-administrativa do Estado brasileiro. “Somos uma Federação. A Constitução Estadual segue a Federal, as constituições municipais seguem as estaduais e a federal, é esse o nosso modelo de organização. Ao reproduzi-lo, temos inclusive uma função pedagógica de educação para a cidadania”, explica a ex-conselheira. Quando se forma um conselho municipal e a pessoa, o clube, as organizações locais são chamadas a participar, vão ter oportunidade, mais do que reclamar das coisas que não estão bem, também de propor. “É um espaço para refletir, não para uma crítica vazia”, afirma a cineasta.
Venício lembra que os conselhos, como órgãos de formulação e acompanhamento das políticas regionais, funcionam no Brasil para vários setores de direito, após a Constituição Federal de 1988, e alguns até antes. “Só a lei orgânica do Distrito Federal, aprovada em 1993, havia previsto 17 conselhos espelhados no que a Constituição de 88 definiu como 'forma de descentralização administrativa e de participação democrática'“, exemplifica.
O professor destaca o atraso do país sob o ponto de vista institucional da comunicação: “Infelizmente, no Brasil, essa discussão chegou num impasse e não conseguimos avançar. Velhos interesses continuam encastelados, e os grandes grupos de mídia ainda conseguem controlar a agenda pública dos debates”, destaca ele.
Um exemplo citado por Venício desse aspecto corporativo da grande mídia é a recente campanha publicitária da Sky (que o FNDC considera velada e falaciosa – leia aquio manifesto) contra a Lei 12.485/2011 (da TV por assinatura), dizendo que a Ancine (Agência Nacional de Cinema) quer tomar o controle remoto da mão do consumidor. “Isso é uma mentira absurda. Essa lei foi formulada, votada, aprovada e sancionada democraticamente. Mas as grandes operadoras de TV por assinatura têm a capacidade de dar visibilidade a assuntos dentro de um enquadramento que interessa a elas. É uma disputa desigual e desonesta. Quem quer continuar tendo o controle remoto na mão é a própria Sky. É ela que define o que as pessoas vão ver”, acentua o professor.
Órgãos reguladores
** Orgão(s) regulador(es) que contemple(m) as áreas de conteúdo e de distribuição e infraestrutura, subordinados ao Conselho Nacional de Comunicação, com poder de estabelecimento de normas infralegais, regulação, fiscalização e sanção; e o Ministério das Comunicações como instituição responsável pela formulação e implementação das políticas públicas;
Renata Mielli, integrante da Coordenação Executiva do FNDC, onde representa o Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé, destaca que, na política de comunicação, há duas dimensões que precisam ser acompanhadas – a infraestrutura, que é a plataforma onde se assentam os meios, as redes; e a dimensão do conteúdo do que é veiculado. De acordo com a arquitetura que temos hoje no Brasil, existem duas agências que respondem por essas dimensões: a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), que regula a infraestrutura, e a Ancine, (Agência Nacional de Cinema), de regulação do conteúdo.
As agências, na proposta do FNDC, fazem parte do sistema de comunicação que deve ter um diálogo permanente – com o Ministério das Comunicações, com o Conselho Nacional e a Conferência – aplicando aquilo que é aprovado no Legislativo.
“Hoje, o Brasil segue o modelo das agências reguladoras para os diversos setores da sociedade – como na área da energia elétrica, de transportes, aviação. As agências acompanham e regulamentam a execução das políticas em cada setor. Então, têm um papel fundamental para garantir que cumpram aquilo que está previsto por lei”, explica Renata. O FNDC propõe encarar a comunicação como um sistema integrado – e não de forma isolada. “A infraestrutura tem que dialogar com o conteúdo, servir a ele, como um sistema integrado. As agências reguladoras fazem parte desse sistema”, reforça Renata.
Ministério
*** Ministério das Comunicações como instituição responsável pela formulação e implementação das políticas públicas;
A função de um ministério é a de formulador das políticas públicas – amplamente forjadas pelos seus técnicos especializados, de alto gabarito – para ser implementadas e executadas pelos órgãos de execução. “A gente sabe que o Ministério das Comunicações, pela instrumentalização política que sofreu ao longo do tempo, em especial pelas empresas privadas de televisão ou de radiodifusão, foi sendo esvaziado. Ficou durante muito tempo como um órgão de barganha política e de defesa dos interesses da radiodifusão”, reflete Berenice.
De acordo com a cineasta, é recente – especialmente no período do governo da presidente Dilma Rousseff – uma efetiva ação no sentido de recompor essa equipe, reaparelhar o ministério. “Mas ainda falta muito. Não existem muitos quadros, esta área precisa de formação, de concurso, de técnicos especializados para trabalhar projetos de política pública do mais alto nível, que possam dar suporte ao cumprimento de uma legislação avançada, moderna, convergente, à altura do que os novos tempos estão exigindo”, pondera a ex-conselheira.
Conferência de Comunicação
** Conferência Nacional de Comunicação, precedida de etapas estaduais e locais, com o objetivo de definir diretrizes para o sistema de comunicação. Este sistema deve promover intercâmbio com os órgãos afins do Congresso Nacional – comissões temáticas, frentes parlamentares e o Conselho de Comunicação Social.
A Confecom é um grande marco. Denunciou a ampla necessidade da população falar, de participação da sociedade. Mas, a partir do momento em que houver a modernização da legislação, a conferência não precisa ser amiúde, esclarece Berenice. “Poderá ser um grande evento de avaliação e de correção de rotas que pode se dar a cada três ou cinco anos, para avaliação do que foi acertado ou errado, o que precisa ser corrigido, onde podemos avançar. Um grande evento de monitoramento amplamente negociado entre todas as partes – sociedade civil empresarial e não empresarial, legislativo e governo. Acho que essa é a grande importância da Conferência”, ressalta ela.
Esses organismos formarão uma estrutura institucional necessária para o setor. A comunicação não é algo à parte da vida do país, tem que ser tratada como todas as outras atividades de importância empresarial e social. “Gera emprego, envolve recursos, precisa de investimentos, com uma especificidade, que é a de formar opinião e informar a população. Isso faz com que tenha uma necessidade de legitimação maior, a partir de um arcabouço legal que possibilite a democratização da atividade”, afirma Berenice.
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[Ana Rita Marini, do FNDC]