Ao chegar em casa, Luke Harding, correspondente do jornal britânico Guardian em Moscou havia três meses, viu a janela do quarto do filho de sete anos escancarada. Apenas por dentro era possível abri-la. O apartamento, no décimo andar, só podia ter sido invadido. A quantia em dólares equivalente a dois aluguéis, guardada numa vasilha na cozinha, não foi tocada. Nada foi danificado. A janela aberta naquele abril de 2007 era apenas um de uma série avisos. Duas semanas antes, Harding entrevistara o dissidente e bilionário russo Boris Berezovsky, exilado na Inglaterra com pretensões políticas. De Moscou, enviou informações para um texto do Guardian.
Depois da reportagem e da invasão, Harding foi chamado à prisão de Lefortovo para explicar à FSB (agência de inteligência russa, substituta da KGB) sua participação no texto. Nos tempos da União Soviética, era para lá que a KGB enviava os “inimigos do Estado”. Harding foi liberado e o caso foi encerrado. Nem por isso deixou de ser perseguido e “tratado pelo Estado como James Bond”. As invasões à sua casa se tornaram recorrentes. Numa delas, apareceu no quarto do casal um manual de sexo tântrico – deixar material pornográfico na casa de pessoas malquistas era praxe da KGB. Ex-correspondente do Guardian em Nova Déli e Berlim, enviado do jornal ao Afeganistão, ao Iraque e à Líbia, Harding, 44, foi deportado da Rússia em 2011, tornando-se o primeiro jornalista ocidental a ser expulso do país desde o fim da Guerra Fria.
Em 2011, Harding teve publicado no Brasil WikiLeaks – A Guerra de Julian Assange contra os Segredos do Estado [Verus, trad. Ana Resende, 328 págs., R$ 34,90], em coautoria com David Leigh. No fim do ano passado, saiu na Inglaterra outro livro dele, Mafia State [Guardian Books, 310 págs., US$ 10 o e-book], relato de como virou “inimigo da brutal nova Rússia”. De Londres, Harding deu entrevista por telefone à Folha sobre os quatro anos em que foi correspondente em Moscou.
“O livro é uma pequena vingança”
Antes das eleições de 2008 na Rússia, desmantelou-se um suposto atentado contra Vladimir Putin. Semanas atrás, houve outra tentativa. Quem quer tanto matá-lo?
Luke Harding – Como a maioria das pessoas que pensam na Rússia, sou cético em relação a esse plano de matar Putin. O momento em que isso ocorreu é suspeito. Ninguém deveria levar isso a sério. O local onde a suposta tentativa de matar Putin ocorreu, Odessa, fica longe de Moscou, em outro país [Ucrânia]. Isso me parece uma bela peça de propaganda para atrair simpatia a Putin para a eleição do último domingo, que não foi fácil para ele. Mas, enfim, se tiver sido verdade, não seria possível afirmar com certeza quem o planejou. A Rússia convive com uma série de crimes arquitetados por mafiosos. Isso é comum no país.
Você chegou a Moscou com a ideia de escrever um livro ou ela veio depois das invasões ao apartamento?
L.H. – Sempre evitei ser parte da notícia, meu trabalho é reportar informações, não fazer parte delas. Mas, após a primeira invasão e a “visita” à prisão de Lefortovo, ficou claro que eu vivia algo grande. Depois de três meses em Moscou, encontrei [o porta-voz do Kremlin] Dmitri Peskov. Ele me disse que a Rússia vivia uma “democracia suave”. Mesmo com uma oposição fraca, depois de muitos anos sob o comunismo, o país estava no rumo certo, disse ele. Era uma mensagem clara para mim e para quem praticava o mesmo tipo de jornalismo que eu na Rússia. Logo depois me vi numa situação digna de peça da Guerra Fria, sendo tratado como James Bond. Todo jornalista ocidental é tratado como espião, inimigo do Estado. Quando fui à prisão, fiz anotações, que dias depois desapareceram. Alguém invadiu minha casa e as levou. Então fiz outras e escondi numa pasta de exames médicos. Primeiro pensei numa reportagem, depois num longo artigo. Quanto mais dificultavam meu trabalho, mais eu queria escrever. Até que, ao ser deportado, numa cela no aeroporto de Moscou, sentindo a maior raiva que já senti na vida, pensei: “Isso agora vai virar um livro.” Acho que o livro também é uma pequena vingança.
“Até diplomatas conviviam com invasões domiciliares”
Você cita uma bibliografia repleta de livros de correspondentes na Rússia. É uma tradição escrever sobre a experiência em Moscou?
L.H. – É verdade. Um ex-correspondente do Guardian, Malcolm Muggeridge, que escreveu Winter in Moscow [inverno em Moscou] há quase 80 anos, foi uma inspiração. Mas acho que Mafia State é bem diferente dos outros livros de correspondentes na Rússia. A maioria recorre à análise do país. Eu quis dar um caráter impressionista, passar o que as pessoas sentem, suas incertezas, dar espaço às pessoas num país onde o sistema legal não funciona bem e as autoridades são corruptas.
Quão importante o WikiLeaks foi para a realização do livro?
L.H. – Tive sorte por ser parte do time do Guardian que teve acesso em primeira mão aos documentos que vazaram via WikiLeaks. Comecei a lê-los em novembro de 2010. Foram importantes porque eu tinha só minhas impressões sobre o Estado na Rússia e então pude saber o que diplomatas americanos pensavam sobre a situação por lá. O país era descrito como uma cleptocracia, com uma corrupção primitiva em Moscou, com prisões secretas em outros países. Tudo o que eu sabia em off, eles falavam entre si. Em público os diplomatas eram discretos, mas entre eles não tinham papas na língua. Os papéis validaram dados que eu só sabia informalmente. E saber o que eles diziam sobre a FSB confirmou o que minha família e eu vivíamos. Foi curioso saber que até diplomatas conviviam com frequentes invasões domiciliares.
“A Rússia continua sendo um lugar chauvinista”
A edição russa do livro já saiu?
L.H. – Os direitos foram adquiridos por uma editora que ainda não o publicou. É ótimo que tenha interessado a uma editora russa, mas gostaria de crer que será publicado [risos]. Há obstáculos para isso, mas acho que ainda haverá a edição russa. Há um público imenso interessado em ler o livro em russo.
Você cobriu conflitos no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. De que forma é possível comparar essas experiências com a da Rússia?
L.H. – O que tornou a Rússia difícil foi a guerra psicológica. Ela foi arquitetada para me atingir, ao passo que em uma guerra de fato a situação é mais caótica e mais diluída. Na Rússia, se você é crítico ao governo, a inteligência o persegue. Se você fica quieto ou abandona o trabalho, nada acontece com você. O problema é quando escreve coisas que desagradam ao Kremlin, aí eles começam a combater você das maneiras mais abusivas.
Sua mulher, Phoebe Taplin, jornalista free-lancer, sofreu retaliações por causa das reportagens que você fez?
L.H. – Não. Ela manteve o sobrenome de solteira, o que ajudou. E a Rússia continua sendo um lugar chauvinista. Só homens comandam o país e eles não consideram as mulheres tão importantes. Desde que fui deportado, Phoebe esteve três vezes na Rússia, inclusive para lançar um livro sobre Moscou. Eu não posso entrar no país. É claro que, quando que a FSB invadia nossa casa, ambos sofríamos. Quase sempre, para conversar em privado, tínhamos de ir para perto de uma ameixeira no jardim, onde sabíamos que não seríamos ouvidos pelos agentes. No começo é aterrorizante saber que seu quarto está grampeado, mas depois você até faz piada.
“Excelentes jornalistas trabalham na Rússia”
Gostaria de encontrar os agentes que invadiram seu apartamento?
L.H. – Não sinto saudades dos meus “convidados não convidados”, mas pensei neles ao começar o livro. Se pudesse, teria conversado com eles. Não para tirar satisfações do tipo “que merda vocês estavam fazendo na minha casa?”, mas para tentar entender por que eu era tratado como James Bond. Eles devem achar o trabalho deles grandioso e patriótico ou que é um emprego tão normal quanto ser bombeiro. Sei que eles são treinados para perseguir o “mal do Ocidente”, que sofrem lavagem cerebral e que, por isso, fui tratado como espião. Mas queria conhecê-los para saber como isso funciona.
Você faz uma crítica a alguns colegas em Moscou, em especial aos que têm famílias russas. Só eles são suscetíveis à autocensura?
L.H. – No tempo em que fiquei em Moscou, muitas organizações de mídia, inclusive a BBC, eram relutantes em publicar histórias que poderiam chatear o Kremlin, em especial sobre corrupção no alto escalão e a fortuna particular de Putin. Mas é importante ressaltar que excelentes jornalistas trabalham na Rússia, muitas vezes em condições difíceis. Quero salientar que a grande imprensa é mais vulnerável às intimidações da FSB e fica naturalmente preocupada com a chance de ter suas sucursais fechadas ou não conseguir vistos. Isso é compreensível.
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[Guilherme Brendler é redator da “Ilustríssima”]