Devo confessar: naqueles anos da primeira metade da década de 1960, os colegas das outras redações tinham uma certa inveja daquele punhado de jornalistas, quase todos entre 20 e 25 anos e pouco tempo de experiência profissional, que trabalhavam no Jornal do Brasil, sucursal de São Paulo. Todas as portas se abriam para eles, como se o “aqui é fulano, do Jornal do Brasil” fosse uma senha mágica.
Eles tinham razão. O chefe da sucursal Eurilo Duarte chefiava uma equipe que tinha Ebrahim Ali Ramadan, Laerte Fernandes, Carlos Brickmann, Rolf Kuntz, Bernardo Lerer, Alberto Beutenmuller, os estagiários Guilherme José Duncan de Miranda e Miguel Jorge, e os fotógrafos Wilson Santos, Osvaldo Maricato e Manoel Mota. E, acima de todos nós, o editor chefe Alberto Dines.
Tudo o que Dines realizou na imprensa brasileira é fruto de sua inquietude e de sua certeza de que o jornalismo sempre pode mais, de que o repórter sempre pode se renovar, de que o texto sempre pode melhorar, de que é sempre possível descobrir novas formas de contar os fatos. Por isso, e para isso, escreveu o “Jornal dos Jornais”, na Folha de S.Paulo, e, depois, o Observatório da Imprensa. Por isso instituiu os Cadernos de Jornalismo. E com isso queria mostrar que jornalismo é uma ciência. Desta forma ele pretendia que os jornalistas se mirassem no próprio espelho e montassem sua autocrítica de modo a fazê-los pensar.
Reações, detalhes
Essa inquietude e o desejo de inovar e renovar nós sentimos – e aprendemos – na sucursal de São Paulo do Jornal do Brasil. Um dia, lá pelo final de 1964, Eurilo Duarte nos avisou que Dines viria a São Paulo para uma reunião com a redação. Naquela tarde ninguém saiu da sucursal que ocupava metade do segundo andar de um edifício na Rua Barão de Itapetininga. A outra metade, e alguns andares, eram da Petrobras.
Dines veio nos dizer que os dois parágrafos de lead e sublead, que fizeram parte das mudanças gráficas e de texto do jornal, estavam superados. “Vamos mudar”, disse ele, sentado ao lado de Eurilo, do pauteiro Laerte Fernandes e do chefe de reportagem Ebrahim Ali Ramadan, enfiado na elegância de um terno bege, camisa e gravata combinando. “A partir de agora nossas reportagens serão escritas como se contássemos uma história. Nos Estados Unidos já é assim. Lá tem o story. E vamos começar a experiência por aqui, pela sucursal de São Paulo. Dentre as redações do JB esta é a mais indicada para essa tentativa de inovação”.
Ele certamente se referia aos textos antológicos de Gay Talese, repórter do New York Times, por exemplo. E mais: ele estimulou a que os repórteres conversassem por telefone – ou telex – com seus respectivos editores, no Rio. Afinal, a economia, por exemplo, se movia em São Paulo, e seria normal que o repórter falasse com seu respectivo editor. Eu mesmo fazia um relato do que iria escrever ao editor de política Heráclio Salles, e muitas vezes minhas informações iam parar na sua coluna “Coisas da Política”.
Dines, o Jornal do Brasil e o jornalismo não se arrependeram. Ao nos propor que se contasse uma “história”, que os textos fossem eles mesmos uma “história”, ele sugeria que os repórteres tinham autonomia e uma certa independência de relatar os fatos tal como eles os viam, e de interpretá-los e de contextualizá-los. As cinco perguntas básicas também seriam respondidas pelos repórteres ao seu jeito e modo, e não apenas pelos fatos e nem somente por seus agentes, e pacientes.
Ele demonstrou a importância de descrever o ambiente, de observar reações dos entrevistados e de atentar para os detalhes, muitas vezes bem mais reveladores do que “fulano disse etc., etc.”.
Assim, aqueles poucos repórteres realizaram coberturas memoráveis.
Tudo mudou
Ao contar o assalto à luz do dia a uma agência bancária na Praça do Patriarca, centro de São Paulo, as informações da polícia foram um apêndice do texto de Ebrahim Ramadan, que entrevistou os moradores de uma vila no Bixiga, testemunhas do encontro de uma parte da quadrilha com outra e do transbordo dos sacos de dinheiro de uma Kombi para outra.
Haveria eleições presidenciais em 1965 e Rolf Kuntz relatou um comício de Carlos Lacerda, promovido pela extinta UDN, seu partido, na Avenida Paulista. Em vez de começar relatando o que o candidato disse, Rolf preferiu tratar da elite que habitou aquela avenida e Lacerda queria reconquistá-la depois de o golpe de 1964, que ela ajudara a deflagrar, ter se apoderado dela.
Na mesma época, com a diferença de dias, Lacerda fora a uma reunião com os janistas, em uma residência da Rua Jacarezinho, no Jardim Paulistano, e cujo morador tinha como vizinhos o senador Auro Moura Andrade e o jurista Luis Antonio Gama e Silva, um falcão que viria a ser ministro da Justiça do general-presidente Arthur da Costa e Silva e um dos redatores do AI-5. Lacerda passou a reunião toda apelando pelo apoio dos janistas, com os cotovelos sobre os joelhos, as mãos juntas, em feitio de oração. Assim eu o descrevi no texto publicado numa edição de domingo do Jornal do Brasil, dividindo a primeira página com Brigitte Bardot em Búzios, no litoral norte fluminense.
Quando Charles de Gaulle veio a São Paulo, apenas três repórteres, um dos quais Miguel Jorge, contaram a história em primoroso texto de uma única página e no qual o factual perdia para os detalhes e para o ambiente que cercou a visita do velho general.
Elizete Cardoso desvirginou a erudição do Teatro Municipal de São Paulo num concerto de música popular. Fui designado para cobrir a apresentação dela e a reportagem seria publicada dois dias depois, no “Caderno B”. Para o Jornal do Brasil, o fio condutor do espetáculo foi uma rosa branca com a qual ela entrara no palco; deixou-a em cima do piano e saiu com ela já meio murcha, apertada contra o peito, como troféu da vitória da música popular.
Ainda em 1965, o editor de política mandou que apurasse a veracidade de um encontro que haveria no centro da cidade. De fato, haveria o encontro, e dois de seus protagonistas chegaram para a reunião de helicóptero. De helicóptero? Sim, um helicóptero que aterrisou cerca de 21h de um dia de semana no meio da Praça Roosevelt. O helicóptero contou uma história no texto do dia seguinte, no JB.
Há muitas outras.
O jornalismo brasileiro mudou muito depois disso, o que também explica o fato de toda a sucursal de São Paulo ter sido convidada a participar do projeto e formar o núcleo de outra revolução na imprensa brasileira, o Jornal da Tarde, dirigido por Mino Carta e Murilo Felisberto.
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[Bernardo Lerer é jornalista]