Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O artista que vivia no futuro

Lendo as histórias escritas e desenhadas por Moebius, encontra-se protótipos do que hoje conhecemos como GPS (ele chamava de “calculadoras-memórias”), alimentos transgênicos, TVs de LCD, cérebros eletrônicos, próteses ultrassofisticadas. Seus heróis têm cortes de cabelo de punks interplanetários, e às vezes se comunicam em “supercódigos de comunicações militares” (lembrem-se que a internet nasceu no Pentágono).

Tudo isso já estava presente nas histórias que Moebius desenhou e escreveu nos anos 1970, para a lendária revista Métal Hurlant. Entretanto, as visões futuristas de Jean Giraud, o Moebius, não estavam a serviço apenas de um funcionalismo formal. Pelo contrário: Moebius procurou combater no mundo do ativismo político com armas inventadas com saber e com sabor. Era um ambientalista irônico, que sabia que a humanidade armava um armagedon sem precedentes – sua luta era alertar os mais sabidos. Em seus mundos inventados, os habitantes defrontaram-se com autoritarismo e totalitarismo em suas diversas formas, com titãs sexuais fugindo desesperadamente de uma Polícia Antifornicação – como nas distopias geniais de Aldous Huxley e Philip K. Dick. Ironia, sarcasmo, humor negro.

O traço de Moebius, fundado numa grande liberdade de desenho, com o trabalho direto na tinta, sem esboço nem roteiro preconcebido, parecia projetá-lo como um precursor da estética new age, uma sinfonia sensorial emprenhada pelo surrealismo. Mais do fantástico do que da ficção científica, ele costumava dizer. E seguindo muitas vezes o princípio da escrita automática dos surrealistas. “A quinquilharia galáctica aqui tem pouco espaço, predomina mais o sonho”, afirmou, sobre o álbum Absoluten Calfeutrail (Nemo Editora). O sonho libertava suas naves espetaculares, seus seres de espuma ou de carnes tentaculares. “Eu amo as histórias quando elas são verdes e cruéis”, declara um dos seus personagens.

Um testamento e tanto

Falando de si mesmo em terceira pessoa, Moebius disse: “De fato, isto é exatamente Moebius: a exploração interior. Isso explica porque, sob formas diversas, meu personagem favorito é um viajante, um explorador. Arzach, o Major Grubert, o Starwatcher, todos são personagens errantes, todos passam por caminhos que passei. Cada um representa uma parte de mim mesmo.”

Em 2000, o Festival de Angoulême, na França, o maior encontro de quadrinhos daquele País e um dos mais importantes do mundo, prestou seu tributo a Moebius. Montou uma instalação gigante em um prédio inteiro com suas fantasias. Os fãs pareciam não acreditar quando entravam em sua Garagem Hermética por um caminho que parecia de sonho. Sua associação com o escritor e cineasta também de escopo surrealista Alejandro Jodorowsky (autor de El Topo e A Montanha Sagrada) gestou uma dos mais importantes e influentes séries dos quadrinhos da história, O Incal, publicada originalmente pela editora Les Humanoïdes Associés.

Uma saga de ficção científica genuína que abalou os anos 1980. Por ironia do destino, a Devir Editora relançou, na semana passada, a série inteira com capa dura e 308 páginas. É um testamento e tanto.

***

Quadrinista francês morre aos 73 anos

O quadrinista francês Jean Henri Gaston Giraud, de 73 anos, que se consagrou com os pseudônimos Moebius e Gir, morreu ontem em Paris, após um longo período com a saúde debilitada, segundo informações de uma amiga da família que trabalha na produtora do artista. A causa da morte não foi divulgada.

“Tenho dois polos, dois gestos. Quando estou na pele de Moebius, tento escapar de mim, desenho em transe”, disse, na abertura da exposição na Fundação Cartier, em 2010, que comemorou os 50 anos de sua carreira.

Moebius nasceu em Nogent-Sur-Marne, em 8 de maio de 1938. Aos 18 anos, publicou as primeiras tiras e logo se tornou um dos artistas mais famosos e premiados da Europa. Extremamente produtivo, Moebius trabalhou em algumas das revistas mais importantes da França e ganhou fama com o gênero faroeste.

Cocriador da célebre série de HQ Blueberry com o roteirista Jean-Michel Charlier, Moebius é, desde 1963, uma referência na arte de contar histórias por meio de desenhos, seja em western ou em um futuro utópico dominado por criaturas inimagináveis. Durante a carreira, aproximou-se das artes plásticas. Com uma cenografia extremamente bem concebida, se valia de um traço básico. “A arte deve ser paranoica”, afirmou, aos 72 anos.

Foi marcante sua participação na produção de filmes e jogos de computador. Assinou os storyboards de O Caçador de Androides, de Ridley Scott, e Duna, de David Lynch. Inspirou filmes como O Quinto Elemento, de Luc Besson, e O Abismo, de James Cameron. Também colaborou com Stan Lee em uma história do “Surfista Prateado”. No Brasil, há muitos artistas influenciados por ele, como Watson Portela.

***

[Jotabê Medeiros é jornalista]