“Um dos maiores desafios jornalísticos é lidar com temas complexos. Na pressão dos prazos, sempre existe a tentação de simplificar. O pretexto costuma ser tornar o assunto mais ‘direto’, ‘acessível’, ‘palatável’ ou qualquer outro adjetivo que, na prática, apenas subestima a inteligência do leitor.”
Essa afirmação, que poderia abrir uma análise acadêmica sobre as deficiências do jornalismo tradicional, é a abertura do editorial da revista Época desta semana, que destaca uma reportagem especial sobre decisões da Justiça que criam casos controversos na assistência pública de saúde.
São questões em que se torna difícil distinguir o “certo” do “errado”. O caso específico discutido pela revista é o de um paciente que, tendo se recusado ao tratamento alternativo de transplante, obteve na Justiça o direito de receber gratuitamente, pelo resto da vida, um medicamento que custa R$ 800 mil por ano.
A reportagem discute a sobreposição do direito individual aos direitos difusos da sociedade, considerando que o dinheiro usado para atender a apenas um indivíduo pode acabar condenando à morte centenas – talvez milhares – de outros cidadãos por causa da limitação dos recursos orçamentários.
Como diz o editorial, trata-se de tema complexo, como, de resto, são quase todas as questões importantes na sociedade contemporânea.
Espaço mínimo
O desafio de “traduzir fatos e ideias de modo que todos consigam entender” sempre esteve no centro da atividade jornalística. Mal ou bem, a imprensa como a entendemos até o final do século passado dava conta de fornecer elementos adequados para a compreensão geral dos acontecimentos, por algumas razões claramente identificáveis.
Uma delas era a relativa homogeneidade do chamado espaço público: jornais e revistas falavam para públicos mais ou menos homogêneos, com padrões de educação assemelhados.
Essa audiência, por muitos motivos, era chamada de “formadora de opinião”. Os demais, aqueles que não eram alcançados pela imprensa, coincidentemente eram aqueles cuja opinião precisava ser “formada” pela interpretação de terceiros.
As novas tecnologias de informação e comunicação, integradas na última década do século 20, produzem o fenômeno da hipermediação, que avança a ponto de provocar questionamentos sobre o que é a notícia.
No entanto, passados quase vinte anos de criação da internet, uma reportagem que enfrenta o desafio da nova complexidade ainda chama atenção a ponto de gerar um editorial específico sobre o tema.
A decisão de destacar, no espaço opinativo da revista, uma reportagem “diferenciada”, nasce da percepção dos editores de que se trata, realmente, de um texto distinto da praxe jornalística tradicional.
A praxe é feita de reportagens tendenciosas como a que foi comentada aqui no dia 5 de março (ver “Uma tese polêmica”) e que merece de Época um espaço mínimo de contestação na seção de mensagens dos leitores. Trata-se do texto sobre a tese de doutorado do economista Aloizio Mercadante.
Falta diversidade
A rotina é a da tentativa de “simplificar” a complexidade, ou seja, de abordar temas complexos linearmente, por um viés mais confortável, omitindo aspectos controversos ou evitando levantar pontos que coloquem em dúvida a própria interpretação sugerida pelo texto. Em muitos casos, a impossibilidade de abarcar todos os aspectos de algumas questões simplesmente deixaria muda a imprensa.
A questão da complexidade do mundo contemporâneo não é exatamente nova – seus elementos foram integrados em um conceito compreensível há cerca de três décadas, quando novos conhecimentos sobre a origem da cultura, o avanço dos estudos de genética e grandes descobertas a respeito do funcionamento do cérebro humano induziram a uma abordagem mais ambiciosa de questões ligadas à antropologia e à sociologia, influenciando até mesmo os estudos de economia e comunicação.
O casamento da internet com a mobilidade dos aparelhos de comunicação acelerou e universalizou o ambiente social e físico que agora é chamado de hipermediado, mas a globalização já vinha apontando para a necessidade de rever alguns conceitos arraigados na “cultura” jornalística.
A abordagem de qualquer assunto ainda depende de visões de mundo específicas, mas a complexidade exige a ampliação e transversalidade de um conjunto de visões. E isso se dá com a maior diversidade da base de opiniões que influenciam as decisões editoriais.
Embora eventualmente admitam a necessidade da abordagem complexa como forma de facilitar o entendimento das complexidades, os veículos tradicionais da imprensa ainda estão longe de possuir essa credencial de diversidade capaz de produzir a visão de mundo necessariamente mais ampla.
Esse é o desafio que vai definir o futuro da imprensa como a conhecemos.