Aquela que para muitos é a biografia definitiva de Ernesto Che Guevara (1928-1967) acaba de retornar às livrarias brasileiras em edição revista e ampliada pelo jornalista Jon Lee Anderson, um dos principais nomes da revista The New Yorker. Quarenta e cinco anos depois da morte de Che, abatido por soldados do exército boliviano e agentes da CIA quando comandava a quixotesca implantação de um foco guerrilheiro na região meridional da Bolívia, parece lógico entender que a América Latina vive hoje uma realidade muito mais saudável do que a da época em que a linha dura militar começava a tomar conta do continente. Mas a percepção do autor de Che Guevara: Uma Biografia é um tanto mais elaborada.
Em entrevista ao Valor, Anderson (também autor de A Queda de Bagdá, outro livro festejado pela crítica) pondera que, se milhões de pessoas deixaram a pobreza e entraram na classe média nos últimos anos em países como o Brasil ou o México, é igualmente verdade que a região viu um acréscimo em igual dimensão da corrupção na vida pública, da violência urbana e da falta de instituições cívicas com real representatividade. Crises de identidade nacional em certos países, diz Anderson, também chegaram a um ponto sufocante, com suas bússolas econômicas e sociais voltadas para Miami. No entanto, se cruzasse o continente em sua motocicleta, o jovem estudante de medicina retratado no filme de Walter Salles depararia com uma América Latina não apenas mais americanizada, mas a ponto de se abrasileirar cada vez mais. “O dinamismo, a energia, a capacidade de adaptação brasileira em substituição ao catecismo de Washington é um dos fenômenos mais interessantes de se observar hoje na América Latina.”
Se repressão, ataque aos direitos e liberdades civis, exílio, censura e tortura já não são mais a moeda da vez na América Latina pós-Che, Anderson, que passeia com desenvoltura pela Havana dos Castro e a Caracas de Chávez, acompanha o presente com atenção cada vez maior ao Brasil. Há oito verões ele passa uma temporada por ano no país e em 2009, um ano após a implantação das primeiras unidades de polícia pacificadoras (UPPs) em comunidades cariocas, escreveu uma reportagem de fôlego sobre as gangues que ainda controlam boa parte do espaço físico da cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Na conversa com o Valor, Anderson traça um paralelo entre a falta de punição das autoridades responsáveis pelas sevícias praticadas contra presos políticos na época da ditadura e a proliferação de milícias que controlam bairros com mão de ferro em bolsões de pobreza espalhados Brasil afora. “Não é coincidência os dois países mais violentos da região terem se tornado sociedades sociopatas, regidas por um pacto de amnésia em que os assassinos do passado são autorizados a estabelecer os termos da nova ordem democrática”, afirma Anderson. “Os compromissos de esquecimento, na linha do Pacto de Moncloa, na Espanha franquista, foram infelizmente exportados para a América Latina, e sou moralmente e filosoficamente contrário a eles.”
O jornalista americano, de 55 anos, conversou com o Valorsobre uma Venezuela sem Hugo Chávez, as mudanças radicais a serem enfrentadas por Cuba nos próximos anos e o papel que o Brasil poderá representar em Havana, o estabelecimento da Comissão da Verdade no Brasil e a convivência da liberdade de expressão e da imprensa livre com governos mais próximos do bolivarianismo chavista.
Leia os principais trechos da conversa.
“Em certos países, hoje o centro nervoso é Miami”
Che consideraria a América Latina em melhor situação do que há 45 anos?
Jon Lee Anderson– Não. Ele era um marxista dogmático. Aos 83 anos, Che provavelmente seria incapaz de afirmar que a ideologia pela qual viveu, pela qual muitos de seus amigos deram a vida, fracassou. Certamente, viveria em Cuba e olharia com alguma esperança, exatamente como Fidel, para os que este chama de “jovem geração”: Hugo Chávez, Evo Morales. Ele os veria como novos representantes de uma proposta de mudança radical no continente. Che ainda seria o profeta da revolução. Mas estamos falando de um cenário fantasioso. O Che real deixou Cuba. E ele saiu de Havana, em parte, por conta de seu desencantamento com o que acontecia na ilha. Esse mal-estar ele levou para o túmulo.
O cenário sócio-econômico e político do continente mudou muito de lá para cá. A maioria dos países se democratizou e nunca a região esteve governada por tantos partidos de esquerda…
J.L.A.– As mudanças são inegáveis. A partir dos anos 1980, com a redemocratização, ditadores foram destratados publicamente, como Pinochet. Outros foram condenados à prisão perpétua, como Videla. Mas o socialismo em armas de Che foi substituído por algo diferente, cujo nome exato me foge. O mais próximo seria uma “revolta criminal endêmica nas classes mais baixas” do continente. Os pobres deixaram de ser cooptados para grandes revoluções e passaram a se armar em gangues urbanas. De certo modo, a América Latina continua sendo um continente frustrante, em certos aspectos até pior do que o que era no fim dos anos 1960. Houve uma mudança radical e furiosa da vida pública na região. Mas se muitas pessoas entraram na classe média em países como o Brasil ou o México, houve um aumento em igual dimensão de corrupção na vida pública, de violência urbana, de carência de instituições cívicas com representatividade de fato, até mesmo de falta de identidade nacional em certos países, cujo centro nervoso, hoje, é Miami. Também houve um inegável declínio intelectual. Há pontos positivos e negativos no continente neste quase meio século de transformações desde a morte de Che, mas não consigo vê-lo erguendo a bandeira branca do “livre-mercado” e admitindo os benefícios do grande consenso capitalista.
“Chávez possibilitou a extensão do experimento cubano”
No epílogo da nova edição de Che, o senhor trata do hibridismo político-econômico entre Cuba e Venezuela, com o regime chavista, em suas palavras, “salvando a revolução”. Chávez chegou tarde demais para os irmãos Castro?
J.L.A.– Sim. Quando Fidel abraçou Chávez, no fim dos anos 1990, a sensação era mais ou menos a de “onde você estava nos anos 1960, quando tanto precisávamos de um parceiro como a Venezuela bolivariana?” Castro finalmente contava com um país, nas redondezas, que estenderia o ideário cubano para o continente, seria um santuário para o regime e o sustentaria economicamente. Mas Chávez chegou 30 anos atrasado, para os Castro e para ele mesmo. Há uns dois anos, perguntei a Chávez: “Mas, presidente, por que sua conversão ao socialismo se deu tão tardiamente, já quando a ideologia era deixada para trás?” E ele me respondeu assim: “Li Os Miseráveis, de Victor Hugo, que abriu meus olhos. Depois, encontrei Fidel, que é maravilhoso e é como se fosse meu pai.” Ora, Chávez é como um menino que descobriu algo novo. Fidel lhe ofereceu a visão de mundo que ele tanto buscava. E Cuba, nos anos Bush, conseguiu com ele o oxigênio de que precisava. Há, hoje, cerca de 40 mil cubanos trabalhando na Venezuela, mandando dinheiro para casa. Ainda precisamos comprovar isso historicamente, mas Chávez possivelmente possibilitou a extensão do experimento cubano, na ilha e no continente.
“Cuba nunca diversificou sua economia”
Poderá haver chavismo sem Chávez?
J.L.A.– Não há substituto para Hugo Chávez. Os nomes mais óbvios carecem de carisma. Diosdato Cabello, presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), não é nem propriamente uma figura de esquerda, é um pragmático centrista. Com todas as suas falhas, Chávez é uma figura extremamente simpática. Muita gente odeia sua ideologia, mas não consegue odiar o político. Graças ao carisma, sua visão e uma grande dose de impetuosidade, ele transformou a América Latina nas últimas décadas. Mas, ao mesmo tempo, essa personificação do poder leva a dificuldades na sucessão. O experimento chavista deve entrar em uma crise profunda nos próximos anos e não há garantia de uma continuidade de parceria com Havana. Pela primeira vez, desde que Chávez chegou ao poder, a oposição parece estar organizada. Podemos estar entrando num daqueles ciclos de mudanças inevitáveis, que podem começar com a morte de Chávez.
Qual o futuro do regime dos Castro em uma realidade sem Chávez?
J.L.A.– O eventual desaparecimento de Chávez resultará provavelmente em um momento de crise intensa para Cuba. Aumentará o ritmo de mudanças econômicas, com tentativas de concessões ao mercado sem aumento de liberdade política. A tensão interna vai aumentar. E, com o fim do apoio econômico venezuelano, voltará o temor de um aumento radical do empobrecimento na ilha. Isso já aconteceu antes, como quando os soviéticos desapareceram. Só que havia Fidel para usar a puxada de tapete como retórica de resistência. Não sei se Raúl tem a mesma capacidade de Fidel. Cuba nunca diversificou sua economia, algo que Che tentou fazer nos anos 1960, à frente do Ministério da Indústria. Mas ele perdeu aquela batalha com os soviéticos e Cuba se tornou, de fato, um Estado vassalo da URSS. O que há hoje, na ilha, além de turismo e das propriedades em que os cubanos vivem?
“A entrada do Brasil no tabuleiro cubano”
A presidente Dilma Rousseff esteve em Cuba recentemente e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está financiando a maior obra no país desde a revolução de 59, a transformação do porto de Mariel. Com as mudanças geopolíticas na região, o Brasil pode se tornar um parceiro econômico mais importante para Havana?
J.L.A.– Sim. Dilma é uma pragmática que não parece estar inserida em uma cruzada pelos direitos humanos na ilha. Parece mais interessada em construir portos e usinas hidrelétricas do que em ajudar a blogueira Yoani Sánchez a sair de Cuba. Não usou seu peso político para conseguir uma concessão dos Castro para a visita de Sánchez ao Brasil, por exemplo. Esse é o estilo Dilma que, quem sabe, poderá no futuro trazer até resultados mais efetivos de mudança na ilha. Mas, economicamente, essa mudança já se deu com Lula. Lula teve falhas graves em sua política externa, como na relação com Teerã, mas foi ele quem fez o restante do mundo finalmente perceber que o Brasil era uma voz importante no tabuleiro mundial e que veio para ficar. A falta de visão de Washington tem ajudado o Brasil a se tornar um líder regional de fato, o que é outra mudança gigantesca em relação à região dos tempos de Che. Vimos isso no Haiti, nas negociações com Cuba, em Honduras.
O modelo político-econômico brasileiro, especialmente com o programa Bolsa Família, tornou-se para muitos analistas uma opção clara, na região, ao bolivarianismo de Chávez…
J.L.A.– Exato. Vejo hoje, na Venezuela, um olhar mais atento ao modelo lulista em um cenário pós-Chávez, especialmente no que diz respeito ao Bolsa Família. A Venezuela está começando a implantar algo similar. O modelo brasileiro não é certamente o cubano, tampouco o americano, mas tem aspectos dos dois. E, voltando ao tópico inicial, justamente por essa característica híbrida, a entrada mais forte do Brasil no tabuleiro cubano pode ser mais efetiva no sentido de modificar de fato a ilha. Os Estados Unidos se fecharam no tudo ou nada, na resposta catastrófica, de negação completa, em relação à Cuba dos Castro. O Brasil está se tornando o caminho mais natural. O protagonismo brasileiro na região, aliás, pode ser visto em diversas áreas. Basta pensar na ida de pacientes latino-americanos para hospitais do país e não mais apenas para os dos Estados Unidos. O dinamismo, a energia, a capacidade de adaptação brasileira em substituição ao catecismo de Washington é um dos fenômenos mais interessantes de se observar hoje na América Latina.
“Obama recebeu uma herança maldita”
O senhor acredita, então, que o Brasil poderá ser o líder regional da América Latina?
J.L.A.– Sim. É o que parece já estar acontecendo. Passei a conhecer o Brasil a fundo nos últimos sete, oito anos, quando visitei, todos os anos, o seu país. O dinamismo e a criatividade me impressionam, claro. Mas o mais importante é que a América hispânica pela primeira vez se vê de fato conectada com o Brasil. Nunca antes vi um movimento tão claro de aproximação com o Brasil. As pessoas querem aprender português, querem trabalhar no Rio e em São Paulo. O Brasil não parece mais estar em outro continente.
Houve alguma mudança no papel dos Estados Unidos na região, com Obama?
J.L.A.– Se há alguma política para a América Latina no governo Obama, eu não vi. Obviamente, os governos Obama e Bush são muito diferentes. Bush estabeleceu algumas relações pessoais, com presidentes como o próprio Lula, mas sempre esteve desinteressado do que acontecia ao sul do rio Grande. Teve, porém, a virtude de deixar Chávez mais ou menos em paz e acabou sendo um facilitador da ascensão da esquerda no continente. Obama recebeu essa herança maldita e o foco de sua política externa está a milhares de quilômetros dos vizinhos do sul. Ele acabou se concentrando em estabelecer parcerias com o Brasil, o México, o Chile e a Colômbia. Mas é só isso – o reconhecimento da emergência de líderes regionais com quem Washington possa cada vez mais contar, a fim de contrabalançar seu declínio relativo. A falta de atenção de Obama para com a América Latina pode ser representada pela maneira como Washington reagiu ao episódio de Honduras. Os Estados Unidos ofereceram a visão de que poderiam, sim, aceitar um golpe de Estado na região. Foi interessante ver o Brasil agir como defensor do presidente deposto, entrando na seara continental, justamente como os Estados Unidos se acostumaram a fazer, sem oposição. Vi o discurso de Obama e pensei: “Como é que ele não afirma peremptoriamente ser contra o golpe?” Talvez a grande mudança da era Obama tenha sido a de os Estados Unidos decidirem não ter mais uma ação “consular” na região. Não esperamos mais que o continente nos siga cegamente e resolva suas pendengas em Washington. Esta é outra enorme mudança.
“Os compromissos de esquecimento foram exportados para a A.L.”
A imprensa local foi especialmente crítica da longa permanência de Manuel Zelaya na embaixada brasileira em Tegucigalpa, vista como uma perigosa tomada de partido na briga entre um presidente de inspiração chavista e uma oposição conservadora. Meios de comunicação sul-americanos, aliás, se mostram frequentemente críticos de outros governos esquerdistas da região, como os de Rafael Correa, no Equador, e de Cristina Kirchner, na Argentina, acusados de promover, como Chávez, um ataque incessante à imprensa livre. Como vê essas questões?
J.L.A.– Trabalho para a New Yorker, ninguém me censura e, obviamente, o cerceamento da imprensa na América Latina me preocupa. Não gosto do populismo de líderes que acreditam ser possível manejar a democracia de seus gabinetes. Em geral, desconfio de qualquer regulamentação da mídia em países democráticos, ainda que com o histórico de reacionarismo dos grupos de mídia na América Latina. Na Argentina e na Venezuela, especificamente, a situação não é saudável porque é extremamente polarizada. Em outros países da região houve uma adaptação melhor aos novos tempos.
O senhor crê que a criação da Comissão da Verdade possa ser um passo necessário para a consolidação da democracia no Brasil?
J.L.A.– Os compromissos de esquecimento, na linha do Pacto de Moncloa, na Espanha franquista, foram infelizmente exportados para a América Latina, e sou moralmente e filosoficamente contrário a eles. São modelos que não permitiram às sociedades civis de países como o Brasil entender seu passado, curar-se de um tipo de sociopatia que continuou impune, absorvida pela sociedade. Na Espanha, depois de 70 anos, não se conseguia sequer olhar para o que aconteceu nos anos de horror. No Chile, Pinochet usou o modelo franquista para tentar manter-se no poder após o sufocamento da ditadura. No Brasil, a repressão foi bem menos exponencial do que na maioria de seus vizinhos, mas nem por isso menos traumática para os que a sofreram e para a sociedade.
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[Eduardo Graça, para o Valor Econômico, de Nova York]