‘Está interessante e, até certo ponto, divertido acompanhar a troca de chumbo entre a Folha de S.Paulo e a Editora Três, nos últimos dias. Não que seja uma novidade um veículo brigar com o outro, como acontece neste caso, mas quando isso acontece sempre desperta nos leitores a sensação de que quem sempre denuncia um dia acaba denunciado. Mais ou menos como o ditado ‘Quem com ferro fere, com ferro será ferido’ ou ‘quem com notícia ofende, com notícia será ofendido’. Entre jornalistas, então, ver patrão brigando é um regalo, uma espécie de vingança contra a opressão do empregador e a tirania do poder.
Independentemente de sentimentos mais ou menos nobres, é isso mesmo o que acontece e todos nós de um modo ou de outro lavamos as mãos, sabedores de que, afinal, temos telhados de vidro, como também os têm os donos de veículos, que dão empregos, pagam (às vezes) impostos e ganham dinheiro também escrevendo ou falando mal da vida dos outros.
Curiosamente, a reportagem que deu origem a esta pendenga foi publicada no domingo retrasado pela Folha de S. Paulo, denunciando que o Governo havia parcelado dívidas do Refis de uma forma absolutamente esdrúxula, permitindo que centenas de empresas, entre elas a Editora Três, fossem beneficiadas de forma indevida. Ou seja, a Folha publicou a matéria, sem poupar ninguém, nem a co-irmã Editora Três, que conseguiu alongar uma dívida de R$ 222,4 milhões em parcelas que, a depender do faturamento da empresa, poderão ser pagas em até 344 anos. Teve, no entanto, o cuidado de ouvir o proprietário da Editora Três, Domingo Alzugaray, que levantou dúvidas sobre os números fornecidos pela Procuradoria da Fazenda, refutou a alegação de fraude e disse que a situação é realmente muito difícil e que se a economia não voltar a crescer a dívida será impagável.
Foi aí que surgiu no cenário a revista IstoÉ Dinheiro, com uma pesada matéria sobre a situação financeira do UOL, na edição que está nas bancas, com data de 18/2. Só pelo título já dá para se ter idéia do que vem pela frente: ‘O crepúsculo do UOL’, seguido do olho ‘Portal acumula prejuízos, perde clientes e corrida da banda larga’.
A matéria da IstoÉ Dinheiro bate forte. Abre com o seguinte texto: ‘Há um vírus consumindo as entranhas daquela que já foi a maior promessa da internet brasileira, o portal Universo On Line, o UOL. No código genético desse vírus manifesta-se uma equação letal: um desequilíbrio insustentável entre receitas e despesas, cujo sintoma mais visível é um prejuízo renitente que não cede nem mesmo aos remédios mais amargos.’
Em outros trechos a reportagem registra, com base nos números a que teve acesso, que ‘o UOL está perdendo a corrida para o futuro’ e que cotado antes na casa dos US$ 2 bilhões ‘hoje é avaliado por analistas e potenciais compradores em menos de US$ 100 milhões’.
Mais: ‘Mergulhado numa crise permanente e com a sobrevivência ameaçada, os acionistas passaram a agir como um clube de futebol ameaçado pelo rebaixamento. A cada duas derrotas troca o técnico. Nos últimos 18 meses, a direção geral da companhia tornou-se um cargo de alta rotatividade. No período, quatro executivos diferentes ocuparam a cadeira. A comissão técnica também foi vítima de uma debandada. Oito vice-presidentes e diretores deixaram a empresa, entre eles o jornalista Caio Túlio Costa, um colaborador da família Frias, controladora do UOL, ao longo de 21 anos’.
A matéria ainda fala das tentativas de parceria, da saída da Abril do Negócio, dos fracassos no exterior e por aí afora.
Não precisa ser muito esperto para saber que a reportagem caiu como uma bomba no staff do Grupo Folha e que a tréplica era uma questão de tempo. No próprio domingo, o UOL mostrou ter assimilado o golpe e contra-atacou: informou que tomou a decisão de processar a revista IstoÉ Dinheiro por difamação e calúnia, deduziu que o artigo poderia ter sido uma retaliação da Editora Três à matéria feita pelo jornal denunciando fraudes no Refis, divulgou números que mostram ser excepcionalmente boa sua saúde financeira e põe pimenta no cozido. Num dos trechos do texto veiculado na Internet dizia o seguinte: ‘Na quinta-feira, 29 de janeiro, um grupo de empresários, entre eles Domingo Alzugaray, dono da Editora Três, que publica ‘IstoÉ Dinheiro’, foi recebido em almoço na Folha. Durante o almoço, realizado a pedido do grupo, Alzugaray solicitou reservadamente a dirigentes da Folha que retirassem o nome da sua empresa da reportagem sobre Refis (programa de refinanciamento fiscal) que estava sendo preparada pelo jornalista Josias de Souza, diretor da Sucursal da Folha em Brasília, para a publicação no domingo seguinte. A Folha não atendeu o pedido. O não atendimento do pedido de Alzugaray pode ser a razão que motivou a reportagem extemporânea e difamatória contra o UOL, empresa controlada pelo Grupo Folha.’
A mesma matéria foi publicada na edição de terça-feira do jornal Folha de S. Paulo, porém com pequenas alterações, entre elas a exclusão deste trecho que deduz que o não atendimento do pedido de Alzugaray poderia estar por trás da referida reportagem’.
Tanto o texto na Internet quanto na versão impressa destacam que o ‘UOL alcançou o equilíbrio financeiro em abril de 2003. Não possui dívida com bancos ou fornecedores. Ao contrário, dispõe de aplicações financeiras da ordem de R$ 60 milhões’.
Colegas da Editora Três dizem que a revista tentou obter dados atuais do UOL, sem sucesso, pois a empresa alegou que, por ter agora o capital fechado, não teria obrigação nenhuma de fornecer tais informações. Eles também negam que a matéria tenha sido uma retaliação ao jornal e dizem que ela foi definida na tradicional reunião de pauta. E garantem que tampouco se prestariam a realizar um serviço sujo, pois sabem que a própria carreira estaria em jogo.
Minha mãe costumava dizer que roupa suja se lava em casa, mas jornal é jornal e revista é revista: sempre que podem gostam de lavar uma roupa suja, até porque isso, certamente, ajuda a alavancar um pouco mais as vendas. E em tempos bicudos como esse, não deixa de ser uma jogada de marketing – ainda que perigosa e involuntária.
Vamos ver os próximos passos e o desfecho do caso. Se for igual na política, a tendência é tudo acabar em pizza.’
Paulo C. Barreto
‘Dinheiro x UOL: tanto barulho por tão pouco’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 18/02/04
‘A revista IstoÉ Dinheiro, na reportagem de capa da edição 337, mostra que o UOL está indo para o brejo. Nada que não fosse sabido e propagandeado desde o estouro da bolha pontocom. O UOL chegou antes; ocupar seu lugar na Internet e na História se tornou uma espécie de destino manifesto a orientar os planos da concorrência. E com a ajuda involuntária do próprio UOL, o trabalho parece cada vez mais fácil.
Como de costume, o brasileiro acha o máximo nutrir certos modismos internacionais, ainda que fora de época e fora de qualquer contexto razoável. A corrosão da política de portais, altamente previsível com o fim do dinheiro fácil, foi uma ficha que custou a cair por estas bandas. Continuamos, em Internet, pensando tudo em termos de associação a grandes portais. Isso fazia sentido quando os pequenos sites podiam lucrar sob as asas acolhedoras dos grandes e bons de marketing, enquanto os grandes tinham a esperança de lucrar na Nasdaq com suas grifes. Esqueçam o que argumentavam (em milhões de páginas que, hoje, fazem a alegria das cooperativas de reciclagem) os teóricos da tal gloriosa Nova Economia: megaportal nunca foi destinado a tirar lucros de sua audiência, mas de seus papéis na bolsa.
Sumiu o dinheiro, sumiu a razão de ser. O UOL, como os outros portais, tem a sólida esperança de reencontrar ambos. Mas o futuro aponta inexoravelmente para grandes sites, não para portais genéricos. Achar que será diferente é como imaginar um eBay como ‘site de leilões oficial do portal XYZ’ ou uma Amazon como ‘loja virtual oficial do portal ASDFG’. Por muito menos o Mercado Livre ganhou luz própria e a Abril, antiga jóia da coroa do UOL, retirou seu conteúdo do portal. Curiosamente, a própria IstoÉ Dinheiro que relata a má sorte do UOL está disponível online, por inteiro e gratuitamente para qualquer internauta do mundo, sob o portal Terra. Desde que o usuário esteja em São Paulo, pagando os pulsos excedentes da Telefônica ou acessando pelo taxímetro do Speedy, que diferença faz se ele consumir tempo ou megabytes no IRC, no Kazaa, em vídeos ‘proibidos’ ou numa rádio de Cingapura? É melhor que seja no portal ‘da casa’, mas produzir conteúdo para portal virou uma brincadeira muito cara para um resultado tão discreto (para dizer o mínimo).’
REDI EM NOVA YORK
Luis Fernando Veríssimo
‘Histórias do Redi’, copyright O Estado de S. Paulo, 19/02/04
‘Em 80 fomos passar uma temporada em Nova York. O Redi já estava lá. Tínhamos trabalhado juntos na equipe de criação de um programa humorístico na Globo e eu o procurei. Lembro da primeira vez em que foi ao nosso apartamento. Fazia frio, e ele chegou carregando um imenso casaco acolchoado. Segundo ele, era o que o mantinha vivo em Nova York. Contou que o casaco era tão grande que ele tinha que resistir à tentação de apresentá-lo, como um amigo, quando chegava nos lugares. Além de protegê-lo dos ventos gelados que atravessam Manhattan de rio a rio, o casaco era um companheiro. Um companheirão. Na verdade, você não precisava ter qualquer serventia ou tamanho para se tornar um amigo do Redi. Bastava estar ao seu lado.
Naquela noite comentamos como era comum ouvir-se o som das sirenes de carros de bombeiros nas ruas de Nova York e como no Brasil não era assim, e ele observou que, no Brasil, ou havia menos incêndios ou não apagavam todos. Nos contou que recém se mudara de um apartamento na Greenwich Village porque no andar de cima passara a viver um travesti. Não, nenhuma objeção moral à vizinhança do travesti: não agüentava mais o ruído dos saltos altos no teto. Histórias do Redi. Não sei se nessa época ele já participava da ‘Pé de Boi’ Samba School, que faz carnaval brasileiro o ano inteiro em clubes de Nova York, mas durante todo o longo tempo em que morou na cidade foi uma das atrações da banda, tocando cuíca e tamborim. Aposto que ele tinha mais orgulho disso do que de ser um dos principais ilustradores do New York Times, onde o seu traço simples e divertido freqüentava todas as seções. Medido apenas pelo número de pessoas que viam regularmente o seu trabalho, nenhum artista brasileiro teve tanto sucesso no exterior quanto o Redi.
Passamos anos sem nos ver e fomos reaproximados pela cuíca. Os irmãos Chico e Paulo Caruso o recrutaram para os shows do ‘Conjunto Nacional’, onde eu toco um intermitente, em todos os sentidos, saxofone junto com o Aroeira, e nos quais um dos pontos altos passou a ser um Samba de Uma só do Redi na cuíca-solo. Ele estava morando no Brasil mas não totalmente. Me dizia que vivia indeciso entre ficar aqui ou em Nova York. Não sei se já tinha feito a sua opção definitiva. Morrer não era uma opção. Mas o que se podia esperar do Redi? Morrer foi, afinal, a sua última história surpreendente.’