‘Semana passada, todos os grandes jornalistas do país relembraram o que estavam fazendo no dia 31 de março de 1964 etc. etc….’ – segue-se uma sucessão de hilariantes grossuras assinadas pela turma do Casseta & Planeta (‘A ditadura amolecida’, O Globo, 4/4, Segundo Caderno, pág . 10).
Tragicômico e verdadeiro. Se todos os jornalistas-heróis aparecidos nos últimos dez dias tivessem saído à rua para defender João Goulart, a história do país seria diferente.
Às paranóias da semana anterior somaram-se os delírios, insignificâncias e, sobretudo, o interpretacionismo dos historiadores e cientistas políticos com menos de 60 anos. Ninguém é culpado de ser jovem mas é imperdoável que um pesquisador não pesquise e que um historiador não historie, nem procure testemunhas entregando-se às facilidades do lugar-comum politicamente correto.
Algumas avaliações ‘científicas’ sobre o que aconteceu no final de março e início de abril de 1964 divulgadas pela mídia nos últimos dias colocam em dúvida a capacidade de nossos historiógrafos de fazer historiografia.
Jango foi apresentado como líder carismático, estudioso do trabalhismo inglês, ‘figura generosa que evitou uma luta fratricida’ etc. A ninguém ocorreu vê-lo como realmente foi – coronel-milionário, mulherengo, despreparado para o exercício do poder e, por isso, incapaz de aproveitar a oportunidade de presidir a primeira (e quiçá definitiva) experiência parlamentarista brasileira.
Ninguém se debruçou sobre a figura de Darcy Ribeiro, o mais próximo conselheiro de Jango. O diligente antropólogo que nos anos 1950 dirigia o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), depois assumiu o Ministério da Educação com magníficos projetos inspirados por Anísio Teixeira e que poderiam revolucionar nossa educação; mas, quando levado para a chefia da Casa Civil, entrou no clima do desvario e do ‘manda brasa’ (ver a propósito, o depoimento de Marco Antônio Tavares Coelho, Herança de um sonho – as memórias de um comunista, págs. 268-269).
À vontade
O único a lembrar-se de Carlos Lacerda foi Celso Furtado em entrevista ao Estado de S.Paulo (4/4, pág. A-9) e, obviamente, o retrato não poderia ser favorável nem isento. Mas nada perguntaram ao emérito professor de Economia sobre a forma com que Jango preteriu seu Programa Trienal de Desenvolvimento em favor das ‘reformas de base’.
Nenhum jornal ou revista procurou ouvir (ou escrever sobre) duas importantíssimas figuras civis daqueles dias: o advogado Jorge Serpa e o banqueiro José Luís Magalhães Lins (ambos do Rio). Figuras-chave que certamente estão preparando suas memórias para esclarecer os mistérios que ainda envolvem o período 1961-1964.
Ficou faltando uma avaliação sobre o papel dos trotskistas. Aliás, estuda-se muito pouco o trotskismo no Brasil. Os candentes editoriais do Correio da Manhã pedindo a derrubada de Jango foram escritos pelo trotskista Edmundo Moniz. E, no Jornal do Brasil, na mesma linha porém muito mais prudente, estava outro editorialista trotskista, Luiz Alberto Bahia.
A cobertura da Folha de S.Paulo acompanhando o calendário a partir de 13 de março, frustrou-se, não foi adiante. Nem poderia. O jornal resiste à idéia de ter na redação jornalistas com mais de 60 anos, prefere o relato ‘jovem’. E com isso desobriga-se de relembrar o seu desempenho entre 1964 e 1975.
De todos os jornalistas-protagonistas, Carlos Heitor Cony foi o mais ousado e veraz. Um dos primeiros a colocar-se abertamente contra a quartelada (quando o seu jornal, o Correio da Manhã, ainda a apoiava), Cony sentiu-se perfeitamente à vontade para emitir opiniões ‘politicamente incorretas’ a respeito de Jango e do movimento que o derrubou.
Texto-legenda
A avaliação do desempenho da imprensa pela imprensa ficou perto do ridículo. Aqueles anúncios institucionais do Jornal do Brasil sobre o seu passado são um escárnio a uma cobertura jornalística que mereceu o Prêmio Esso de jornalismo do ano seguinte. Com tantos vice-presidentes no expediente esqueceu de encomendar ao único vice-presidente-testemunha-ocular, Wilson Figueiredo (na época editorialista e colunista político), um grande registro daquele momento e das posições do jornal.
O Globo saiu pela tangente ao entrevistar uma pesquisadora e um professor de comunicação (4/4, pág. 10). Abdicou de manifestar-se, mesmo a posteriori. E tem gente em seus quadros – na família Marinho ou entre colaboradores aposentados (como o editorialista Pedro Gomes) – capaz de oferecer valiosos depoimentos, escritos ou falados. A pesquisadora tem o direito de pretender substituir Pierre Bourdieu ou Serge Halimi (este, autor de Os novos cães de guarda) mas não o de reclamar que nenhum grande jornal brasileiro pôs em suas páginas a expressão ‘sob censura’. Simplesmente esqueceu de algumas edições cruciais do Jornal do Brasil, esqueceu das receitas do Jornal da Tarde, dos versos de Camões no Estadão e da árvore da Abril, na Veja.
Em compensação, O Globo deu um show com o levantamento sobre o uso do futebol pela ditadura. Prova de uma competência e uma garra que deveria usar com mais freqüência.
Mas em matéria de dignidade nenhum jornal ou jornalista compara-se ao Estado de S.Paulo e ao seu diretor, Ruy Mesquita. O caderno ‘Março de 1964 – 40 anos esta noite’ (20 páginas, 31/3) não foi apenas a mais solene e substanciosa contribuição jornalística sobre o início da tragédia. Com preciosos depoimentos, análises lúcidas e visual sóbrio – como convém a um documento histórico –, o jornalão mostrou o seu quilate.
A entrevista de Ruy Mesquita, ‘Os derrotados escreveram a História’ (pág. 9), pode ser discutida e contestada em alguns aspectos mas foi uma exibição de hombridade e coragem moral raramente vista no cenário brasileiro, sobretudo nas altas esferas da imprensa.
Ao assumir plenamente a participação da família Mesquita nas articulações para a derrubada de Goulart, o diretor do Estadão recusa o farisaísmo, falsidades e falsificações. Retrata o que aconteceu sem medo da encarar a verdade e enfrentar chavões.
O depoimento de José Serra, então presidente da aguerrida UNE (União Nacional dos Estudantes), é uma peça lapidar cuja importância histórica certamente estimulará novos estudos. (Registre-se, mais uma vez, a desconsideração dos jornalistas de hoje pelas legendas das fotos. Quem está ao lado de Serra na reunião com Jango – págs. H10-11 – é Marcelo Cerqueira, então líder estudantil, mais tarde, advogado defensor de presos políticos; no coquetel em que aparece o general Golbery – pág. H7 –, conviria identificar seus acompanhantes).
A rememoração foi minimalista. O Estadão maximizou-a.