O jornalista Bertholdo de Castro poderia ter sido locutor de rádio, com sua bela voz. Mas a vocação era mesmo o teclado. Repórter, redator, contista, depois dos 60 começou a se dedicar a textos longos, a pedido da Reler Editora, especializada em projetos culturais segmentados com patrocínio empresarial e da Lei Rouanet. No ano passado Bertholdo escreveu a parte histórica de Pedras brasileiras. Nesta sexta-feira, dia 16, às 19h, lança na livraria DaConde (Rua Conde de Bernadote, 26/lj. 125, Leblon), no Rio de Janeiro, o livro Na trilha das ferrovias, sobre a aventura que foi a construção de estradas de ferro no Brasil, rica em personagens e gestos heróicos.
Sente falta dos bons tempos do jornalismo brasileiro, ‘quando todos os sonhos eram possíveis e a juventude parecia eterna’. Tempos em que as redações eram repletas de jovens repórteres movidos pela esperança de mudar o mundo para todo mundo, ‘projeto pessoal mas coletivo, sem patrocinadores’, lembra ele. Hoje, vive a realidade, mas ainda se permite devaneios. ‘Um deles se materializa neste livro, pois não deixa de ser fascinante percorrer caminhos antigos das mal traçadas linhas férreas.’
‘Começo lá nos gregos e romanos a. C., que criaram as estradas trilhadas (de trilha a trilho) nas quais corriam as carroças carregadas de minério de ferro puxadas por parelhas de cavalos’, conta. ‘Falo também das primeiras locomotivas a vapor e de seus criadores, viajando pela Europa e os Estados Unidos, onde a novidade se expandiu rapidamente.’ A narrativa chega ao Brasil do tempo de D. João VI, passa pelas primeiras tentativas ferroviárias na regência de Feijó, e vai mais fundo no período de D. Pedro II, ‘monarca de idéias progressistas que teve a sorte de contar com um empresário destemido, o Irineu Evagelista, futuro barão de Mauá’. Vem então a odisséia da construção de ferrovias como a Santos-Jundiaí e a Madeira-Mamoré, o impulso dado pela lavoura de café no Vale do Paraíba, a ascensão e a queda de muitas cidades, como Bananal, na divisa do Rio com São Paulo.
Na República, os trilhos passaram a encolher – e muito mais quando Washington Luís proclamou que ‘governar é abrir estradas’ de rodagem –, máxima que se tornou mais real com JK, para atrair a indústria automobilística. A história chega até a privatização. Com o auxílio da pesquisadora Maria do Carmo Rainho, do Arquivo Nacional, ‘é uma longa viagem que me permitiu percorrer o Brasil de ontem e de hoje’.
O livro nasceu de um projeto solicitado pela Reler Editora e aprovado pela MRS Logística, dona da concessão da Malha Sudeste, que pertencia à Rede Ferroviária Federal. ‘Tenho a lamentar o preço (R$ 115), proibitivo para bolsos brasileiros – e que não pinga nenhum no meu: vendi o texto fechado’, brinca Bertholdo.
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Apresentação
[do release da editora]
Pelas janelas do trem que transportou o Brasil dos últimos dois séculos passaram fracassos rotundos e vitórias colossais. Entre os 14,5 quilômetros da primeira estrada de ferro, feita para conduzir a família real a seu retiro de Petrópolis, e a globalizada sofisticação tecnológica das atuais ferrovias, alguns visionários foram maquinistas, entre avanços e recuos, de uma das mais belas viagens da história do país.
Essa história é contada no livro Na trilha das ferrovias. Autor do texto, o jornalista Bertholdo de Castro conseguiu acrescentar novidade, graça e sentimento épico a fatos e personagens sempre tratados com frieza pelos livros escolares.
É bem verdade que o trem andou devagar. Em 1829, há 176 anos, havia nos Estados Unidos mais do que o dobro da extensão de linhas férreas dos modestos 29.800 quilômetros existentes hoje no Brasil. Nem por isso deixa de ser uma trajetória riquíssima em personagens e gestos heróicos. A começar pela abnegação obsessiva de Irineu Evangelista de Souza, um gaúcho radicado na capital do Império cujo título de nobreza – barão de Mauá – se confunde com a própria história da ferrovia no Brasil.
Rico, encantador, ousado, aventureiro, sonhador são adjetivos que acompanharam a vida deste homem que construiu a primeira estrada de ferro e trilhou polêmicas e mal-entendidos. Com festas e recepções na sua chácara de Santa Teresa, no Rio, adulava quem pudesse abrir caminho para os seus sonhos de empresário. Em 1852, quando fundou o Banco do Brasil – mais tarde nacionalizado –, era dono de cinco dos seis maiores empreendimentos do país, que administrava com mão-de-ferro e métodos financeiros nem sempre ortodoxos.
O atrevimento de Irineu Evangelista não tinha limites. Provocou escândalo quando, na inauguração das obras da estrada de ferro para Petrópolis, convidou Dom Pedro II ao gesto simbólico de carregar um carrinho de mão para despejar, com uma pá de prata, a primeira mão de terra no canteiro de obras. A corte e a imprensa reagiram chocadas com a inconveniência de induzir o imperador a fazer trabalho destinado exclusivamente a escravos. Muita gente comentou na época que Dom Pedro II jamais perdoaria Irineu Evangelista pela petulância, mas não demorou muito para que ele ganhasse, do próprio imperador, o título de barão e, dos gaiatos da corte, piadinhas como esta: ‘Se é para o Irineu, algo de Mau…há’.
A primeira ferrovia já nasceu sob a fúria regulatória do Estado. Um decreto tabelava o preço das passagens em ‘1.500 réis para pessoas calçadas’ e ‘640 réis para pessoas descalças’ – instituindo assim o primeiro caso de subsídio neste ramo de transporte. Mas a colher de chá para a patuléia, que tinha que provar sua pobreza andando descalça, acabou suspensa porque a maioria dos passageiros tirava os sapatos e os escondia numa sacola apenas para pagar menos pela passagem.
Na Trilha das Ferrovias revela muito sobre os hábitos brasileiros e, em alguns casos, sobre algumas noções espartanas de conforto do período pré-republicano. Quando relata a inauguração do primeiro trecho importante da Ferrovia Dom Pedro II, presidida por Benedito Ottoni, considerado ‘o pai das estradas de ferro’ no Brasil, retrata o calor escaldante sobre o chão de terra batida da estação do Campo da Aclamação (hoje Campo de Santana). E transcreve trecho da notícia publicada no dia seguinte pelo Jornal do Commercio: ‘Lá pelas três horas da tarde todos regressaram ao ponto de partida. Dom Pedro e convidados foram recepcionados pelos dirigentes da companhia, que serviram a todos um esplêndido copo d’água’.
O livro da Editora Reler faz uma parada no pesadelo em que se transformou o delirante projeto de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, no coração da Amazônia, que enterrou ao lado de seus trilhos mais de seis mil trabalhadores, vítimas de malária. E na próxima estação mostra que até a primeira metade do século passado a história do Brasil viajava de trem. Antes de amarrar o seu cavalo no Obelisco, Getúlio Vargas viajou para o Rio com o grupo que promoveria a Revolução de 30 a bordo de um vagão especial.
Dois anos depois, enfrentava, diante da violência da Revolução Constitucionalista de São Paulo, uma poderosa arma sobre os trilhos: o ‘fantasma da morte’, uma locomotiva, instalada entre dois vagões de aço e madeira, armada com um canhão de grosso calibre e ninhos de metralhadoras, que espalhavam terror entre os soldados legalistas.
A partir de Vargas, os governos fizeram muito pouco pelas ferrovias no Brasil. Prevaleceu, até o período de Juscelino Kubitschek, um bordão criado por Washington Luís, na década anterior, que sempre funcionou como uma defesa da opção pelas rodovias: ‘Governar é construir estradas’. A globalização encontrou o setor em crise, ineficiente e burocratizado, e que só nos últimos anos, depois da privatização, se modernizou tecnologicamente.
Atualmente, o trem é responsável por escassos 20% das cargas transportadas no país, contra 61% dos caminhões. Este desequilíbrio denuncia um erro estratégico que se comprova na ponta do lápis: um litro de combustível é capaz de transportar uma tonelada de carga por 25 quilômetros de rodovias e por 85 quilômetros de ferrovias. Além disso, a emissão de monóxido de carbono na atmosfera é três vezes maior nas estradas de rodagem do que nas estradas de ferro.
O livro reúne 86 gravuras e reproduções de documentos e cartografias do século 19, além de fotos de Augusto Malta e Marc Ferrez, documentando momentos históricos como a visita do imperador D. Pedro II aos recém-abertos túneis ferroviários em 1882. Acervos pesquisados: Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, Instituto Moreira Salles, Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Museu da Imagem e do Som, Museu do Trem e Rede Ferroviária Federal.