Há, em trâmite, o projeto de lei do Senado Federal nº 185/2004, que regulamenta o emprego de algemas, sem distinção de fase: investigativa, processual ou de execução penal. Seu uso passa a ser excepcional. A polêmica está em torno do art. 2º do PLS 185/2004.
Diante de inúmeras prisões de ilustrados cidadãos pela Polícia Federal, alguns profissionais do Direito e políticos vêm questionar o uso irrestrito desse recurso, em especial porque entendem que clientes, empresários e detentores de mandato eletivo não oferecem risco potencial social ou periculosidade. Também, como no aspecto de realização de operações policiais, existe uma grande polêmica no ato de algemar o preso na presença da mídia televisiva, em especial com mãos para a frente para assegurar um ‘zoom’ na fisionomia constrangida do investigado num perfeito enquadramento com o acessório prateado ou de aço escovado.
Inegável que a fonte de tanta confusão é o art. 199 da Lei de Execução Penal – Lei 7.210/84, que há mais de 20 anos aguarda regulamentação (‘Art. 199. O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal’). Ficará vedado o emprego de algemas como forma de sanção (art. 3º, I do PLS) ou coerção, que deve compreender o uso abusivo e vexatório, com excessiva exposição pública, com intenção de constranger e não de cumprir a lei.
Avanço inquestionável
Segundo o projeto de lei, o uso de algemas passa a ser excepcional e obriga o registro em livro especial com a indicação do motivo de seu uso, lavratura de termo, assinatura da autoridade e juntada ao inquérito policial. Ressalva, na sua justificativa, que ‘deve-se evitar (…) a exposição dos presos à mídia, aos holofotes da política e à ignomínia perante a sociedade. Enfim, urge ao Brasil abraçar de vez a sua condição de Estado Democrático de Direito, para impedir, salvo fundada necessidade, qualquer forma de tratamento que implique na equiparação ente o acusado e o culpado.’
É certo que a questão do uso de algemas deve ser uma referência de segurança da equipe policial e do preso, modalidade de imobilização, e não de uso de força policial. Não se pode, contudo, admitir tergiversação, ou seja, seu recurso de forma antiética, com vilipêndio da pessoa humana. Infelizmente, até pela falta de regulamentação e padronização interna, são comuns as reportagens que mostram o ato de algemar, deixando a percepção clara de que o momento foi programado para o exato ângulo das câmeras e conveniência da mídia.
De plano, há um inquestionável avanço no projeto de lei, que não abraçou o questionável sistema de privilégios do art. 242 c/c 234, § 1º, ambos do CPPM. A existência de tratamento diverso para autoridades públicas quebra o princípio da isonomia ao vedar o uso de algemas em ministros de Estado, governadores e outros, sem ressalvar o cumprimento de mandados de prisão, a periculosidade, a possibilidade de porte de arma, a exaltação de ânimos e a necessidade de imobilização sem recurso à força. É agravada a sensação de impunidade, discriminação e favorecimento que existe no Brasil, detentor do título de país com pior distribuição de renda do mundo, ao lado de Serra Leoa. É desvirtuada a finalidade de algemas: imobilização do conduzido, preso ou condenado.
Por que usar algemas?
Um equívoco comum é associar o uso da algema ao emprego de força, quando, na verdade, a algema é forma de neutralização da força e de imobilização do delinqüente. É menos traumático, doloroso e arriscado imobilizar o meliante pelo recurso à algema, do que pelo acesso a técnicas corpóreas de imobilização.
Essa argumentação é recorrente quando a rede do Estado pega não só os ‘bagres’, mas também os ‘tubarões’, aqueles que negam de pés juntos que não possuem dinheiro no exterior não-declarado à Receita Federal, negam até a assinatura, muito comum em tempos de ‘mensalão’. As algemas cabem perfeitamente nos pulsos do ‘colarinho branco’ (white collar crime), que é quem tem mais acesso a mecanismos de fuga (inclusive helicópteros). Se é para repensá-las, então a reflexão deve atingir todo o direito penal e processual penal, não somente o criminoso com alto poder aquisitivo ou detentores de altas patentes ou cargos públicos.
No projeto de lei, o uso de algemas é ressalvado quando o preso ofereça resistência ou tente fugir. A pergunta que fica é a seguinte: e se o preso efetivamente fugir, apesar de todas as cautelas? Como o preso será conduzido? De mãos dadas, lado a lado, mediante torção, gentilmente sob o olhar vigilante dos policiais? Como vigiar preso e perímetro, simultaneamente, durante o deslocamento e evitar um possível resgate? Não se pode tapar o sol com a peneira. O projeto de lei, à medida que assegura garantias ao preso, também deve assegurar instrumentos de controle, de segurança pessoal da equipe policial e o instrumento alternativo à algema para a condução diligente e eficaz do preso.
Caso emblemático
Não há, atualmente, qualquer empecilho para que o ‘detido’ (em turbação da ordem pública, brigas), o ‘conduzido’ às delegacias (situação em que agentes públicos diversos conduzem uma pessoa em suposta condição flagrancial para verificação de sua legalidade pelo delegado de polícia) ou o ‘preso’ sejam algemados como forma de impedir eventual ação evasiva ou de ataque ao corpo policial. Também nada impede o acesso de informações pela constitucional liberdade de imprensa e da profissão de jornalista. Devem prevalecer o bom senso e a segurança da equipe, mas também a imagem e honra do conduzido ou preso, que se submete à jurisdição do Estado-juiz, sem excessos ou execração pública.
As algemas não servem apenas para garantia de segurança da equipe policial ou para assegurar a integridade física do preso em flagrante delito ou por ordem judicial, no caso específico de atos de polícia judiciária. Há uma terceira razão: inibir a ação evasiva do preso e atos irracionais num momento de desespero. Nesse ponto, pouco importa a periculosidade do agente, sua estrutura corpórea, idade ou status político e social. Veja-se, por exemplo, a surpreendente condição pessoal física de um conhecido patriarca de família dedicada às artes marciais no Rio de Janeiro, apesar da sua longevidade.
Caso emblemático, em termos de uso de algemas e segurança, foi o assassinato do juiz Rowland Barnes, 64, e sua estenógrafa, Julie Brandau, na corte do Condado de Fulton, Atlanta, EUA, no mês de março do ano de 2005, enquanto atuavam no julgamento de Brian Nichols, 34, acusado de estupro, que, sem algemas, conseguiu retirar a arma da policial da escolta e alvejá-los. O acusado, recapturado, foi descrito por seu advogado como pessoa ‘com uma personalidade tranqüila e muito querido entre seus companheiros de trabalho’ (fonte).
Meio adequado
Contudo, a necessidade de padronização é inegável. Qual a quantidade de algemas permitidas? Pode algemar pés e mãos? As mãos devem ser algemadas na frente ou atrás? As algemas devem ser colocadas no momento da leitura do mandado de prisão ou depois de neutralizado qualquer perigo potencial? É permitido algemar na frente de repórteres e fotógrafos, com o fim de aumentar a tiragem de periódicos?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, o Pacto de San José da Costa Rica, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, bem como a Resolução da ONU de 30/8/1955, não abnegam o uso de algemas, mas o tratamento indigno do preso e o uso transverso de algemas com fins de constrangimento ou antecipação da pena. Repórteres e policiais devem respeitar o direito do preso à sua imagem, intimidade, individualidade e honra, valores assegurados pelo Estado democrático e pela Constituição Federal, em especial diante da presunção constitucional de não-culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença condenatória penal.
Propugna-se, pois, que a periculosidade seja presumida quando haja mandado de prisão expedido contra a pessoa sujeita à jurisdição penal do Estado e que excepcional seja a sua não utilização, por violar a segurança da equipe policial e o bem maior que é a vida dos profissionais da área de segurança pública. Caso se enxergue uma colisão de direitos fundamentais, essa deve ser resolvida em prol da sociedade, com o recurso que imobilize e neutralize efetivamente o preso, até posterior deliberação da autoridade competente, policial ou judiciária. O recurso às algemas é sim o meio adequado e proporcional para a garantia de vida e integridade física da equipe policial e do investigado, acusado ou condenado, muito longe dos grilhões de outrora.
Notas do Código de Processo Penal Militar
Emprego de força
Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.
Emprego de algemas
§ 1º O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.
Prisão especial
Art. 242. Serão recolhidos a quartel ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão, antes de condenação irrecorrível:
a) os ministros de Estado;
b) os governadores ou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polícia;
c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados;
d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei;
e) os magistrados;
f) os oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados;
g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional;
h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional;
i) os ministros do Tribunal de Contas;
j) os ministros de confissão religiosa.
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Delegado de Polícia Federal em Brasília/DF, atualmente lotado na Diretoria de Combate ao Crime Organizado, pós-graduado em Processo Civil e pós-graduando em Segurança Pública e Defesa Social, ex-professor da Academia Nacional de Polícia e assessor de ministro do STJ