“Yo Decido”, a já célebre capa da Time de 5 de março, não causou polêmica por diagnosticar que “os latinos escolherão o próximo presidente” americano. Nem por estampar 20 fotos cuidadosamente selecionadas de rostos de “latinos” cujas diferenças realçam sutis semelhanças fenotípicas. O escândalo derivou de um equívoco editorial: a presença, entre as imagens, do rosto de Michael Schennum, um descendente de chineses, irlandeses e noruegueses. Refletindo os preconceitos da sociedade americana, a Time não seria capaz de identificar e separar as diversas comunidades classificadas pelo censo fora das categorias de “brancos” e “afro-americanos”.
Eugênio Bucci argumentou (“A imagem invisível”, 8/3) que a polêmica deixou intacto um erro mais significativo. A Time tentou “fotografar o que não tem face própria”, para “fabricar um fenótipo” de uma “demografia difusa”. Afinal, como pretender sumarizar por meio de um estereótipo facial o oceano demográfico dos “latinos”, formado por “pessoas tão americanas quanto Kim Basinger, Muhammad Ali ou Louis Armstrong”? A crítica de Bucci sinaliza um problema jornalístico, que ele abordou, e um tema político crucial, ainda intocado. Por que a Time se consagrou a delinear a face dos “latinos” no mármore dos “tipos raciais” humanos? A resposta encontra-se na concepção multicultural da nação americana, ao mesmo tempo tão antiga e tão nova.
Ativismo multiculturalista
Melting pot significa, ao pé da letra, “caldeira de fusão”: o recipiente no qual se derretem e fundem os metais. O mito de origem de uma nação nova, formada pela mistura de colonos de diversas extrações, surgiu com a Revolução Americana, mas seus limites se evidenciaram um século depois, na hora do influxo de imigrantes católicos da Irlanda e da Itália e, especialmente, de chineses. Então, o sentido de melting pot conheceu uma inflexão que suprimiu a ideia de fusão. No lugar da caldeira siderúrgica, delineou-se a noção de uma cumbuca de salada de frutas onde componentes diversos coexistem sem se misturar. A imagem de uma nação branca e protestante circundada por “nações expatriadas” – os “afro-americanos”, os “asiáticos”, os “latinos” – adaptou o mito de origem ao dogma racial, conferindo um alicerce à segregação oficial e às políticas de restrição da imigração.
Sob a ótica do mito retraduzido, as cepas humanas reunidas nos EUA não são meros artefatos do impulso de classificação de historiadores, sociólogos ou recenseadores, mas entidades tão objetivas quanto os lagos, as montanhas e os cânions. E se existem na esfera da natureza, devem ter traços físicos singulares, mais ou menos sutis, porém sempre sujeitos à captura fotográfica. A primeira invenção dos “latinos” se inscreve no mito de origem da nação americana. No fundo, do ponto de vista da concepção tradicional sobre a nação americana, a Time não errou.
A concepção tradicional foi resgatada de um declínio que parecia inexorável pela emergência do multiculturalismo contemporâneo. Desde a década de 1970, acadêmicos organizados ao redor da Fundação Ford revestiram a antiga imagem da cumbuca de salada de frutas com um celofane brilhante, que inverte sinais valorativos para preservar a arquitetura mental do conjunto. Os “latinos”, tanto quanto os “afro-americanos” e os “nativo-americanos”, não só existem no mundo das coisas objetivas, mas devem adquirir consciência de seus interesses de “minoria” e perfilar atrás das ONGs que desfraldam suas bandeiras. A segunda invenção dos “latinos” é uma obra do ativismo multiculturalista. Do ponto de vista deles, a Time não errou – exceto, claro, pela introdução da foto do “chinês”.
Ameaça à coesão cultural dos EUA
A questão de saber se os “latinos” existem não tem resposta no campo estrito das ciências sociais, pois remete à política. Até hoje, os “latinos” rejeitaram o apelo multiculturalista a adotar o rótulo que lhes colaram na testa. Eles viraram as costas às ONGs “hispânicas” ou “mexicano-americanas” financiadas pela Fundação Ford. Na Califórnia recusaram em massa o programa do ensino bilíngue que, sob o pretexto de conservar uma “ancestralidade” ou uma “cultura”, os circundava pelas muralhas do gueto. Nas eleições tendiam a se dividir entre os dois grandes partidos, reproduzindo o comportamento geral da sociedade americana. Os “latinos” escolherão o próximo presidente, como proclama a Time? Se o fizerem de fato, o que é uma hipótese razoável, algo novo estará acontecendo nos EUA.
Os “negros”, ou “afro-americanos”, existem como grupo singular na cena política americana desde a generalização das leis de segregação racial, no início do século 20. No passado eles votavam no Partido Republicano por oposição aos democratas sulistas, bastiões do racismo estatal. Há quase meio século, sob o influxo da Lei dos Direitos Civis, de Lyndon Johnson, passaram a votar no Partido Democrata. Os “latinos”, ao contrário, não exibem um comportamento eleitoral de grupo. A atração pelos democratas, decorrente de posições mais flexíveis no tema da imigração, tende a ser parcialmente compensada pelo impacto do discurso republicano sobre os valores familiares, uma melodia de inspiração religiosa que aproxima os católicos do eleitorado cristão conservador. Entretanto, há fortes indícios de que o equilíbrio começa a romper-se.
O cientista político Samuel Huntington publicou em 2004 um livro que descreve a imigração latina como uma ameaça à coesão cultural dos EUA. O movimento radical do Tea Party alçou o conceito nativista à categoria de estandarte político, inclinando o Partido Republicano na direção de um nacionalismo agressivamente xenófobo. A terceira invenção dos “latinos”, que se ergue sobre os ombros das duas anteriores, ainda está em curso. Paradoxalmente, uma medida de seu sucesso seria o triunfo eleitoral de Barack Obama – e a comprovação do “acerto” da capa polêmica da Time.
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[Demétrio Magnoli é sociólogo, doutor em Geografia Humana pela USP]