Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ano em que a mídia preferiu o luxo

O lançamento da Revista A, da Editora Abril, foi o fecho de ouro do ano consagrado ao luxo. A mídia, preocupada em falar da corrupção que assolou Brasília, pareceu respirar aliviada quando a Daslu, com sua nova loja, desviou o foco para as amenidades e a vida dos ricos. Encantada com a boa performance da economia no governo Lula, a imprensa preferiu fazer o jogo do otimismo, que certamente ajuda a vender anúncios, e não gastou seu precioso espaço discutindo a grande revelação que a Revista A e o luxo da Daslu fizeram: a de que a distância entre os muito ricos, a classe média e os pobres do Brasil aumentou de forma brutal, contrariando os dados oficiais do governo Lula, que diz justamente o contrário.

A edição especial da revista – distribuída gratuitamente aos assinantes da Abril – traz uma mensagem subliminar: a de que qualquer pessoa pode conhecer, mesmo sem ter o cartão de cliente da Daslu, os produtos que distinguem a elite do resto da população. Em suas 206 páginas, que têm até fita dourada fechando seu precioso conteúdo, a revista explica a sua proposta:

‘O luxo, ao contrário do que se pode pensar, não é sinônimo daquilo que o dinheiro pode comprar. É, acima de tudo, experiências e sensações. Vai na contramão de modismos. Tem a ver com sonho, prazer, realização, atitude’.

Atitude que, segundo a diretora da publicação, é obtida através ‘de carros, jóias, eletrônicos, roupas e aviões poderosos e projetos arquitetônicos, arte e viagens deslumbrantes… Claro que, muitas vezes, possuir esses objetos de desejo custa caro, mas por trás das altas cifras há elementos mais valiosos – tradição, cultura, exclusividade.’

Ser abolido

Com mais páginas de anúncios (115) do que de matérias (94) a revista parece ter ido buscar inspiração para sua pauta diretamente na Daslu, o megatemplo do luxo inaugurado em junho, exaustivamente noticiado pela imprensa, onde só entravam os escolhidos e todos os produtos tinham grife: da comida servida nos restaurantes do prédio a roupas, eletrônicos e barcos, esses destinados ao público masculino

Como na Daslu, tudo na Revista A é exclusivo: carros, bebidas, celulares, TV de plasma, hotéis, lingeries, produtos de beleza. Mas, para provar que seu leitor também tem necessidades prosaicas, sobrou uma página para o anúncio de um papel higiênico que promete maciez irresistível e que qualquer mortal pode comprar no supermercado do bairro. Ficamos sabendo, pelo menos, que os muito ricos também vão ao banheiro. Aliás, isso já tinha sido revelado pela imprensa ao contar que, na Daslu, uma uniformizada camareira ficava na porta do reservado, pronta a servir os consumidores nas suas mais prementes necessidades. Mas com ordens expressas de não olhar ninguém nos olhos.

Se na Daslu o contato humano só é permitido entre vendedoras treinadas – selecionadas entre jovens de classe alta – e suas consumidoras, na Revista A o ser humano parece ter sido abolido. Já que pessoas não estão à venda (a não ser alguns políticos e mulheres e crianças pobres vítimas do tráfico sexual), não sobra espaço para gente nas páginas desse chique e exclusivo catálogo, que gasta seu espaço explicando detalhadamente a história dos produtos que são objetos de desejo dos muito ricos.

Onde encontrar?

Na Revista A, os leitores vão descobrir que ‘a partir de agora, a maneira mais sofisticada de assinar um contrato milionário será com uma Bohème Royal’, que chique é comer salgadinhos e doces assinados por Saint Laurent, Dolce & Gabana e Galliano, que ‘se os diamantes são os melhores amigos de uma mulher, este colar é um dos maiores tributos que se pode prestar à amizade’ e outras informações essenciais para quem precisa mostrar cultura ao consumir ou usar determinado produto.

A revista, com sua cara de catálogo de superluxo, está aí para nos mostrar que o Brasil tem uma elite que não se incomoda com a inflação e que, certamente, acredita que o PT, ao sufocar o país num mar de corrupção, se sujou por muito pouco. Elite que, quando a situação fica desagradável, pega a saída mais rápida: o aeroporto internacional. Foi o que a Veja mostrou, por exemplo, na matéria em que falava do sumiço das consumidoras da Daslu. Desiludidas com as araras vazias – em vez de grifes internacionais a loja está oferecendo roupas que ela mesma cria – as clientes tiveram que correr a Miami para escolher modelos exclusivos para um casamento em grande estilo.

A pergunta que a revista evidencia é que se nem a Daslu consegue importar mais seus preciosos charutos e perfumes, onde os leitores da A vão encontrar os produtos anunciados? O marketing publicitário já deve ter a resposta: se não houver representante dos produtos anunciados aqui no Brasil, basta seus leitores pegarem um avião e, numa viagenzinha rápida, ir até o outro lado do mundo buscar seu objeto de desejo. Com a revista na mão (ou será melhor dizer catálogo?) vão diretamente à fonte comprar o que precisam. E a revista tem justificativa para continuar saindo e deixando perplexos os leitores médios que não têm acesso nem mesmo a um cartão de cliente das lojas chiques.

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Jornalista