A Justiça volta às manchetes dos jornais brasileiros na terça-feira (20/3). Infelizmente, não se trata de uma reforma no sistema ou da notícia de uma reação organizada dos magistrados honestos contra os “bandidos de toga”. Trata-se simplesmente de mais do mesmo: o que a imprensa destaca é mais uma série de denúncias ou a retomada de escândalos anteriores, em versão revista e ampliada.
Um resumo das leituras dá ao cidadão a sensação de que as instituições públicas estão irremediavelmente contaminadas e que, portanto, não há como alimentar esperanças de que o crescimento econômico que produz tanto otimismo possa ser respaldado pelo desenvolvimento integrado e sistêmico da sociedade.
Se não se pode confiar na Justiça, o caminho natural, logo adiante, só pode ser o da barbárie.
Espírito fatalista
O Estado de S. Paulo noticia, com destaque na primeira página, a descoberta de uma quadrilha no Tribunal de Justiça do Tocantins, liderada por quatro dos doze desembargadores, que se dedica a venda de sentenças, pagamento irregular de precatórios e até mesmo confisco de parte dos salários de assessores para pagamento de viagens turísticas.
Embora sendo minoria, os magistrados do crime conseguiram dominar o tribunal, calando os três quartos de desembargadores poupados na investigação, o que ensina alguma coisa sobre o efeito das organizações criminosas no interior das instituições.
Entre as irregularidades descobertas pelo Ministério Público há até mesmo o caso de uma sentença proferida por um juiz cujo conteúdo fora elaborado pelo advogado de uma das partes. Segundo o jornal paulista, esse é o modelo típico da corrupção no Judiciário.
Na Folha de S. Paulo, a manchete da terça-feira informa que, com as evidências de que os pagamentos irregulares de benefícios podem ter alcançado um número maior de magistrados do que os 70 inicialmente investigados, a corregedoria do Conselho Nacional de Justiça vai analisar os rendimentos de todos os 354 desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Como se recorda, foi esse o caso – denunciado pela corregedora Eliana Calmon no final do ano passado – que provocou a crise de relacionamento entre o CNJ e entidades representativas dos juízes.
A sequência de reportagens revelando a contaminação de tribunais inteiros por grupos organizados de magistrados justifica amplamente a expressão usada pela corregedora – embora sejam provavelmente uma minoria, os “bandidos de toga” tendem a dominar as cortes por todo o país.
Os leitores atentos do noticiário certamente podem fazer mais do que simplesmente repetir que “é assim mesmo” ou que “nada vai mudar”, quando o tema é a interminável sequência de escândalos envolvendo figuras importantes da República.
Colabora para esse estado de espírito não apenas a repetição do assunto no noticiário, mas o fato de que a imprensa não costuma ficar mais do que uma semana em cima de cada fato – exceto, é claro, nos casos em que o acusado é um desafeto político.
Também contribui para esse espírito fatalista a percepção de que os indivíduos honestos em qualquer instituição são ou parecem ser menos capazes de se organizar do que os desonestos. Essa percepção é realista e já foi demonstrada por estudiosos das organizações humanas, como o pensador Elias Canetti.
Os honestos se calam
A mesma lógica do caçador se aplica aos elementos criminosos em uma instituição: aqueles que são solidários na caça ou no assalto ao erário têm mais poder do que os que resistem solitariamente em seus casulos morais.
O sociólogo Pierre Bourdieu também aborda a questão da cumplicidade ao afirmar que a escola, ao criar vínculos entre seus integrantes, também pode estruturar uma cultura de “distinção” que pode levar à formação de uma ideia de “elite” que pressupõe certos privilégios em relação aos demais.
A observação do noticiário sobre os grupos organizados de criminosos no interior das instituições republicanas permite constatar claramente esse “espírito de corpo”, que na prática transforma os elementos corruptos em uma espécie de casta privilegiada e intocável.
Ao dar ampla publicidade às investigações sobre “bandidos de toga” ou “bandidos com mandato político”, a imprensa ajuda a quebrar essa aura de invulnerabilidade que envolve os corruptos.
Ao citar seus nomes e cargos, promovendo sua execração pública, rompe-se o círculo da impunidade, porque, ainda que não venham a ser formalmente sentenciados, o fato de terem dado causa à investigação e à denúncia formal é suficiente para distingui-los dos demais. Caso sejam inocentados, os acusados podem pedir indenização, como ocorria com integrantes da quadrilha do Tocantins.
Mas é preciso avançar. A corrupção só vai ser colocada sob controle quando os elementos honestos souberem se organizar como se organizam os criminosos.