Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A vulnerabilidade da vítima

Li na Folha de S.Paulo (25/03) uma notícia que me deixou inquieta. Comentando o atropelamento de um ciclista por Thor Batista, filho do empresário Eike Batista, a notícia informa que segundo depoimento do jovem Thor, cujas informações teriam sido publicadas na revista Veja, ele afirma ter encontrado uma latinha de cerveja no para-brisa do seu carro logo após o atropelamento. Thor afirma ainda que teria visto algo na mão do ciclista antes do atropelamento, mas não confirma se era a lata encontrada depois ou não. Segundo a Folha, Thor nega ter ingerido bebida alcoólica antes do acidente. Já a vítima, Wanderson Pereira dos Santos, conforme um exame do IML, teria 15,5 dg/L (decigramas por litro) de álcool em seu sangue, taxa que é considerada alta.

A minha inquietude é a seguinte: o que transparece ao ler reportagens como essa é que a culpa do atropelamento é da vítima, seria esta a responsável pelo acidente e, por ter ingerido bebida alcoólica, não teria visto o carro e o acidente teria ocorrido. Isto me lembrou um artigo sobre a vulnerabilidade dos atingidos pelo crime de tortura. Em um artigo intitulado “Introdução: vulnerável socialmente – o significado”, de Joviano Soares de Carvalho Neto, publicado numa coletânea sobre tortura, organizada pela Secretaria de Direitos Humanos, o autor esclarece que o termo “vulnerável” se refere àqueles que são fáceis de ferir e ofender gravemente e também escreve que na Bahia os pobres se definiriam como “fracos”, não no sentido de não ter força física, e sim, relacionado ao poder social, econômico e político. Portanto, os grupos sociais vulneráveis seriam aqueles que podem ser facilmente feridos, ofendidos porque seriam fracos social e politicamente, tendo dificuldade de se defender e de obter punição dos agressores.

Vê-se também a vulnerabilidade em relação às mulheres em casos de estupro, por exemplo. No caso de estupro coletivo ocorrido na cidade de Queimadas (Paraíba), em fevereiro deste ano, os estupros teriam sido um “presente de aniversário” a um dos estupradores. Muito se ouve por aí que as mulheres que são estupradas foram estupradas porque quiseram, deram mole, usaram a roupa curta, estariam pedindo que isso acontecesse, ou seja, como se o estupro fosse algo natural, algo banal.

Imparcialidade é apurar os fatos

No caso do atropelamento, a vítima, Wanderson Pereira dos Santos, estaria no grupo dos vulneráveis. Por sua condição social, sua família não teria condições de se defender social e politicamente dos fatos, aceitando até um acordo – como a reportagem da Folha sugere. Wanderson seria vulnerável porque é fácil feri-lo, ofendê-lo. Seria ele quem estava bêbado, e um acidente o teria levado à morte, por sua culpa. Com isso, não se está julgando Thor, dizendo que este é o culpado, até porque o inquérito ainda está em andamento, mas o que se pede é que haja um pouco de imparcialidade na apuração dos fatos. O que se pede é que Wanderson não seja colocado numa situação de vulnerabilidade.

Imparcialidade nesse caso seria ouvir os familiares da vítima, questionar se Wanderson costumava beber, se trabalhava, como vivia, por que estava numa rodovia de bicicleta à noite. Estaria voltando do trabalho? Imparcialidade é não condenar a vítima sem que antes se conclua o inquérito. Imparcialidade é apurar se realmente a vítima estaria com uma latinha de cerveja na mão antes do acidente, não tornando verdadeiro o argumento de Thor só porque foi ele quem disse. Imparcialidade é não concordar, antes que sejam apurados todos os fatos e ouvidas as testemunhas, com as palavras de Eike Batista, que afirmou em uma reportagem publicada na Folha de S.Paulo do dia 20 de março que “a imprudência do ciclista causou, infelizmente, a sua morte. Mas podia ter levado três pessoas (Thor e o amigo que estava com ele no carro)”. E esse amigo de Thor Batista, o que fala do acidente? Teria também visto uma lata de cerveja na mão da vítima? Enfim… imparcialidade é apurar devidamente os fatos.

Não é muito o que se pede…

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[Maria Carolina Bissoto é advogada, especialista em Direito Constitucional pela PUC-Campinas]