‘Greg Palast, jornalista profissional, nasceu em los angeles, mora em Nova York, vive rodando os Estados Unidos atrás de boas histórias, mas só consegue ver o resultado de seu trabalho na Inglaterra, ou onde mais alguém se disponha a publicar as suas reportagens. Em casa, considera-se banido. ‘Atualmente, a reportagem investigativa é praticamente um crime nos Estados Unidos’, diz.
Para quem não o conhece – e ele ainda é praticamente desconhecido no Brasil -, o seu discurso pode soar persecutório ou paranóico. Mas quem se der ao trabalho de ler A Melhor Democracia Que o Dinheiro Pode Comprar, que a editora W11 lança por aqui até o fim do mês, entenderá por que Palast se tornou uma espécie de persona non grata nas principais redações da imprensa americana.
Dono de um faro invejável para detectar fraudes, escândalos, manipulação, golpes baixos, esquemas e artimanhas ilícitas nas mais altas esferas, seja do governo americano, britânico ou brasileiro, seja nas grandes corporações transnacionais, Palast é um repórter no sentido original do termo: ‘A primeira missão de um jornalista é maltratar os que estão no poder’.
A definição também serve para ele justificar o fato de o seu livro ser tão ralo em revelações sobre a administração Clinton – justamente um governo que foi pródigo em escândalos, e não apenas os de caráter sexual – e ter como alvo principal a família Bush: o pai George, os filhos George W. e Jeb, além de amigos dos três instalados no comando de empresas com negócios que interessam ao clã.
Palast assume abertamente os seus pontos de vista ao longo das reportagens e, com freqüência, manda a objetividade às favas. é um tipo de jornalismo que pode causar espanto no Brasil. Aqui, jornais e revistas seguem, mais ou menos, o padrão consagrado pela imprensa americana, segundo o qual todo repórter deve buscar, em seu relato, ser o mais objetivo possível. ‘Deixo claro onde estou’, diz, em entrevista a CartaCapital (confira na edição impressa).
Isso significa que, ao ler uma reportagem de Palast, o leitor pode ter certeza, por exemplo, de que ele não tem nenhuma simpatia pelo papel que os Estados Unidos, a potência hegemônica, exercem no mundo. Muito pelo contrário. Para o jornalista, as ações de organismos internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, só atendem aos interesses do governo americano e das grandes corporações multinacionais.
Bem-humorado, desbocado, mas sempre cercado de documentos e boas fontes de informação, Palast não coloca panos quentes nem está preocupado em ser sutil. Um bom exemplo é um capítulo especial de A Melhor Democracia Que o Dinheiro Pode Comprar incluído na edição brasileira, que CartaCapital antecipa nesta edição (confira na edição impressa).
Intitula-se Sua Excelência Robert Rubin, presidente do Brasil, e analisa como o então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998, sustentou a moeda brasileira diante do dólar de forma totalmente irreal, com vistas à sua reeleição. A vitória eleitoral de FHC, afirma Palast, foi assegurada pela ação do secretário do Tesouro americano – ‘que governou de fato como presidente do Brasil sem precisar perder uma única festa em Manhattan’.
Rubin, diz o jornalista, ajudou a manter a moeda brasileira em alta costurando o apoio de organismos internacionais ao País. O real, que seria desvalorizado pesadamente logo depois da vitória eleitoral, escreve Palast, ‘permaneceu em alta antes da eleição porque os Estados Unidos deixaram clara sua intenção de substituir as reservas perdidas por um pacote de empréstimos do FMI’.
Em apoio à sua tese, Palast recorre a uma fonte insuspeita, o economista Jeffrey Sachs, da Universidade Harvard. O jornalista cita o economista dizendo que ‘Washington queria a reeleição de FHC’ e, para isso, o governo americano e o FMI evitaram uma desvalorização controlada da moeda antes da eleição, incentivaram ‘vigorosamente’ taxas de juro acima de 50% e deram seis meses aos financistas americanos para vender os títulos e moeda do Brasil em condições favoráveis.
‘Sachs desmentiu essa informação, mas eu gravei a nossa conversa’, conta Palast. O jornalista recorre com freqüência a artifícios que lembram os de um detetive: usa gravadores escondidos, nomes falsos e disfarces para obter informações.
Foi assim ao realizar uma de suas reportagens mais espetaculares, em 1997, a serviço dos jornais britânicos Guardian e Observer. Seu objetivo era mostrar como membros do gabinete do governo Blair, na Inglaterra, praticavam o que se chama de tráfico de influência, ou seja, ‘barganhavam políticas por propina, dinheiro por acesso’. Para provar, Palast criou uma empresa de fachada nos Estados Unidos. Por que nos Estados Unidos? ‘Se o governo britânico estava vendendo o seu país, a América empresarial estava comprando’, justifica.
A ‘empresa’ de Palast procurou grandes lobistas, que apregoavam ter acesso a informações privilegiadas dentro do governo Blair, e mostrou como, de fato, havia promiscuidade nas relações entre integrantes do alto escalão e empresas privadas.
O ‘empresário’ Palast manifestou interesse em ‘derrubar restrições ambientais’ na legislação britânica, levando um dos lobistas a oferecer não apenas informações privilegiadas, mas também a possibilidade de influenciar decisões do governo. Para isso, apresentou o jornalista a um assessor de Blair, que se dispôs a ajudar Palast.
Quando o escândalo, conhecido como ‘Lobbygate’, estourou, os defensores de Blair exigiram que Palast mostrasse as fitas nas quais o jornalista garantia haver o registro de todas as conversas que publicou no jornal. Por uma trapalhada, que Palast conta em detalhes no livro, as fitas demoraram a surgir, levando o Mirror, um jornal sensacionalista inglês, a publicar uma foto do jornalista na primeira página, com a manchete ‘MENTIROSO’. ‘Um sujeito careca e de aspecto desagradável – eu – sob uma manchete de dez centímetros de altura. Pensei: mas que merda!!!’ O caso levou à demissão de um dos lobistas e a inúmeros desmentidos do governo Blair.
Abusado e provocador, a postura de Palast lembra um pouco a do cineasta e escritor Michael Moore, diretor do premiado Tiros em Columbine, igualmente um crítico do governo americano e das grandes corporações. Os dois são amigos, mas os métodos e os resultados do trabalho que fazem são totalmente diferentes.
O populista Moore, como bem o intitula a revista New Yorker, é uma espécie de megafone dos descontentes, uma voz ativa na divulgação de denúncias e críticas ao governo Bush e a empresas privadas, mas com freqüência apenas reproduz informações obtidas de outras fontes. Palast, ao contrário, é um investigador, um descobridor de informações – e, não por acaso, é uma das fontes que Moore cita em seus textos e discursos.
Palast e Moore se unem em torno da convicção absoluta de que a eleição de Bush, em 2000, foi fraudada. Este é o tema, por sinal, da peça de resistência de A Melhor Democracia Que o Dinheiro Pode Comprar. Ao longo de 80 páginas, o jornalista descreve todas as suas investigações e as dificuldades que teve para noticiar os resultados a respeito da disputa entre Bush e Gore na Flórida.
O jornalista dedica-se a mostrar como o governo da Flórida, chefiado por Jeb Bush, em flagrante desrespeito à legislação, cancelou ou impediu o direito de voto de milhares de pessoas – a maioria com perfil de votantes no Partido Democrata.
Eram, em sua maioria, ex-condenados pela Justiça de outros Estados – cujos direitos políticos, reza a lei, são restabelecidos automaticamente depois do cumprimento da pena -, negros e pobres. Ocorreu, como disse, uma ‘limpeza étnica no registro de eleitores da Flórida’.
Paralelamente à descrição de suas descobertas, Palast descreve as dificuldades que encontrou para publicá-las na imprensa americana, ainda a tempo de influenciar o resultado das eleições.
A certa altura, o aflito Palast ouviu de um repórter do Washington Post: ‘Você tem que publicar essa história, Greg, imediatamente’. E, então, escreve ele no livro, ‘em vez de me conduzir para a sala de redação do Post, pediu para que eu ligasse para a The Nation, uma espécie de centro de refugiados para notícias prenunciadoras de tempestades’.
Alguém poderá objetar: que interesse tem ler sobre uma eleição passada, já decidida? Responde Palast, com base na experiência que acumulou na apuração do que ele chama de ‘roubo’ em 2000: ‘A eleição de 2004 talvez já esteja decidida’.
No capítulo que dá título ao livro, Palast se dedica a apontar as relações entre ‘os Bush e os bilionários que os amam’. é uma farra, em que aparecem os nomes da Chevron, reverendo Moon, a Barrick Corporation (mineradora com interesses em vários países), a família Bin Laden e, last but not least, a GTech.
Sim, a empresa envolvida no escândalo Waldomiro tem laços antigos com a família Bush. A história se passa em 1997, quando Bush era governador do Texas e a GTech estava prestes a perder a concessão para explorar as loterias do Estado, um negócio de centenas de milhões de dólares. Palast mostra como o governo estadual se empenhou para manter a GTech no comando da operação, apesar das acusações de propina e favorecimento contra a empresa.
O caso também envolve um lobista da GTech, Ben Barnes, que era vice-governador do Texas em 1968, à época em que o hoje presidente dos Estados Unidos foi destacado para prestar o serviço militar na Guarda Nacional – uma força defensiva, cujos soldados não eram enviados ao Vietnã.
Uma fonte de Palast, mantida no anonimato, teria se disposto a dizer em juízo que Bush fez um acordo com Barnes porque o lobista ‘podia confirmar que ele havia mentido durante a campanha (ao governo do Texas) de 1994’. Na ocasião, Bush afirmou que seu pai não o ajudou a ingressar na Guarda Nacional. O tema promete reaparecer nesta campanha de 2004.
Palast deve vir ao Brasil no próximo dia 22. Na ocasião, ele promete fazer revelações sobre as suspeitas ligações brasileiras de uma outra empresa americana, já envolvida no escândalo da apuração das eleições na Flórida. A julgar pelo teor de A Melhor Democracia Que o Dinheiro Pode Comprar, vale a pena ouvir o que ele tem a dizer.
OUTROS ALVOS
Revelações e temas quentes relatados no livro
Ouro – Uma investigação sobre os negócios da empresa mineradora Barrick e suas ligações com a família Bush acabou levando Palast à Tanzânia. A empresa conquistou uma concessão bilionária no país, mas viu-se acusada de, ao tomar posse da área, com a ajuda da polícia local, ter causado a morte de cerca de 50 mineradores, enterrados vivos. A Barrick nega veementemente todas as acusações e uma das fontes de Palast em Dar es Salaam acabou presa.
Equador – Um documento confidencial do FMI, obtido por Palast em 2000, lista 167 condições impostas pelo Fundo para emprestar dinheiro ao país sul-americano. Parece ‘o projeto de um golpe de Estado financeiro’, diz ele.
Argentina – ‘Era uma noite agradável de 2001 quando recebi o telefonema: a economia da Argentina estava morta’. Mais adiante, ele escreve: ‘Os entendimentos e memorandos provam que o Banco Mundial e o FMI puxaram o gatilho, agindo como leões-de-chácara dos credores internacionais seqüestradores de ativos’.
Wal-Mart – Palast afirma que, contrariando sua política interna, a rede de varejo tem como fornecedores uma empresa, na China, que usa os serviços de presidiários. O jornalista é direto: ‘Como a Wal-Mart saberia que seus fornecedores com fábricas nos campos de concentração da China usam trabalho escravo? Não há como’.
Monsanto – Em 1999, o jornalista mostrou no Observer o conteúdo de um documento confidencial que indicava as relações privilegiadas da empresa, envolvida em experiências com hormônios geneticamente modificados para crescimento bovino, com altas autoridades de organismos internacionais e de governos de países como o Canadá.’
Mino Carta
‘Palast ensina. Mas no Brasil…’, copyright Carta Capital, 10/3/2004
‘As lições de um grande jornalista que vê na objetividade a prova da hipocrisia ou da estupidez
A crença na excelência do chamado jornalismo objetivo, ou é prova de hipocrisia ou de estupidez. Ou junta estas qualidades negativas em sociedade atroz e patética que, a bem da sacrossanta verdade, está longe de ser incomum nas nossas plagas. Em quaisquer campos, não apenas no midiático. Com largas adições de ignorância, e outras tantas de vulgaridade.
Nesta edição, a palavra cabe a Greg Palast, excepcional profissional de imprensa americano, de quem falamos na reportagem especial, a partir da página 8. Excepcional de todos os pontos de vista, inclusive porque jornalistas como Palast, nos Estados Unidos dos dias de hoje, são flores mais únicas que raras.
Um livro de Palast, que inclui uma reportagem inédita sobre o Brasil de Fernando Henrique Cardoso, está para ser publicado pela Editora W11. A Melhor Democracia Que o Dinheiro Pode Comprar. E dá gosto verificar que as idéias do notável colega americano em relação à prática da profissão coincidem com as nossas. A começar pelo reconhecimento da inescapável subjetividade do jornalismo, sempre que exercido de boa-fé, sem peias no uso do espírito crítico e na fiscalização do poder, onde quer que se manifeste. Donde, em proveito de posições isentas e, portanto, do público leitor. Da opinião pública. Da nação.
Ninguém é dono da verdade e, em verdade, uma só é indiscutível, a factual. Mas qualquer jornalista autêntico parte dos seus próprios pontos de vista, como observa Palast, e, ao expô-los, dignifica o seu trabalho. E contribui proficuamente para o pluralismo de visões que a democracia recomenda. E demonstra aquela honestidade que, segundo CartaCapital, há de ser exigida do profissional. Em lugar da objetividade.
Houve quem se espantasse quando, em 2002, CartaCapital se definiu abertamente a favor da candidatura Lula. Em compensação, ninguém se queixou porque o resto da mídia apoiava a candidatura Serra enquanto fingia eqüidistância. Tratamos, então, de ser honestos.
O nosso apoio não foi outorga definitiva, está claro. A vitória do candidato da oposição representou evento inédito, e empolgante. E, de certa forma, ao mostrar a súbita autonomia de vôo do eleitorado, transcende a qualidade do governo atual. Cuja atuação, em um ano e dois meses, mereceu os honestos reparos de CartaCapital, em diversas ocasiões. E segue a merecer. Sem contar a profunda decepção causada pelo episódio Waldomiro.
Coisas de um país que talvez Palast não chegue a compreender por completo. Não é simples, de fato. Em um ponto, é certo, a gente se permite discordar de Palast. Diz respeito à sua percepção, generosa demais, da mídia brasileira. Sempre e sempre ela esteve com os mandachuvas, mesmo porque integra o grupo. O clã. A confraria. Poucos países do mundo reservam o bem-bom para tão poucos. E em nenhum outro a mídia depende tanto do poder.’