O movimento integralista foi fundado em 1932, mas em 1937 foi posto na ilegalidade por Getúlio Vargas. Em 1945, em meio ao processo de democratização do Brasil, os integralistas moveram-se no sentido de rearticular tal movimento. Neste contexto, houve forte mobilização de determinados setores da imprensa contra o ressurgimento do integralismo, já que este era visto pelo grande público como o fascismo brasileiro. O matutino carioca Correio da Manhã esteve entre os mais destacados veículos de comunicação a posicionar-se contrário à reordenação do integralismo, sendo importante agente na atualização da memória social que vetava o movimento de Plínio Salgado.
O referido matutino foi fundado em 1901 por Edmundo Bittencourt e saiu de circulação em 1974. No ano de 1929, com a morte do pai, Paulo Bittencourt assumiu a direção do jornal. Neste ano, o Correio da Manhã já era um jornal moderno, com maquinário de ponta e tiragem diária de 140.000 exemplares. Seguindo a tendência de seu fundador, que desprezava a suposta neutralidade jornalística, o Correio da Manhã destacou-se por suas opiniões políticas definidas e por se engajar, no período em que circulou, em vários embates políticos travados no Brasil, postando-se como defensor dos valores liberais. Nas décadas de 1940 e 1950, quando ele estava entre os mais vendidos jornais da Capital Federal, ele deu considerável ênfase a certa exposição anti-integralista que se montava no Rio de Janeiro. Nesse aspecto, em 27 de maio, um domingo, era possível ler matéria sobre a organização da citada exposição:
“Será organizada dentro de poucos dias, nesta capital, uma exposição anti-integralista. Tudo o que se fizer – todos os esforços que se dispender – para alertar a nação contra um possível ressurgimento do fascismo caboclo, deve merecer, por parte de todos os brasileiros, conscientes de seus deveres, o mais amplo e decidido apoio” (Correio da Manhã, 27/05/1945, Segundo Caderno, p. 1).
Vargas, mentiroso e ligado ao integralismo
O Correio da Manhã estava decidido a usar sua força midiática para criar clima ainda mais hostil à reordenação de um partido integralista e, assim, conclamava todos os brasileiros – “conscientes de seus deveres” – a apoiarem a causa anti-integralista. Combater o integralismo naquele momento se confundia propositalmente com a própria luta contra a ditadura Vargas – na matéria acima citada, intitulada “O que deve figurar na exposição anti-integralista”, o Correio da Manhã incumbia-se de relacionar a ditadura Vargas ao fascismo brasileiro e assim aconselhava aos expositores:
“Que coloquem na entrada do certame, bem à vista do povo, numa grande ampliação, o texto da célebre carta do ‘implacável’ fuehrer verde, ora em férias nas terras do sr. Salazar, ao sr. Getúlio Vargas, através da qual aquele ‘chefe’ revelou aos brasileiros que a ‘constituição’ de 10 de novembro de 1937 fora por ele lida em setembro e submetida a emendas – dois meses, portanto, antes do golpe” (idem, ibid.).
A utilização da expressão “implacável fuehrer verde” para se referir ao líder do integralismo não deixava dúvida quanto ao permanente artifício de estabelecer a analogia entre o integralismo e o nazismo como forma de veto àquele, o qual estava implicado nas articulações que levaram à implantação da ditadura, como se lê na matéria acima. E a carta de Salgado evidenciava também que o golpe desfechado por Vargas havia sido planejado com bastante antecedência, já que por ela percebia-se que ele, Salgado, havia lido “dois meses antes do golpe” a Constituição que seria imposta pelo Estado Novo. Tal elucidação, quanto ao golpe que implantou a ditadura de Vargas, desmascarava a explicação oficial que, por sua vez, estava relacionada ao plano Cohen e à conseguinte necessidade de intervenção urgente do poder central a fim de salvar o país do iminente golpe comunista. Vargas era então mostrado como mentiroso e, seu governo ditatorial, exposto como ligado, na sua implantação, ao integralismo; e mais, que a ditadura Vargas era responsável pela existência do fascismo brasileiro, aspecto que deveria ser mencionado naquela exposição, como bem aconselhava o Correio da Manhã: “Que organizem a exposição, mas que mostrem ao povo, através dela, a participação e as responsabilidades da ditadura e de seus membros na existência do fascismo verde […]” (idem, ibid.).
A equivalência simbólica integralismo/nazismo
Naquele momento, ainda se escutavam, como se podia ler na mesma matéria, “os gemidos alucinantes dos irmãos moribundos. Seus pais, suas esposas, suas noivas, seus filhos e seus irmãos – e são milhões de criaturas em todo mundo que pranteiam a perda de entes queridos” (idem, ibid.). A guerra na Europa mal finalizara enquanto aqui se travava uma luta política pela democracia, a qual era aludida pelo Correio da Manhã como sendo pela mesma causa por que a guerra era travada pelos soldados na Europa: “[…] É a luta pela liberdade […]. A nossa causa é a mesma e tão sagrada como aquela porque se bateram, nos campos da Europa, os exércitos vitoriosos da civilização […]” (idem, ibid.). Se a luta que se travava tanto na Europa quanto no Brasil era pelos mesmos objetivos, quais sejam, a liberdade e a democracia, os inimigos também eram os mesmos, ou seja, os fascismos: “Lutamos pela reconquista dos princípios democráticos, que nos foram arrebatados pelos fascistas indígenas” (idem, ibid.). O uso no plural da expressão “fascistas indígenas” sugere-nos que os fascistas são tanto o integralismo quanto o próprio governo ditatorial. E não era possível conceber, “nem de leve […] que se permita, em qualquer parte do planeta, mesmo sob rótulos diferentes, o ressurgimento do espírito fascista” (idem, ibid.). O Correio da Manhã expunha no espaço público, precavidamente, a possibilidade do integralismo se rearticular sob novo rótulo, ação que, segundo aquele jornal, não era nem de leve admissível. E, ao relacionar o fascismo caboclo a Vargas, também aludia à impossibilidade de sobrevivência deste governo. A montagem da exposição anti-integralista era divulgada, porém, ali, no espaço do jornal, a exposição era não só anti-integralista, mas, também, anti-estadonovista.
Ressalte-se que a exposição anti-integralista estava ainda em fase de organização e o Correio da Manhã já divulgava este processo, o qual resultou, de fato, em sua inauguração, em 8 de junho de 1945, em um espaço da Capital Federal de grande movimento popular (a exposição foi montada na passagem subterrânea do que era conhecido como “Tabuleiro da Bahiana”, onde faziam ponto os bondes da Companhia Jardim Botânico. O local, como se pode imaginar, era um dos pontos de maior circulação pública do Rio de Janeiro). Ao longo da passagem subterrânea, podiam-se ver colados à parede, lado a lado, a bandeira integralista com o sigma e a bandeira nazista com a suástica. Essa configuração plástica – em que o sigma, símbolo maior do integralismo, era exposto ao lado da suástica, do nazismo – seguramente tinha grande força imagética no que concerne à equivalência simbólica integralismo igual a nazismo, especialmente porque, dispostos em um local de passagem, não convidavam exatamente à reflexão, e sim, à mera associação das duas imagens e, por conseguinte, das duas ideologias. Desse modo, a equivalência simbólica integralismo/nazismo era reforçada, assim como se reforçava o veto ao integralismo.
AIB “está articulada e pretende ressurgir”
Ainda ali, na exposição montada no Tabuleiro da Baiana, estavam expostos fuzis e armas alemãs e fotografias das vítimas dos campos de extermínio organizados pela Alemanha nazista. Os artefatos nazistas e as fotografias que documentavam atrocidades cometidas pelos nazistas nos campos de extermínio, ladeados por documentos e objetos integralistas (tais como fotografias de seguidores da doutrina do sigma uniformizados fazendo sua emblemática saudação – Anauê – com a mão direita levantada, ou em marcha), sugeriam que aqueles horrores teriam ocorrido também no Brasil se os fascistas daqui, os integralistas, tivessem chegado ao poder. Na exposição, ainda se viam, entremeados por “documentos” nazistas, textos de Plínio Salgado e de Gustavo Barroso que, nos anos de 1930, elogiavam os regimes totalitários e, assim, a exposição os mostravam também por esse modo, próximos às vertentes totalitárias europeias. Tudo, enfim, visando a reforçar a equivalência nazismo/integralismo, com o intuito último de contribuir para impedir o retorno do integralismo.
No dia seguinte à inauguração da exposição na passagem do Tabuleiro da Baiana, o Correio da Manhã a noticiou em matéria intitulada “Inaugurada a exposição anti-integralista” (Correio da Manhã, 9/06/1945, Segundo Caderno, p. 1) e, abaixo do título, lia-se, em letras pouco menores que a do título e também em negrito, expressão um tanto convidativa à exposição: “Está instalada na passagem subterrânea do 'Taboleiro da Bahiana'”. Logo em seguida, antes de se iniciar o texto-matéria, havia uma foto em que se viam pessoas, de passagem, olhando para os artigos ali expostos, donde se destacava e se discernia apenas a bandeira nazista com a suástica e, ao seu lado, a bandeira integralista com o sigma, reforçando a já citada equivalência nazismo/integralismo. A matéria iniciava-se descrevendo o que ali se poderia ver e a descrição da exposição anti-integralista era parte da campanha também anti-integralista feita pelo jornal, aqui sustentada na exploração daquela equivalência integralismo/nazismo: “[…] Bandeiras, livros traduzidos para o alemão, papéis, punhais com a cruz suástica da Alemanha nazista, fotografias e outros documentos do partido fascista nacional, a Ação Integralista Brasileira […]” (idem, ibid.). Se na matéria do dia 27 de maio de 1945, que divulgava que estava sendo organizada a exposição anti-integralista, o Correio da Manhã sugeriu que aqueles horrores praticados pela Alemanha nazista poderiam ter sido aqui praticados caso o integralismo tivesse chegado ao poder, agora, na matéria que já divulgava a exposição, a posição se tornava explícita: “A exposição contém ainda fotografias das vítimas dos campos de concentração do interior da Alemanha, numa sugestão do que também nos aconteceria se o integralismo não tivesse sido varrido da vida legal em nosso país […]” (Correio da Manhã, 9/6/1945, Segundo Caderno, p.1). E a matéria prosseguia atualizando a crítica ao integralismo. Ao se colocar em guarda diante do processo de sua reordenação, o Correio da Manhã dizia que a AIB “está articulada e pretende ressurgir nesta hora de redemocratização do mundo, sob alegações de que esse partido, de tão nefasta e violenta ação nos tempos do seu domínio, não é totalitário, e sim democrático, e não teve ligações com o nazismo hitlerista e o fascismo” (idem, ibid.).
A estigmatização do integralismo
Com a liberdade de imprensa sendo retomada, líderes da extinta AIB começavam a contrapor-se aos argumentos que depreciavam o integralismo e assim rebatiam as críticas quanto à equivalência do nazismo e fascismo com o integralismo. Não obstante, o Correio da Manhã nela insistia e a mostrava como inequívoca: “expostas aos olhos do público estão todas as provas do caráter nazista e totalitário do integralismo que possuía até punhais com as armas do nazismo alemão para assassinar brasileiros” (idem, ibid.).
E, para reforçar o argumento de que o integralismo era o fascismo/nazismo brasileiro, o Correio da Manhã utilizava-se de várias provas e assim publicou inúmeros trechos de escritos integralistas dos anos de 1930 que referendavam aquela equivalência, pois que escritos em momento em que líderes como Gustavo Barroso de fato aproximava em suas interpretações o integralismo do nazismo. Ainda na matéria sobre a exposição anti-integralista, liam-se algumas dessas transcrições como o trecho da obra de Gustavo Barroso, O Integralismo em marcha, que se segue: “A cada passo nos chamam de imitadores do fascismo ou plagiadores do hitlerismo. Não somos imitadores e plagiadores dum ou doutro. […] Somos simplesmente da mesma árvore, filhos da mesma doutrina […]” (BARROSO, Gustavo. O Integralismo em marcha. p. 89). E também de O Integralismo de norte a sul, do mesmo autor: “Assim como o nazismo trouxe como consequência o ressurgimento da Alemanha, tornando-a forte e prestigiosa, o integralismo fará a grandeza do Brasil” (BARROSO, Gustavo. O Integralismo de norte a sul. p. 90). E a matéria finalizava-se com outro trecho de obra de Gustavo Barroso, na qual ele próprio dizia claramente que o integralismo era fascismo: “[…] mostra perfeitamente o que seja o movimento integralista. É um outro fascismo adaptado à realidade brasileira, transplantado e modificado no solo americano, proclamado com outro nome, porém no fundo prendendo-se às doutrinas conhecidas do velho mundo” (BARROSO, Gustavo. O Integralismo e o mundo. p. 46).O argumento usado aqui pelo Correio da Manhã era de considerável apelo veritativo, já que se ancorava na autoridade dos documentos escritos, e tais documentos eram categóricos: o integralismo era, conforme o segundo homem na hierarquia integralista de então, abaixo apenas do chefe nacional, da mesma árvore que o fascismo e o hitlerismo, “filhos da mesma doutrina”, sendo assim, “outro fascismo” (idem, ibid.).
Findada a exposição anti-integralista, é possível supor que ela tenha causado efeito considerável sobre a percepção da população do Rio de Janeiro quanto ao integralismo. Tanto que, em 9 de julho de 1947, dois anos depois de iniciada a exposição, quando o vereador da Capital Federal, integralista, Jayme Ferreira da Silva, viu-se compelido a responder a 13 interpelações/acusações que seus opositores lhe fizeram na Câmara quanto ao integralismo, uma delas poderia ser resumida – como assim o fez o próprio vereador – na seguinte pergunta: como responde o integralismo às acusações da ‘Exposição do Tabuleiro da Bahiana’? A interpelação/acusação e a necessidade de responder a ela em 1947 deixavam claro que a exposição ficara marcada na memória social da população da cidade do Rio de Janeiro de maneira a contribuir com a estigmatização do integralismo, dificultando a sua ação política no pós-guerra.
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[Rogério Lustosa Victor é doutorando em História]