‘Cintia Abravanel entendeu cedo que as pessoas esperavam coisas diferentes dela. Como filha mais velha do apresentador Silvio Santos, um homem que está na televisão há 41 anos, ela se debateu muito tempo até perceber que cada um tinha uma imagem diferente do que ela ‘deveria ser’. E resolveu se reinventar. Assumiu o Teatro Imprensa, criou o Centro Cultural Grupo Silvio Santos e segue firme na missão de oferecer teatro infantil de qualidade. Em resumo, saiu da sombra, uma analogia que ela mesma cita ao lembrar um capítulo da novela ‘Renascer’. ‘Um dia o Antonio Fagundes falou para o Marcos Palmeira, que era filho dele: ‘Sai da minha sombra para você ter luz e crescer’. E eu pensei: ‘É a minha história com o meu pai’. É difícil ser filho de um gigante. Então sai de baixo do gigante. Porque o sol tem para todo mundo’.
Cintia Abravanel, 41, é uma figura cativante. Seu jeito de falar, às vezes alto quando se empolga com o assunto (em geral, teatro infantil, sua grande paixão nos últimos 11 anos e que lhe valeu vários prêmios, o mais recente o Coca-Cola Femsa como melhor produtora e melhor espetáculo para ‘O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá’) prende o interlocutor. Em alguns momentos, também pode assustar, como ela mesma avisa. ‘Eu sou ‘a brava’, eu sou a brava mesmo’, diz com um sorriso. ‘Eu compro boas brigas, que sejam justas. Não gosto de brigar por bobeira. Gosto de brigar por aquilo que eu acho certo.’
O apelido ‘a brava’, corruptela de seu sobrenome (que ela usa como e-mail), também é uma ótima definição para sua mistura de coragem e pavio curto que já angariou a simpatia contrariada de alguns diretores do Grupo Silvio Santos e serviu para assustar um grupo de colocadores de carpete que insistia em dormir, enquanto ela aguardava o final da primeira reforma do Teatro Imprensa. Esse é o espaço que Cintia administra desde 1993, quando o ‘ganhou de presente’ do pai, o apresentador Silvio Santos. ‘Ele me fez uma proposta, eu fiquei de ver porque não sabia nada de teatro. Eu falei: ‘Pai, nunca trabalhei com teatro, eu não sei, me dá uns dias para pensar’. No dia seguinte ele teve reunião com o conselho e me ligaram da diretoria dando os parabéns, ‘Cintia, você ganhou um teatro!’.
Foi a primeira – e muito possivelmente a única vez – que Senor Abravanel interferiu no trabalho da filha mais velha. Desde o fatídico telefonema, que a tirou de uma vida doméstica para transformá-la em administradora e poderosa produtora teatral, Cintia se reinventou. Mudou sua rotina, seu foco e foi à luta. No começo, enfrentou a descrença não apenas de funcionários, como também de diretores do grupo. ‘Quando assumi o teatro, eu ouvi de um auditor: ‘Você está aqui por hobby?’ E eu respondi: ‘Não, porque eu tenho vergonha na cara e três filhos para criar e eu tenho que dar exemplo que dinheiro não cai do céu’. Meu pai que tem tudo isso trabalha pra caramba, o que é que eu vou ficar fazendo em casa? Tenho que trabalhar!’
A vontade de acontecer lhe valeu, enfim, o reconhecimento da crítica. Além do prêmio Coca-Cola Femsa, dedicado a teatro infantil, Cintia e sua equipe já levaram o Apetesp pela montagem de ‘No Reino das Águas Claras’ e o APCA com ‘O Terror dos Mares’. Nunca esquece de agradecer seus colaboradores – e também ao pai, a quem sempre destina o primeiro telefonema assim que ganha um prêmio. ‘Eu ligo e digo ‘Pai, obrigado’. E ele me diz: ‘Ah, mas eu não fiz nada, você fez isso sozinha, montou a peça, você fez tudo’. Mas aí eu explico: ‘É, mas você me mostrou que eu podia.’
Mas é principalmente o reconhecimento do público que interessa a Cintia. ‘O resultado do meu trabalho vem dentro de um pacote: 350 mil crianças já assistiram ao meu trabalho. Acho que meu maior mérito, meu maior prêmio, é respeitar o teatro infantil como o teatro adulto é respeitado’, diz. Seu mais recente espetáculo, o infantil ‘O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá’ já cumpriu 16 semanas em cartaz. Com texto de Jorge Amado, adaptação e montagem de Vladimir Capella e cenários de J.C. Serroni, o espetáculo é tudo menos o que se imagina ao falar em teatro infantil. Produção bem cuidada e inteligente, ‘O Gato’ promete ser o divisor de águas na carreira de Cintia. O espetáculo, que será apresentado no Festival de Curitiba, também tem planos de sessões especiais em Salvador, para que Zélia Gattai e Paloma Picasso, respectivamente mulher e filha do autor, possam assistir à montagem. E se render à beleza do trabalho, que é apresentado às escolas da rede estadual e particulares – um dos projetos mais ambiciosos e mais batalhados de Cintia, o Projeto Escola. ‘Eu estou formando o público de teatro de amanhã.’
Foi para falar desse projeto, de teatro, da criação do Centro Cultural Grupo Silvio Santos, sua motivação e até sobre os rumos do SBT que Cintia Abravanel falou com exclusividade para a AOL.
AOL – Quando você começou, qual era o seu objetivo? Você tinha em mente criar o centro cultural, queria contar a história do grupo, fazer exposições?
Cintia Abravanel – Eu queria transformar o teatro e esse espaço aqui em um cartão de visitas do grupo, um espaço cultural. Não para fazer algo necessariamente em cima da imagem dele. Mas eu sabia que cara o teatro dele tinha que ter. Por ele ser uma pessoa extremamente popular, o teatro dele tinha que ser popular. E popular que eu falo é no acesso ao público. Eu acho que, assim como a televisão, tem que ter produtos de qualidade e de fácil acesso.
AOL – Sem confundir popular com popularesco.
Cintia – Isso. Meu espetáculo é um espetáculo popular. Qualquer um que assiste entende, toca do mais rico ao mais pobre, do mais jovem ao mais velho. É um teatro para o povo. Isso é a cara do teatro dele. Se Deus quiser, um dia a gente vai ter muitos parceiros para que eu possa oferecer um espetáculo do Antonio Fagundes a cinco reais. Quero que as pessoas tenham acesso a isso porque aí a gente vai conseguir enriquecer o país, enriquecendo as pessoas.
AOL – Quando você decidiu tomar o caminho de produtora, por que você escolheu justamente o caminho mais difícil, que é do teatro infantil? Nem sempre os críticos reconhecem…
Cintia – Eu comecei a produzir teatro como mãe. Porque quando meus filhos eram pequenos, eu não tinha aonde levá-los. Eu fui uma criança privilegiada, que viajei, vi muita coisa. Na TV eu assistia Vila Sésamo, Topo Giggio, a gente tinha uma outra informação, outros programas. O que eu acho legal não é trabalhar teatro como puro entretenimento e sim, como conteúdo. Acho que a gente está aqui para tocar as pessoas de alguma forma. Então por que não com cultura mesmo?
AOL – Como você conseguiu convencer a diretoria do grupo a investir em espetáculos infantis?
Cintia – Foi aos poucos. Quando você não manja do assunto, não está seguro nesse assunto, já fica com o pé atrás para ouvir a proposta. E eu vim com uma proposta puramente institucional para um grupo comercial. Eles perguntavam: ‘O que é que eu vou ganhar?’, e eu: ‘Nada, você vai dar’.
AOL – Quando você disse isso pela primeira vez, ficou um silêncio na sala?
Cintia – Não, mas demorou um pouco para entender. Porque eu explicava que o meu lucro o público levou para casa. É o que eu toquei.
AOL – Mas como você conseguiu convencer a diretoria?
Cintia – Eles vieram assistir ao espetáculo. Todo o pessoal, inclusive do financeiro, os controlers… eles vieram com a esposa, a sogra, os filhos adolescentes para ver ‘O Terror dos Mares’. Um deles chegou a sair com a cara lavada de chorar e de mão dada com a mãe. Aí ele falou: ‘Agora eu entendi que o lucro eu levo para casa. Eu voltei a ser criança. Entendi o seu trabalho agora’.
AOL – Qual era a maior cobrança no começo, o que as pessoas esperavam que você fizesse ou que você fosse?
Cintia – Eu não sei o que as pessoas esperavam. Eu sei que eu me sentia um peixe fora d’água. E não só aqui, na vida em geral. Eu fui aprendendo com o tempo que não tinha essa obrigação de atender às expectativas de ninguém, bastava que eu tinha de atender à minha expectativa. (silêncio) Eu tenho que ser feliz para mim e não para os outros. E eu fui aprendendo isso na minha vida e com o trabalho, é claro, existia essa expectativa. Para muitos eu era menina, para outras eu sou uma pára-quedista que caiu aqui. ‘Ah, ela é a filha do homem, ela está aqui para não fazer nada, cabide de emprego’. Foi legal ter ganho o Prêmio Coca-Cola? Legal, bárbaro. Foi legal ganhar o APCA? Bááááááárbaro. Mas foi um tesão ganhar o Apetesp. Porque é o reconhecimento da classe. Eu não era da classe, eu caí de pára-quedas. E para eles ainda vinha de um outro meio, que era a televisão, que é que ela veio fazer no teatro? Por que ela não está fazendo televisão? Porque eu caí num teatro. Nunca tive vontade de ir para a televisão.
AOL – Mas no seu caso, você não sente que não basta ser boa, tem que ser sensacional porque seu sobrenome é Abravanel?
Cintia – Sim, carregar isso é muito mais pesado. Eu levei algum tempo da minha vida para descobrir que eu não tinha obrigação nenhuma de ser o que as pessoas esperavam que eu fosse. Muita terapia para ver que eu tinha liberdade de ser eu. Por que o que é ser filha do Silvio Santos? Cada um vai ter uma imagem na cabeça. Tem gente que achava que eu estava aqui porque não tinha mais nada que fazer. Gente, trabalhar é bom, coitado daquele que não tem vontade de fazer nada na vida. Eu amo o que eu faço. E isso eu aprendi com meu pai. Por quê? Porque a gente tem que ter desafio, tem que gostar daquilo que a gente faz, tem que traçar metas, tem que ter dívidas, porque aí você é compromissado com aquilo que você faz
AOL – Você confia na sorte?
Cintia – Eu confio no meu taco, na minha intuição. Eu sou muito intuitiva. E pode ter certeza, se eu começo a enrolar muito para fazer uma coisa é porque tem alguma coisa me dizendo para não fazer e eu não faço. (pausa) Porque quando eu falo que vou fazer, ele nasce pronto na minha cabeça, como vai ser, ou pelo menos um esboço do que vai ser.
AOL – Você já chegou a abandonar projetos por causa disso?
Cintia – Já. Tenho um monte de projetos engavetados. Ainda não é hora de fazer. E vou guardando.
AOL – Você acredita em destino?
Cintia – Eu acredito que a gente nasça, talvez, com missões. (pausa) Destino a gente traça, eu acho. E eu aprendi isso com meu pai. Que a maior lição dessa vida é a retidão. Você tem que traçar uma linha reta e se manter nela. Porque a cada instante a vida tenta te tirar dela. Fazer a coisa errada é fácil, fazer a coisa certa é muito mais difícil. A gente sabe como são as coisas aí no mercado, algumas pessoas que infelizmente estão pelo nosso meio e que a gente tem que enxugar a mão para conseguir patrocínio. E eu não faço isso. Perdi muitas oportunidades, muitas propostas… (estalando os dedos) ‘Ah, você está precisando de 600? Então me dá duzentos e presta conta dos 600’. Isso eu não faço.
AOL – Você não quis entrar no esquema…
Cintia – Não faço porque é errado! Eu preciso dos 600 para montar! Não preciso de 599, preciso de 600! E outra: eu tenho o maior exemplo de um pai que paga imposto. Então, não vem com essa, não tem isso comigo. Aqui, até mesmo o pessoal que trabalha comigo fala ‘Ah, mas a gente está pagando muito imposto, está descontando do salário…’. E eu: ‘Gente, é bom, é sinal que você está ganhando!’ E outra, se você está pagando imposto, você pode cobrar. Então, se eu não faço a minha parte, como é que eu posso cobrar? Eu quero pagar muito imposto, eu quero ser uma grande patrocinadora! Porque é sinal que eu estou ganhando! Então eu aprendi isso, eu montei o Projeto Escola justamente por isso, por causa do atravessador. Porque eu estou vendo quanto é para o produtor montar o espetáculo, trazer público, a dificuldade que é para me pagar… Por que um zé ninguém que fica no telefone, pega lá dez pessoas para trabalhar, agenda, vai ganhar dez vezes mais que o coitado do ator que está suando ou que o produtor que se ferrou para tentar montar? É caro você fazer a coisa certa. Mas a gente dooooooooorme que é uma maravilha.
AOL – Mas por causa disso você não comprou briga com muita gente?
Cintia – Eu tenho uma amiga de muitos anos que me diz ‘você pode ser assim porque você não tem que se preocupar com seu futuro, ele está garantido’. Pode ser isso. (pausa) Eu não tenho que me preocupar com meu amanhã, meu amanhã, de alguma forma, está garantindo. Então eu posso fazer as coisas de graça, posso ser a boa samaritana, talvez seja isso. Agora, eu tive uma formação de que isso é importante, de que por ter dinheiro eu não sou melhor do que ninguém. Graças à minha história de vida, eu aprendi a ser e não a ter. Isso para mim tem valor e é isso que eu ensino para os meus filhos. E é assim que eu trato o meu teatro. Nós somos bons porque nós somos bons. A gente faz certo, a gente trabalha certo. É como meu pai fala ‘o arroz com feijão e o aluguelzinho está garantido? Ah, então estou trabalhando gostoso’ porque aí o trabalho não vira o peso, vira prazer.
AOL – Você diz que acredita em missão. Em algum momento, caiu a ficha para você de qual seria a sua missão?
Cintia – Eu sempre me senti um peixe fora d’água. Eu acredito que existe um propósito maior para eu ser a maluca que eu sou e sendo filha de quem eu sou, com tudo o que eu tenho. Acho que seria um desperdício se eu não fosse assim. Porque é muito mais fácil ser do outro jeito, é mais fácil ser dondoca. (pausa) É difícil ser rebelde, eu sou a rebelde sem causa, entendeu? (risos) É mais fácil ficar do outro lado.
Eu tive uma vida diferente também, eu tenho um pai diferente, eu tenho uma história diferente. Por isso eu não consigo entender ou não consegui ver o que as pessoas acreditavam que devia ser a filha do Silvio Santos porque eu não sei ser diferente do que eu sou. Quando eu ouvi do Chiquinho Cabrera ‘Cintia, foi a maior surpresa te conhecer porque eu liguei para falar com a diretora do Teatro Imprensa, a filha do Silvio Santos, e eu fiquei feliz porque eu encontrei a Cintia. Ele chegou aqui eu estava descalça, com meus filhos brincando, e berrando com filho e fazendo e administrando teatro. E ele: ‘Gente, essa é a filha do Silvio Santos?’ E eu: ‘Não, eu sou a Cintia’. Eu sou assim, eu falo alto, sou briguenta com aquilo que acho que estou certa, eu compro briga, sou encrenca. Não gosto de fazer coisa errada.
AOL – E você briga com quem quer que seja?
Cintia – Até com ele (e aponta para o retrato de Silvio Santos na parede). Brigo com quem for.
AOL – De quem você puxou esse gênio?
Cintia – Acho que dele (e cai na risada). Acho que uma mistura de coisas. Eu acho que é muito exemplo, tenho um pai muito determinado, que se fez – e se faz todo dia, não chegou aonde chegou e se aposentou, ele está lá. E ainda idealizando coisas, fazendo projetos. E acho que isso é a maior força que eu tenho, de participar da vida, não ficar de espectadora.
AOL – Acho que ele deve sentir muito orgulho de você.
Cintia – Ah, eu acho que sim, eu sentiria. Eu tenho um super orgulho dele. Eu acho que sou uma pessoa privilegiada, o dia em que enxerguei o pai que eu tinha e tirei proveito disso.
AOL – Demorou para que isso acontecesse?
Cintia – Ah, sempre demora para que algumas fichas caiam. E você tem que ter também a sua experiência para analisar o outro, ter as suas convicções, os seus erros para que você possa ver que aquilo que você achava errado, não é tão errado assim. Ou, às vezes, que aquela era a melhor coisa para se fazer naquele momento. Então mesmo no trabalho eu tenho essa relação com as pessoas com quem eu trabalho. A gente conversa, eu aprendo muito com eles.
AOL – Só que depois de 11 anos de trabalho, você deixou de ser o peixe fora d’água e achou o seu lugar.
Cintia – Aqui é a minha praia. Eu acho que tem essa coisa de chefe, sim. Agora pouco eu estava na holding e tinha um funcionário cobrando a Neide das planilhas. Eu falei: ‘Você não fica cobrando a Neide que a Neide vai ter um troço e não pega no pé da Neide’. E o outro funcionário virou e falou: ‘Ah, como eu queria ter uma chefe assim’. Porque aqui a gente está muito junto. Talvez se eu estivesse numa outra estrutura, trancada numa sala, numa outra postura… mas o teatro também tira isso. Você não tem essa burocracia, não tem esse distanciamento.
Quando eu comecei foi com a peça da Bibi Ferreira, ‘Sua Excelência, o Candidato’. Nós estávamos terminando a reforma para estrear. Ela estava chegando para o ensaio, passou e me viu agachada no chão tentando tirar a cola do granito. Ela olhou e disse assim: ‘Nasce uma mulher de teatro’. E foi embora.
Porque ser a dona do teatro é isso, você cuida do seu espaço. Eu não tenho dúvida que o Paulo Autran cuida do espetáculo dele, da produção dele, daquilo que está fazendo. Mesmo que ele esteja à parte, ele sabe tudo o que acontece. E isso o teatro traz para você.
AOL – Cite três coisas das quais você não abre mão.
Cintia – Meus filhos, meus amigos e minhas crianças. E mais outras coisas, como andar descalço, vento no rosto, olhar por do sol, lua cheia, amigos, meu trabalho, criar e produzir, me sentir uma pessoa produtiva. E tendo saúde, o resto pode vir que o lombo aguenta.
AOL – Qual é sua formação?
Cintia – Isso era um problema muito sério para mim até um ano atrás. (pausa) Eu não tenho formação. Acabei o colegial e casei. Eu nunca tive vontade de me formar. Muito pelo contrário. As pessoas que me conhecem, as avós, principalmente a minha avó paterna me falava muito que desde menina, quando ela me perguntava ‘O que você vai ser quando crescer?’, eu respondia ‘Eu vou ser mãe’. Então eu queria casar e ter filhos. Não acreditava que era boa para fazer alguma outra coisa que não ser mãe. E eu terminei o colegial, casei e tive três filhos.
AOL – Seu pai não ficou chateado quando você disse que não queria estudar e preferia casar?
Cintia – Não porque o que eu acho legal – e fui entender isso quase aos 40 anos – é que eu tenho um pai que, além de ser isso tudo que todo mundo conhece, é um pai sábio. Eu perguntei a ele aos 40 anos: ‘O que você espera de mim?’, e ele falou: ‘Nada. Eu espero que você descubra o que é bom para você. Você vai ter condições para isso’. Aí eu parei de jogar as minhas expectativas nos meus filhos e passei a ajudar meus filhos a descobrir o que vai fazer com que eles sejam felizes. Então acho que isso é a melhor coisa que meu pai poderia me ensinar: me dar a ferramenta para eu pudesse descobrir o que poderia me fazer feliz.
Naquele momento era ter filhos, uma família. E ele estava presente e me apoiando nessa decisão. E eu acho que isso é legal, não é porque a gente é filha dele que alguém vai ter que ser artista. A gente faz uma coisa bem feita quando faz aquilo que gosta. É uma coisa que eu aprendi com ele. A gente veio para essa vida para ser feliz. (pausa) Então vá ser feliz com as ferramentas com as quais você nasceu. E a vida vai resolver muita coisa. Se eu tivesse o dom para ser matemática, o que é que eu ia fazer com um canal de televisão? Ou então se eu tivesse nascido com o dom para ser astronauta, de que adiantaria ele me dar um teatro? (risos)
E, claro, com muito pé no chão. Nada na minha vida veio fácil, como não vem até hoje. É muito trabalho, muita luta. Esse sobrenome pesa mais, tudo cobra-se mais e se tem uma visão no mercado de que é fácil para mim porque eu sou Abravanel.
AOL – Mesmo os teus amigos tinham essa idéia de que tudo era mais fácil para você?
Cintia – Só quem convive comigo no dia a dia sabe que não é assim. Existe essa ilusão de que o artista é rico. E quantos artistas são completamente ferrados! Mas o cara aparece na televisão, então tem dinheiro… Existe uma mentalidade, uma cultura errada que não vê que isso é um trabalho. Aquela pessoa que aparece na televisão é personagem de novela: ele não mora naquela casa, não tem aquelas roupas, aqueles carros. E ainda tem um agravante maior: eu sou filha de um cara que dá casa, dá dinheiro… (imitando o pai) ‘quem quer dinheiro?’ Distribui um milhão por aí…
AOL – Você não ficava brava, às vezes, por causa disso, achando que ele poderia fazer outra coisa na vida?
Cintia – Eu, não. Eu acho que ele é ótimo. Ele é o melhor no que ele faz. E acho que perdi muito tempo da minha vida tentando explicar que não era bem assim. Ainda tem pessoas que olham o meu trabalho e para meus prêmios achando que eles vieram por causa do meu sobrenome. ‘Ah, ela conseguiu isso porque ela é filha do pai dela’. (pausa) Isso me magoa um pouco. Mas não têm o trabalho de vir assistir ao meu espetáculo.
AOL – Mas gente séria fala isso?
Cintia – Gente séria. (pausa)
AOL – Você acha que isso é inveja? O fato de ter ganho o prêmio de produtora é um tapa na cara de muita gente que trabalha há muitos anos com teatro.
Cintia – Eu entrei mesmo nesse meio como uma estranha no ninho. Pensa: filhinha de papai, não tem curso universitário, não é do ramo, o pai deu um teatro, está lá brincando! Acho até normal pensar assim. Mas é o que eu vejo hoje. Em alguns restaurantes aos quais eu vou, quando os artistas me encontram, eles dizem: ‘Quando é que você vai produzir um espetáculo para eu trabalhar?’. E eu digo: ‘No dia em que você assistir o meu infantil’. Aí eles dizem, ‘Ah, mas eu não gosto de infantil’. Então como você vai trabalhar comigo? Se você não souber avaliar o meu trabalho, como é que você pode dizer que eu sou boa para te produzir alguma coisa? Não conhece o meu trabalho! Primeiro vai lá, assiste ao meu infantil para depois dizer que não gosta de infantil. Porque o meu infantil não é um infantil como todo mundo faz. O meu trabalho é diferente. (pausa)
Eu ouvi muitas vezes, ‘Ah, teu pai não te ajuda’. Como não? Ele me deu um teatro. Ele me deu sustentáculo para eu aprender e me deu o livre arbítrio para escolher quais são os meus caminhos. Não é imposto para mim o que eu tenho que colocar no meu espetáculo. Não me é imposto que tipo de peça eu tenho que produzir. Não me é imposto que tenho de produzir o Chaves, que ele apresenta na televisão. Eu posso trilhar o meu caminho. Isso não é me ajudar?
AOL – Ele nunca sugeriu ou disse que tipo de peça você poderia colocar no teatro?
Cintia – Eu tenho uma lista de peças da época em que comecei a pensar em produzir alguns textos que ele viu… Mas a minha trajetória de vida é outra. A minha visão é diferente da do meu pai.
AOL – É difícil manter o seu rumo e ao mesmo tempo reconhecer que vocês são diferentes?
Cintia – Não porque eu sou eu. Não sou artista, não sou diretora, não sou cenógrafa. Mas também não sou burra. Sei olhar uma coisa e vejo ‘aqui tem jogo, aqui dá samba, vai ser legal’. E vou produzir. E meu pai é muito diferente do que as pessoas vêm na televisão. Eu sou filha desse pai maravilhoso, desse pai que é tudo de bom, sou abençoada mesmo, e tenho muita sorte de sacar isso e sacar que eu sou eu, tenho o meu valor também, que não preciso estar na sombra dele. E nem querer ser igual a ele. Eu tenho o meu caminho para trilhar. Não quero ser nem melhor, nem pior. Eu quero ser eu. Sem carregar o peso e a responsabilidade de ser igual a ele, ser a sucessora dele.
AOL – Isso nunca te passou pela cabeça?
Cintia – Eu acho que isso é a vida que vai dizer quem é.
AOL – Mas não é uma coisa na qual você pensa, com a sua experiência administrativa, seu conhecimento hoje?
Cintia – Eu acho que eu tenho uma experiência melhor. Eu tinha uma coisa antes que me travava e que hoje não tenho o mínimo problema com isso. Eu achava que eu tinha que saber tudo. Hoje eu sei que eu tenho que escolher a pessoa certa, alguém que saiba fazer. Então eu não preciso estudar teatro para ser uma boa produtora. Preciso ter uma equipe competente. Primeiro, saber o que eu quero, traçar a minha meta e não sair do meu caminho e trazer só o que é melhor para o trabalho. É só somar, compartilhar, um trabalho se constrói assim.
Eu não sou dona da verdade. Como administradora e como filha, eu estou aprendendo a ver como essa engrenagem funciona. É humanamente impossível entender de tudo o que ele tem. Mas algumas coisas eu vou saber opinar, porque eu estou aprendendo, estou observando. Outras, não sei se eu gostaria de fazer, acho que não teria tesão de fazer.
AOL – Como o quê, por exemplo?
Cintia – (silêncio) Cuidar do banco. Eu acho que não tenho vocação para ser banqueira. Mas de repente pode ter uma das minhas irmãs que tenha. Eu, Cintia, não tenho.
AOL – Mas você tocaria a TV?
Cintia – Ah, só depois que ele morrer, porque a gente ia brigar muito. (risos) Aí quem sabe… seria uma briga de foice! (rindo mais alto, para depois continuar) Eu acho que a minha experiência de vida é diferente da dele. A minha visão do mundo é diferente hoje da dele. Então a gente ia brigar muito com programação. Eu ia querer fazer de um jeito e ele ia querer fazer de outro. Então, no momento, eu acho sim que ele está me preparando para algo maior porque televisão nada mais é do que teatro dentro de uma caixa. Eu estou aprendendo produção, administração, criar, desenvolver e ir atrás de produtos, clientes… É a mesma engrenagem, só que o tamanho é diferente.
AOL -Você acha que não conseguiria seguir as ordens dele, então?
Cintia – A minha experiência de vida é outra, o mundo da minha geração é outro – diferente do dele. Eu gostaria de ter para os meus filhos o que eu tive quando era criança. Coisas padrão Vila Sésamo, que eu acho que é o que eu faço. O que o mercado vê hoje, o que o meu pai tem como referência é Xuxa! (pausa) A minha referência é outra. Então eu acho que a gente entraria em choque por isso. Não estou dizendo que a Xuxa não tem o valor dela, mas hoje eu acho que depois que ela virou mãe, a qualidade do que ela faz hoje é completamente diferente. E isso não é exatamente o que o mercado acha que é melhor.
AOL – Tanto é que o ibope do programa da Xuxa hoje é bem inferior ao que era antes.
Cintia – Só que hoje, eu garanto que ela tem maior fidelidade das crianças e dos pais também. Eu criei meus filhos assistindo Disney, eu fui criada assistindo Disney. Então eu não entendo isso… Quem me dera ser filha do dono da TV Cultura, eu ia adorar! (risos) Produzir ‘Castelo Ratimbum’, nossa, ia ser minha praia! Mas o mercado e as pessoas estão acostumados com aquilo que é fácil, descartável. Não está bom, já bota outro no lugar. E trabalhar com criança, massificar desse jeito, é muito difícil. Vila Sésamo tinha no elenco Aracy Balabanian, Armando Bogus, Sonia Braga, só tinha fera! E hoje você bota quem para trabalhar para criança? Uma bela bunda para dançar a boquinha da garrafa? A eguinha pocotó? Qual é a responsabilidade sua como produtor, como formador de opinião? Tudo o que eu faço é muito mais difícil para se ganhar dinheiro, mas eu durmo e isso para mim não tem preço.
AOL – Mas que tipo de programação você levaria para a televisão?
Cintia – Eu gostaria de poder levar para a televisão o que eu produzi no teatro. Não tenho dúvida que teria muito patrocinador. E que teria ibope. O meu Sítio do Picapau Amarelo foi visto por 200 mil alunos. Para a televisão, é um número ridículo porque eles atendem isso por minuto. Eu demorei quatro anos para ter esse público. Foram dois espetáculos nos finais de semana, trabalho pra caramba, contando com o espectador que tem que sair de casa, pagar estacionamento, esquecer o jogo… E gostou. É muito mais difícil do que fazer televisão.
Agora, eu teria um tesão enorme de fazer isso na televisão. Produzir, cuidar de uma programação infantil com este formato. Quem sabe um dia? Hoje eu ainda acho que tenho muita coisa para fazer aqui, construir esse centro cultural, formar profissionais, escolher as pessoas certas, ensinar os executivos a darem para a sociedade e ter outro tipo de retorno. Acho que minha função hoje ainda é essa, não é ir para a televisão. Acho que depois que isso estiver andando, o dia para mim tem 24 horas, eu posso trabalhar e isso aqui poderia ser meu hobby, virar minha paixão. E aí posso começar do zero. Talvez fique mais fácil vender um projeto para televisão, depois de comprovado com muitos números e prêmios que isso é rentável, que cultura também é comercial, que cultura é negócio.
AOL – Muita gente já descobriu…
Cintia – Tomara que as pessoas descubram que cultura é um grande negócio, que educar um povo é um grande negócio. Acho que é o melhor negócio. A gente vai gastar muito menos dinheiro com uma porção de outras coisas quando a gente tiver um povo mais culto e mais educado. Mais saudável. Mais ‘n’ coisas, então eu acho que é assim que a gente faz a nossa parte e muda o país. E não é de um dia para o outro. Eu estou fazendo a minha parte. Posso morrer amanhã tranquila porque eu sei que a minha parte eu estou fazendo.’