Inspirado numa trilogia homônima, o filme Jogos Vorazes tem tudo para se tornar um fenômeno de público e faturamento (ver aqui). Também tem tudo para se tornar um fenômeno de cibercultura (ver aqui). A imprensa limitou-se a apresentar o filme ou enfatizou as diferenças entre os livros e sua versão cinematográfica e a superficialidade dos cenários e interpretações (ver aqui). No Estado de S.Paulo, Luiz Zanin fez uma análise um pouco mais sofisticada. Disse que os livros “repassam, de forma ligeira, questões como o autoritarismo, a manipulação do medo e da esperança, os reality shows e a conivência dos povos com a ditadura. Também de leve, o filme fala da estrutura dos jogos que, como se sabe, têm papel importante na economia libidinal das sociedades” (ver aqui).
Zanin concorda com a tese de que o filme diluiu as críticas e questões colocadas nos livros. Assisti ao filme com a sala de cinema quase cheia. Não li os livros que serviram de inspiração para a produção, portanto farei considerações levando em conta apenas o que vi.
Na história há uma clara oposição entre centro urbano/capital e periferia. No centro urbano/capital, onde os jogos são realizados, predominam uma arquitetura monumental de inspiração nazista (a cidade me fez lembrar da maquete da nova Berlim projetada por Albert Speer); riqueza e opulência; roupas luxuosas e afetadas; fartura de alimentos e deli casses; ócio e espetáculo; natureza artificialmente controlada; corrupção social e brutalidade governamental. Na periferia, onde os jovens gladiadores são recrutados, predominam habitações precárias; pobreza e privação; roupas simples; trabalho duro e perigoso; natureza naturante; sentimentos fraternos.
Metáfora dos sistemas eleitorais
A obra, portanto, pode ser considerada vagamente inspirada na filosofia de Jean-Jacques Rousseau pois “a sociedade civilizada, desenvolvendo sempre mais sua oposição à natureza, obscurece a relação imediata das consciências: a perda da transparência original vai de par com a alienação do homem nas coisas materiais”(Jean-Jacques Rousseau, A transparência e o obstáculo, Jean Starobinski, Companhia de Bolso, 2011).
No seu distrito de origem, a heroína é uma caçadora e ao sair de lá pede à sua mãe que não se inscreva para receber ajuda alimentar do governo pois encontrava-se num estado de “…suficiência perfeita, o homem não tem necessidade de transformar o mundo para satisfazer suas necessidades” (Jean-Jacques Rousseau, A transparência e o obstáculo, Jean Starobinski, Companhia de Bolso, 2011).
Na centro urbano/capital, a jovem é submetida ao espetáculo da civilização onde o despotismo político e social imperam. Os Jogos Vorazes, portanto, operam a passagem da periferia ao centro urbano/capital, do estado de natureza para a sujeição à cultura degradada. O casal vitorioso é integrado à sua nova comunidade-destino com hábitos novos e roupas diferentes.
A história é esquemática, as oposições são fixas e o processo de civilização através da guerra de todos contra todos na arena dos jogos é inevitável. Para os participantes dos Jogos Vorazes, a vitória significa sobrevivência e reconhecimento na periferia e integração ao centro urbano/capital. Para a sociedade como um todo, a disputa produz entretenimento público e controle social através da esperança. Nesse sentido, ainda na sala de projeção, me ocorreu que os Jogos Vorazes podem ser considerados uma metáfora dos sistemas eleitorais numa sociedade pós-moderna.
Alianças ocasionais
As metáforas utilizadas na política são bastante significativas. Não é incomum um político dizer que deseja “enterrar politicamente” seu adversário, “destruir” suas possibilidades de ser eleito ou de prevalecer no Parlamento. Quando um estadista cai em desgraça, seus adversários dizem que ele está “morto”, mesmo que esteja gozando de saúde perfeita. A disputa política pode ser elegante e educada, mas é uma “guerra” e algumas vezes os parlamentares trocam socos, tapas, pontapés e cadeiradas.
Nos Jogos Vorazes, os competidores tem que conseguir patrocinadores, pois estes fornecerão os medicamentos e alimentos que eles necessitarão. Na disputa eleitoral, os patrocinadores fornecem aos políticos os meios financeiros para fazer campanha e sobrepujar seus adversários. Na arena eleitoral, o candidato tem que construir uma imagem pública para agradar seus eleitores e financiadores. Nos Jogos Vorazes, os competidores tem um olho no adversário e os dois nas pessoas que estão assistindo ao espetáculo. A finalidade da política não é a resolução do conflito social, mas a preservação da estrutura de disputa partidária. Através dos Jogos Vorazes, o centro/urbano quer preservar a submissão dos distritos periféricos, onde a repressão policial é semelhante àquela que vemos nas periferias de nossas cidades.
Durante as eleições, ocorrem alianças ocasionais e temporárias e parcerias profundas e duradouras. Idem nos Jogos Vorazes, em que vemos o mesmo tipo de hipocrisia e dissimulação que existe na política quando o garoto do distrito 12 se alia aos adversários mortais da heroína para tentar preservá-la. Numa eleição, como nos Jogos Vorazes, às vezes um contendor se sacrifica em benefício do colega com melhores condições de vitória.
Filme que faz pensar
A política nas democracias pós-modernas é representação e espetáculo televisivo. Os Jogos Vorazes também são um espetáculo televisivo em que a representação é importante, pois estimula a ajuda desejada dos patrocinadores. Em ambos vemos que alguns participantes resistem aos vícios do jogo (a brutalidade nos Jogos Vorazes, a corrupção financeira na vida pública), mas os vitoriosos são aqueles que conseguem se ajustar perfeitamente à natureza do espetáculo.
Apesar de ser levado a torcer pela dupla do distrito 12, fiquei com a impressão que a vitória deles equivale, na verdade, a uma derrota, pois significou a preservação da hegemonia do centro urbano/capital sobre a periferia e, portanto, a continuidade dos jogos. O filme parece otimista, mas é fatalista e conservador (exatamente como os sistemas políticos das democracias pós-modernas). Um bom filme, de qualquer maneira. Fez pensar.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]