Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A “ética” dos corruptos

É ético um jornalista usar câmeras secretas para comprovar um crime que, depois, ele irá denunciar? Não discuto, aqui, a legalidade de sua ação, porque não tenho a formação jurídica necessária para me pronunciar sobre as leis e jurisprudência cabíveis no caso. Mas a questão adquire relevância diante do fato que movimentou a sociedade brasileira na semana que passou: a revelação, em imagens incontestáveis, de uma rede de corrupção atuando justamente nos hospitais – o que torna particularmente desumano o crime porque está sendo cometido contra pessoas especialmente vulneráveis. Isso, além de ser uma área em que cronicamente falta dinheiro, até porque os custos com a saúde costumam subir mais que a inflação, em parte devido aos grandes avanços que a medicina tem conhecido.

O que é flagrante é a falta de ética das pessoas que vimos no Fantástico e no Jornal Nacional. Os corruptos (vou chamá-los assim, embora tecnicamente não o sejam porque não são servidores públicos) não mostraram nenhum pudor. Imaginando-se a salvo, foram francos. Duas afirmações me chocaram em especial. Primeira, quando uma senhora diz que está praticando “a ética do mercado”. Mas o que ela faz não é nada ético. A não ser, claro, que use “ética” num sentido apenas descritivo, como quando se diz que a “ética do bandido” é matar quem o alcagueta, ou que a “ética do machista” é assassinar a esposa suspeita de adultério. Contudo, um dos ganhos dos últimos anos tem sido a redução desse emprego da palavra “ética”, só descritivo. Cada vez mais, entendemos a ética como prescritiva, normativa, como exigente – não como a mera descrição de condutas praticadas em alguma área da ação humana. Uma expressão de Claudio Abramo, frequentemente citada pelos profissionais da imprensa, é significativa: “A ética do jornalista é a mesma do marceneiro, de qualquer pessoa.”

A lei deixa de ser lei

Na verdade, até esperei, depois dessa frase sobre “a ética do mercado”, que “o mercado” reagisse de alguma forma. Se ela dissesse que essa é a ética dos médicos, as associações não iriam protestar? É claro que “o mercado” não é um sujeito. Aliás, sua riqueza e eficácia estão, justamente, em ele não ser um sujeito único, mas uma rede em que se cruzam e medem inúmeros sujeitos. No entanto, aqui se coloca uma questão crucial, sempre presente quando se trata do capitalismo. Brecht tem a frase famosa: “O que é roubar um banco, em comparação com fundar um banco?” O capitalismo sempre esteve assombrado pela diferença entre o lucro obtido legítima e legalmente e o que é extorsão, usura, roubo.

Na Idade Média, a igreja cristã condenava a usura, dificultando as operações de financiamento. Por outro lado, com o capitalismo já consolidado, no final do século 19 um grupo de grandes empresários norte-americanos era chamado de robber barons, barões ladrões, tal a sua desonestidade. Contudo, o mesmo capitalismo cresce graças a uma ética extremamente forte, que Max Weber, num livro clássico, aproximou do protestantismo. Na verdade, a distinção entre o lucro e a extorsão é crucial para o capitalismo. Um dos desafios para ele funcionar, e em especial para se tornar popular, é convencer a sociedade de que seu compromisso ético – com a construção da riqueza pelo trabalho e o esforço – supera seus deslizes, os quais serão rigorosamente punidos. Ou seja, “o mercado” precisa reagir. O debate sobre esse caso não pode ficar circunscrito à área política. “O mercado” foi injuriado, tem de responder.

O outro ponto assustador foi quando um dos personagens gravados disse que sempre ensinava a seus filhos a virtude da solidariedade. Disse isso com outras palavras, mas ele considerava digno de educar seus filhos na formação de quadrilha. Aqui, estamos diretamente na ética do crime. Mas se na frase da senhora sobre o mercado podíamos ver alguma ironia ou resignação (“a vida como ela é”), na frase desse senhor se ouvia algo mais grave: a educação dos filhos, a construção do futuro segundo a ótica do criminoso.

Uma coisa é resignar-se ao mundo como está e operar dentro dele. Outra, pior, é entender que ele não vai melhorar e, portanto, a melhor educação que se deve dar aos pequenos é ensiná-los a serem bandidos. Aqui, a tarefa afeta, em especial, os educadores profissionais, como os professores, e a multidão de educadores leigos, que são os pais e todos os que cuidam de crianças. Mas, antes mesmo disso, ela passa por uma pergunta cândida: podemos melhorar, em termos de sociedade, no que se refere ao respeito da lei e dos outros? É possível convencermo-nos, e convencermos os outros, de que seguir os preceitos éticos é absolutamente necessário? Ou viveremos nas exceções? E isso diz respeito a todos nós.

Ocorreu-me, uma vez, que no Brasil a lei tem papel mais indicativo do que prescritivo. Explico: todos concordamos que se deve parar no sinal vermelho – e a grande maioria o faz. Mas a pressa, o fato de não estar vindo um carro pela outra via ou a demora no sinal “justificam” eventualmente passar no sinal vermelho. A lei deixa de ser lei para se tornar uma referência, apenas; ou, pior, algo que espero que os outros respeitem absolutamente, mas que infringirei quando me achar “justificado” a fazê-lo. Guiando desse jeito, vários pais mataram os próprios filhos – e isso continua acontecendo. Não precisaremos fortalecer, enquanto sociedade, a convicção de que para um bom convívio é preciso repudiar fortemente essas duas frases que, na sua euforia, os dois personagens pronunciaram sem saberem que estavam sendo gravados? Enquanto isso, obrigado aos repórteres que denunciaram esse crime.

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[Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo]