Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

‘Para evitar os inevitáveis respingos políticos e a partidarização do escândalo no Ministério da Saúde, as autoridades tiveram o cuidado de designá-lo como exemplo da corrupção ‘endêmica’. Cuidados compreensíveis, mas a classificação é enganosa. Endemias são doenças características de determinadas regiões, resultado de circunstâncias geográficas particulares. A nossa corrupção é circulatória, orgânica. Sistêmica.

E, para combatê-la, indispensável deixar de lado questões menores como nomenclatura ou morfologia. O ralo por onde desaparece há décadas parte apreciável do orçamento do país não é apenas moral, antropológico, jurídico ou social. É político.

Este caso da Máfia do Sangue é antológico porque os delinqüentes conseguiram baixar o custo dos hemoderivados comprados pelo governo e, acertados entre si, mantiveram um sobrepreço capaz de produzir formidáveis comissões. Fingiram eficiência e com ela acobertaram-se para trapacear nas licitações.

O segredo da nossa corrupção reside no fato de que independe da cor dos bonés; situa-se além das crenças religiosas e tipo de regime vigente. Ultrapassa as diferenças entre poderes constituídos porque está profundamente entranhada no aparelho do Estado. A prevaricação não se processa nos guichês de pagamento ou recebimento porque nesse caso seria fácil flagrá-la. Ela é gerada na forma de redigir e cumprir os regulamentos, através das brechas da burocracia, dos atalhos casuístas, mas ganhou essa escala graças a uma generalizada diversificação. Capilarizou-se.

Os modernos vampiros e sanguessugas já não são marginais, não se vestem a caráter nem se escondem no bas-fond , mas se espalham num enorme arquipélago de áreas cinzentas, ao lado de lobistas, funcionários públicos de alto coturno, advogados, magistrados, prósperos empresários com suas secretárias, promotores de eventos e seguranças.

Agora que é chique usar camisas listradas com colarinhos lisos e alvos a metáfora do crime de colarinho branco tornou-se imprópria, porém é universal. Os delinqüentes continuam impecáveis, irreconhecíveis, não deixam impressões digitais, circulam nos melhores restaurantes e nas mais respeitáveis companhias. É por essa razão que entre os detidos está um dos homens de confiança do atual ministro da Saúde operando ao lado de veteranos da geração PC Farias.

A contigüidade das diferentes vigarices sob a égide do Erário permite bizarras combinações, como no caso dos fiscais no ‘propinoduto’ fluminense e na presença de um próspero dono de jornal de Brasília no meio da Máfia do Sangue. Nossa corrupção é transestadual, transnacional, apolítica, intemporal. Sobretudo, ágil.

E mutante. A Suíça ainda fascina gente sofisticada como Paulo Maluf mas a velha república do relógio-cuco, do chocolate e das contas numeradas está ficando demodée. As novas gerações não acreditam nas tradições, preferem a grana em espécie. Em São Luís do Maranhão, há dois anos, apareceu uma fabulosa coleção de notas de 50 reais; em São Paulo, há poucos meses, a Operação Anaconda encontrou numa gaveta montes de dólares e barras de ouro. Agora, com a União Européia em alta, a vampiragem cabocla passou a guardar euros.

Há dias o ministro-chefe da Casa Civil surpreendeu os políticos ao propor um pacto nacional para enfrentar as incertezas da economia mundial. Não é má idéia. Mas, antes, precisamos de um pacto nacional para despolitizar o combate à corrupção.

Nosso encarniçado tribalismo nos leva a fechar os olhos ao bandido-correligionário e a desancar apenas o bandido-adversário. No poder somos tolerantes, na oposição beligerantes. Nesse relativismo imoral, o bandido de esquerda alia-se ao bandido de direita e consagra-se a impunidade.’



Lourival Santana e João Caminoto

‘Imprensa destaca visita do presidente’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/05/04

‘O jornal International Business Daily estava nas bancas chinesas ontem com um encarte especial de 12 páginas dedicado à viagem de seis dias do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China. O encarte todo escrito em chinês foi produzido pelo Ministério de Comércio do país e patrocinado por anúncios de empresas brasileiras e chinesas.

Na capa do jornal, um bilhete do presidente Lula escrito à mão: ‘Sem medo de ser feliz’. Entre as 12 páginas do encarte, um artigo assinado pelo ministro do Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior brasileiro, Luiz Fernando Furlan.

Durante a presença de Lula na China, não deverão ocorrer anúncios de grandes negócios ou acordos na área comercial além do que já foi divulgado nas últimas semanas no Brasil. O principal objetivo da viagem, na ótica do governo brasileiro, é deixar claro para os chineses a enorme importância estratégica e comercial que o Brasil confere à China.

A expectativa de Brasília é que o maior estreitamento das relações bilaterais renda frutos consideráveis no médio e longo prazos, por meio de pesados investimentos chineses na infra-estrutura do Brasil, principalmente, no setor de transportes ferroviários e marítimos.’



LACERDISMO TUCANO
Flávio Aguiar

‘Os novos lacerdas’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 20/05/04

‘A tucanagem de hoje sabe que para recuperar o Planalto em 2006 é necessário atingir e destruir a credibilidade do presidente Lula, à direita, à esquerda e ao centro.

O artigo de Eduardo Graeff publicado na Folha de São Paulo de 19 de maio, na página 3, ‘Nem tanto nem tão pouco’ é a prova provada no mal estar que atualmente assola a tucanagem brasileira. Uma definição: quando emprego a palavra ‘tucanagem’ é para diferencia-la de ‘tucanato’, pois aquela vai além deste. É ela aquele sentimento incontido de que existe algo de errado na ordem das coisas que permitiu a uma trajetória vinda ‘dos de baixo’ (a expressão é de Florestan Fernandes) suplantar no voto a trajetórias que se assentam nos sólidos salões da nata da élite brasileira.

O artigo conclui afirmando a necessidade de gestar uma ‘nova agenda’ para as oposições. Ou seja, ele testemunha de assina embaixo que a guinada à direita da política econômica do governo Lula roubou-lhes a pauta e o programa. E nada mais lhes resta do que atacar o presidente, o perfil do presidente, a figura do presidente. São os novos lacerdas, sem os golpes de antanho, porque inverossímeis na política brasileira de hoje.

Carlos Lacerda foi um político especialista em destruir perfis e políticas. O que Lacerda construiu? É difícil lembrar. É mais fácil lembrar que ele destruiu o segundo governo de Vargas, o de Jânio e ajudou a destruir a ordem constitucional em 64.

A tucanagem de hoje sabe que para recuperar o Planalto em 2006 é necessário ir além dos casos Waldomiro, é necessário ir além de recuperar a prefeitura de São Paulo, de ganhar a de Belém ou outros feitos e esforços desse tipo. É necessário atingir e destruir a credibilidade do presidente Lula, à direita, à esquerda e ao centro. É necessário isolá-lo, deixá-lo falando sozinho. É isso o que pretendem os que se auto-intitulam os ‘formadores de opinião’ da tucanagem.

A partir daí cria-se uma ‘barreira semântica’ que cerca continuamente as menções ao presidente e na qual se martela e se vai martelar sempre, pois é o que resta a fazer, pelo menos de momento, em que esse lado das oposições se vê roubado em seu programa, e sem identidade. A tucanagem sempre acreditou ser o sol do nosso sistema; de repente viu-se reduzida à condição de satélite sem luz própria, sequer a de planeta com órbita autônoma. A tucanagem administrou o espólio da ditadura. Jogaram-se com tal afã em privatizar o privatizável que se esqueceram do resto. Agora querem candidatar-se a administrar o espólio do governo Lula; mas é necessário agora construir esse espólio, redigir-lhe o testamento, criar o morto-vivo, como Lacerda fez com Getúlio em 54. Só que lá o tiro saiu pela culatra (isso não é apenas uma metáfora). Agora vamos ver o que vai acontecer.

Para o presidente e suas ações se reservam sempre expressões amesquinhantes, diminuidoras, pejorativas, que induzam ao desprezo: isso é o que chamo de ‘barragem semântica’ em que se martela continuamente. São expressões como ‘pirotecnia verbal’, ‘aparelhismo’, ‘exagero descabelado’. Essa última é significativa: não basta o ‘exagero’, que já é pejorativo. Não. Deve-se recorrer à hipérbole, a mesma de que se acusa o governo: o exagero precisa ser ‘descabelado’. E tem mais: ‘xaropada’, ‘blá-blá-blá’, ‘praga’, ‘grandiloqüência oca’, ‘fiasco’, ‘mal’, ‘fragilidade política’.

Se fizermos a garimpagem em outras áreas, vamos encontrar que o governo quase sempre ‘tenta’, nunca faz. O governo ‘vende’ interpretações. Padece sempre de ‘incapacidade gerencial’. Falta-lhe ‘sofisticação intelectual’, padece de uma ‘síndrome do auto-engano’. Numa outra frente, compara-se Lula com Hugo Chávez e Fidel Castro, sempre pelo lado dos excessos verbais. Também se levanta o argumento do ‘autoritarismo’, mas um autoritarismo diverso do da ditadura de antanho, embora apresentado como semelhante no tom: é um ‘autoritarismo defensivo’, de quem se sente inseguro, menor, desacreditado.

O pior de tudo isso é o completo esvaziamento do debate político de atitudes e programas. Tudo gira em torno dos ataques pessoais, mesmo se restritos ao perfil político dos personagens. E de vez em quando não o são, como no caso do artigo de Rohter sobre a suposta preocupação nacional com os supostos hábitos do presidente em relação a bebidas destiladas.

O pior dessa situação é que vai ser muito difícil nessa altura convencer o Planalto de que a única saída desse cerco verbal é à esquerda. Enquanto ele continuar batendo às portas dessa verdadeira Casa Grande da política brasileira com sua pauta econômica conservadora, só colherá o seu desprezo, pois a gratidão ficará com a Fazenda e o Banco Central, que neutralizam o ‘passado petista’ do presidente. E de fato ele se isolará cada vez mais. Se for à esquerda, colherá as suas manifestações de ódio. Mas o ódio, a gente sabe, é uma forma de respeito. E o ódio por parte da Casa Grande tem como contrapartida, pelo menos no longo prazo, a eterna gratidão por parte da Senzala.’