Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Perdas e danos

 

Com dias de diferença apagaram-se dois poderosos fachos de luz, duas pilhas de inteligência. Contraditórios, opostos, singulares, ímpares e pares. Iguais: escolheram o riso como ferramenta, mas rir não se resume à mera contração de músculos da face, é uma demonstração espontânea de alegria, satisfação, prazer íntimo ou coletivo. Em qualquer dos seus níveis – do sorriso à gargalhada – independente do seu teor – ironia, sarcasmo, deboche, graça – o riso é uma infalível arma de destruição da arrogância e do rancor.

Chico Anysio e Millôr Fernandes foram mais do que humoristas. O cearense foi ele próprio o veículo dos seus achados antropológicos, primeiro no rádio, depois teatro e televisão. Com aquele corpo mirrado e olhos arregalados veiculou uma magistral galeria de mais de 200 personagens, impagável retrato das mazelas brasileiras.

O carioca Millor serviu-se do desenho e da palavra para nos fazer pensantes. Filósofo que dialogou com ele mesmo para derrubar fraudes, equívocos, lorotas. Usou linhas, tintas, penas, lápis, máquinas. Despreocupado com maquinetas nos fez herdeiros de um formidável acervo de dúvidas e incredulidades.

Tarefas e quantias

Dois artistas praticamente da mesma geração, possivelmente se cruzaram em alguma praia, palco, botequim. Jamais em comícios: faziam política numa esfera superior, perene, militantes de uma causa que poucos têm estofo para abraçar: a independência.

Crias de um mesmo Rio de Janeiro hoje evaporado, momento urbano indizível. Irreproduzível no tempo e no espaço. Nem suas cinzas esvoaçam juntas. Melhor assim: espalhadas, derrubarão mais farsas e solenidades. Resistiram à Parca, sofreram, não mereciam. Numa terra onde as perdas são disfarçadas Chico e Millôr serão incorporados ao panteão dos que incomodam. E lá ficarão para sempre.

Qual dos dois forjou esta arrasadora sátira onde um moralista com o mesmo nome do sublime orador grego desaba desmoralizado perante a multidão incrédula?

A história do até-agora-senador Demóstenes Torres é tragicômica, joco-séria, pastelão mórbido. Veio do impoluto Ministério Público, procurador geral e secretário de Segurança de Goiás, senador da República, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, líder do DEM na Câmara Alta, incansável caçador de corruptos, chegou a ser considerado uma das 100 personalidades mais influentes do país.

De repente despenca, enredado na quadrilha do contraventor-mor, Carlinhos Cachoeira. Incrível o volume de menções ao seu nome em gravações legais com referências explícitas a tarefas e quantias recebidas. Seu mandato está ameaçado, carreira política praticamente encerrada.

Em falta

Coisas do livre-arbítrio. Mas o dano é irreparável no plano moral e institucional. Uma sociedade dominada pelo ceticismo e desanimada diante do elenco de nulidades que se exibe no pódio está sendo empurrada inexoravelmente para o abismo da descrença onde geralmente costumam germinar indignações e revolta.

O senador Torres comprometeu o país, sua capacidade de superação e regeneração, pisoteou os valores que cimentam uma nação. Demóstenes, o grego gago, fez da eloqüência uma arte, este homônimo nos empurra para a chacota.

A verve de Chico Anysio e Millôr Fernandes já faz falta.