A Comissão da Verdade não poderá rever a Lei da Anistia, mas poderá desmontar quase meio século de mentiras com as quais os brasileiros são obrigados a conviver. Quem tem hoje menos de 43 anos ainda não nascera em 1969, quando a tortura foi transformada em política de Estado pela ditadura. O conflito do século passado não faz parte do seu mundo, mas as mentiras ofendem-lhe a inteligência, mutilando o direito que uma sociedade tem de saber o que aconteceu no seu país. Saber, só saber.
As mentiras não persistem em nome da pacificação dos ânimos. Acima de tudo, foram e são o exercício de um poder que busca o bloqueio da lembrança. Dilma Rousseff reconhece que participou de uma organização que matou gente que nada tinha a ver com sua luta (o caso do major alemão que foi confundido com um capitão boliviano, assassinado no Rio em 1968). Por conta dessa militância, ela foi presa, torturada e pagou três anos de cárcere. Os torturadores e assassinos que participaram do combate a essas organizações cumpriram ordens e, em muitos casos, foram condecorados e continuam protegidos por um manto de silêncio. Em seu governo, Fernando Henrique Cardoso reconheceu a responsabilidade do Estado nesses crimes, mas falta responder a perguntas que completarão meio século de silêncio.
Tome-se um exemplo, o do segredo em torno do que aconteceu no combate à Guerrilha do Araguaia.
Sumiram até mesmo os que se renderam
Em 1972, o Exército soube que havia naquelas matas um projeto de foco guerrilheiro do PCdoB. Eram cerca de 70 militantes. A tropa chegou em abril e, até dezembro, capturou oito guerrilheiros, entre eles José Genoíno, atual assessor do ministro da Defesa. Nesse período, morreram 12 combatentes da organização comunista e oito foram capturados. Processados e condenados pela Justiça Militar, cumpriram suas penas e foram libertados. Em outubro de 1973, o Exército iniciou uma nova operação. Depois do Natal, não havia mais guerrilha. Restavam apenas fugitivos e só dois escaparam. Um era o comandante militar do foco; o outro, seu guia. O efetivo do PCdoB ficou reduzido a algo como 35 militantes.
A mentira impõe aos brasileiros a ideia de que eles desapareceram. Só um foi visto morto. Talvez tenham sido recolhidos numa clareira por um disco voador albanês. Depoimentos colhidos posteriormente mostram que houve casos de prisioneiros mortos semanas depois de terem sido capturados. Sumiram até mesmo os que se renderam, convidados a entregar as armas em panfletos assinados por militantes presos na primeira fase e por exortações feitas por militares que usavam megafones nos helicópteros.
As seis crianças de Goebbels
Entre dezembro de 1973 e fevereiro de 1974, a operação militar do Araguaia foi comandada pelo então coronel Nilton Cerqueira. Como major, em 1971, ele estava na cena em que o ex-capitão Carlos Lamarca foi fuzilado, no interior da Bahia. Em 1981, comandava a Polícia Militar do Rio de Janeiro quando uma bomba explodiu no colo de um sargento do DOI e estripou um capitão no estacionamento do Riocentro. Em sua carreira só teve uma derrota. Enfrentou os bicheiros da cidade e viu-se exonerado. Nos anos 90, o general presidiu o Clube Militar e, em 1994, elegeu-se deputado federal pelo PP. O governador Marcelo Alencar (PSDB) nomeou-o secretário de Segurança. Talvez ele possa contar o que aconteceu numa campanha militar que, sob seu comando, não conseguiu capturar vivo um só prisioneiro. Só contar.
Em maio de 1945, os alemães abandonaram o bunker de Hitler embaixo da chancelaria do Reich. Da equipe do führer, eram umas 20 pessoas, civis e militares. Naquele caos, sumiu só a nutricionista. A arcada dentária do desaparecido Martin Bormann, a maior autoridade a bordo do bunker, foi identificada em 1998. Os aliados e o Exército Vermelho capturaram quase todos, inclusive o dentista da SS que ajudou a sedar as seis crianças de Joseph Goebbels que seriam envenenadas. Dos que foram levados para a Rússia, pelo menos um morreu e outros ficaram presos até a segunda metade dos anos 50. A secretária de Hitler foi solta pelos ingleses em 1946. O suboficial SS Rochus Misch, que servia como telefonista, está vivo, com 95 anos.
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[Elio Gaspari é jornalista e escritor]