Como se não bastasse a triste escassez de notícias sobre a cultura brasileira na melhor imprensa mexicana, literatura aí incluída, aparece agora uma revelação tão surpreendente quanto chocante: os exemplares encalhados de livros de Rubem Fonseca, escritor dono de um pequeno mas fiel fã-clube local, cult em alguns nichos literários do México, vão para ‘la guillotina’, ou seja, são picotados e vendidos como papel reciclável. Os livros que escapam a essa bárbara triturada acabam em sebos de rua, vendidos a precinhos não tão camaradas, ao redor de 2,5 dólares.
A informação, publicada há pouco no sóbrio e respeitado suplemento literário Confabulario, do jornal El Universal, abria matéria assinada pela repórter Magali Tercero, que apresentava, depois de meses de apuração e entrevistas nos meios editoriais do país, um balanço do que lêem os mexicanos hoje. Conclusão da matéria: lêem pouco e mal.
Uma revistinha em quadrinhos, El libro vaquero, vende anualmente 41,6 milhões de exemplares, enquanto 60% da tiragem de escritores do nível de Fonseca terminam no lixo. Mais: uma única edição da revista Playboy esgota uma tiragem de 100 mil exemplares, 16% dos quais comprados por mulheres. Duas revistas semanais de fofocas televisivas, apimentadas com muita mulher e pouca roupa, TVNotas e TVyNovelas, tiram, juntas, l milhão de exemplares.
No caso do escritor brasileiro, felizmente tudo parece ter ficado só no susto, tipo alarme falso. Da editora de Rubem Fonseca no México, a prestigiosa Cal y Arena, que desde 1989 já publicou dez livros do autor, obedecendo a contratos assinados com a agente literária espanhola Carmen Balcells, saiu logo uma longa e dura resposta de seu diretor, Rafael Pérez Gay.
Em termos contundentes, começando por chamar a jornalista de mentirosa e negligente, questionando a eficácia e lisura dos seus métodos investigativos, pois sequer solicitou informações à editora, preferindo publicar só a versão dos vendedores piratas de rua, Pérez Gay esclarece: Fonseca costuma sair no mercado mexicano com uma tiragem inicial de 2 mil exemplares, rapidamente esgotados, obrigando a editora a reabastecer as livrarias com uma segunda, terceira, e até uma quarta edição. Não sobrariam portanto exemplares para mandar a ‘guillotina’ – prática, aliás, que a editora diz repudiar.
E se sobram alguns exemplares, ficam armazenados num depósito da própria casa (um dos informantes da jornalista, um velho livreiro, disse que o altíssimo custo do aluguel dos depósitos de livros na Cidade do México, ao redor 3 mil dólares mensais, é uma das razoes para o encalhe virar rapidinho papel reciclável).
Seja como for, e embora a jornalista não tenha replicado as afirmações do editor de Fonseca, é indiscutível que a matéria traz uma série de oportunas denúncias sobre o atual estado de coisas na indústria editorial mexicana, da qual certas tendências e práticas são confirmadas e até aumentadas por gente graúda do ramo.
De Profundis
Mas, afinal, quais os grandes obstáculos para fazer do México, dono de uma deslumbrante cultura e arte populares, com escritores do calibre de Octavio Paz, Juan Rulfo, Carlos Fuentes e Alfonso Reyes, um país de leitores? Quais os empecilhos, além dos fatores já conhecidos (na verdade de ressonância continental) como analfabetismo, preços altos dos livros, bibliotecas públicas mal abastecidas, alta taxação fiscal sobre editoras e livrarias? O México, de acordo com uma pesquisa da Unesco, está no penúltimo lugar entre 108 países em número de leitores. Mais ainda: a média de leitura entre os mexicanos, segundo a própria Camara Mexicana do Livro, é de 1,2 livros ao ano.
Do fundo do cárcere, o editor Fernando Valdés, dono da editora Plaza y Valdés, brutalmente preso e acusado por uma de suas autoras de ‘falta de cumprimento de contrato’, num tremendo rolo até agora muito estranho e pouco explicado, sem que nem mesmo a Camara Mexicana do Livro tenha saído em sua defesa, resume o panorama em números:
‘Nos anos 1960 e 70, tínhamos no México 1.300 editoras, hoje sobram 400. Havia na Cidade do México mais de 100 livrarias, agora funcionam 70, quando muito, cerca de 60% delas são sebos. Desapareceram os grandes livreiros, que costumavam, aos sábados, reunir gente do meio – escritores, jornalistas, poetas – para as agora saudosas tertúlias literárias.’
Fala-se também num excesso de livros no mercado, deixando os leitores em potencial meio tontos na hora da escolha. De fato, circulam em espanhol uns 100 mil títulos novos todos os anos, dos quais cerca de 15 mil são produzidos no México. Ocorre que os chamados pontos de vendas não cresceram como a oferta, e as livrarias, ao redor de 400 em todo o país, não satisfazem as crescentes exigências do leitor moderno, contribuindo muito pouco para a difusão do livro.
(A propósito da necessidade de uma renovação de métodos e sistemas para vender livros, a Gandhi, espécie de Livraria Cultura da Cidade do México, enorme e bem sortida, anunciou há pouco uma associação com o grupo Nobel, de São Paulo, na base de franquias, para implantar no México, a partir de janeiro, o conceito de livraria da empresa brasileira – espaços menores que vendem não só livros, mas também CDs, DVDs, revistas e jornais, além de café.)
Fotocópias legais
Também da recém-terminada Feria Internacional del Libro de Guadalajara saiu uma informação inquietante em relação ao problema do livro no México: segundo o Centro Mexicano de Proteção e Fomento dos Direitos de Autor (Cempro), o México é, sim, um país de leitores, só que de leitores ilegais.
Diz o presidente do Cempro, Gerardo Gally:
‘Sessenta por cento dos livros lidos no país são de origem ilegítima, distribuídos pelo comércio informal, os marreteiros, ou em fotocópias; só 40% são adquiridos em livrarias.’
Hoje, quatro de dez livros são fotocopiados e, desses 10, dois são piratas. Até 2004, um dos dez era pirata. ‘Isso quer dizer’, declara Gally, ‘que nós, o lado legal da indústria, vendemos só 20%.’
O combate às fotocópias ilegais tem sido firme e constante, por meio da regularização dessa prática nociva: nos últimos tempos, o Cempro assinou ao redor de 300 contratos de licenciamento com estabelecimentos especializados em fotocópias, universidades públicas, bibliotecas e centros de pesquisas.
Hoje com 70 sócios, entre autores e editores, que representam 95% do mercado editorial mexicano, o Cempro arrecadou, em 2005, perto de 250 mil dólares por cópias ‘legais’ – dinheiro destinado ao pagamento compensatório de escritores e editores afetados pela reprodução ilegal de seu trabalho suado.
A culpa é da telinha
O problema, contudo, é de enorme complexidade, indo muito além de números e estatísticas, pois guarda relação profunda com a ausência de uma cultura dirigida ao hábito da leitura e da reflexão. Em entrevista recente à agência de noticias Notimex, o jornalista espanhol Alex Grijelmo, presidente da agência espanhola EFE, ele próprio um cultor e defensor da língua espanhola, com um par de ótimos livros publicados sobre o tema, acrescenta alguns matizes mais genéricos a situação editorial mexicana.
Para Grijelmo, o fenômeno do baixo índice de leitura na América Latina se deve…
‘…à penetração dos meios eletrônicos de comunicação, pois tudo tem relação com este mundo audiovisual onde vivemos, por canais que não têm relação com a palavra escrita. É mais fácil para os jovens ficar com o que encontram na televisão, no rádio, na internet – daí essa apatia pela leitura.’
Esclarece, portanto, que não se trata de um fenômeno exclusivo da sociedade mexicana; faz parte da vida dos hispanohablantes, tendência fomentada também pelos meios de comunicação.
Solução? Grijelmo insiste no que todos, sobretudo intelectuais e donos do poder na América Latina, já sabem de cor e salteado:
‘A única fórmula para engrandecer um país é destinar muitos recursos à educação, que é básica para difundir o gosto pela leitura. Sem leitura, senhores, não podemos ter uma sociedade desenvolvida sob qualquer aspecto.’
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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México