Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

João Batista Natali

‘O jornalista francês Philippe Brunet-Lecomte, diretor da revista mensal ‘Lyon Mag’, está sendo processado por ‘apologia do crime’ em razão da publicação de entrevista em que um dirigente muçulmano de um subúrbio da cidade de Lyon defendeu, em caso de infidelidade, o direito de os maridos surrarem suas mulheres.

O imã Abdelkader Bouziane, de nacionalidade argelina, foi expulso da França. Mas recorreu à Justiça e obteve em primeira instância o direito de retornar.

A entidade Repórteres Sem Fronteira escreveu ao ministro francês da Justiça, Dominique Perben, qualificando o processo contra o jornalista de ‘abusivo’.

‘Associar declarações condenáveis do imã e o jornalista que o entrevistou terá conseqüências nefastas à liberdade de informação na França’, disse a entidade.

A ‘Lyon Mag’ havia sido condenada no ano passado a uma multa de 254 mil (R$ 934 mil) por reportagem que os produtores do beaujolais consideraram ofensiva à imagem daquele vinho.

Eis os principais trechos da entrevista do jornalista agora novamente processado.

Folha – Qual lei foi evocada na tentativa de processá-lo?

Philippe Brunet-Lecomte – Nós, da revista ‘Lyon Mag’, temos más relações com o Judiciário da cidade de Lyon. Somos impertinentes, fazemos com freqüência críticas aos tribunais. A Justiça da cidade não gosta de nós, o que nos parece bastante claro. Os juízes talvez estejam nos mandando um recado para que baixemos um pouco o tom de nosso jornalismo.

Folha – A organização Repórteres Sem Fronteira protestou contra a ação judicial. Os sindicatos franceses se manifestaram?

Brunet-Lecomte – Não, até o momento. Os sindicatos franceses se posicionam bem mais sobre desemprego ou salários.

Folha – Como interpretar a reação do governo francês contra alguns muçulmanos extremados?

Brunet-Lecomte – Creio que o governo tem uma diretriz de curto prazo. Procura obter efeitos na mídia. Prende um ou dois imãs, finge que se interessa pelo problema, mas não o estuda seriamente. Não está atento sobretudo ao extremismo de certos imãs em subúrbios franceses.

Folha – O atual processo parte dos mesmos juízes que o condenaram no caso do vinho beaujolais?

Brunet-Lecomte – Com certeza. Entramos com um recurso. E temos a intenção de levar o caso à Corte Européia dos Direitos Humanos, se assim for necessário.

Folha – Quais os riscos reais, agora, de uma condenação?

Brunet-Lecomte – Esperamos não ser condenados. Mas as decisões da Justiça francesa são sempre inesperadas e incompreensíveis. Há hoje entre os juízes uma tendência a acreditar que a liberdade de imprensa é excessiva na França.

Folha – Os grandes jornais franceses abordaram o caso?

Brunet-Lecomte – Sim, e o fizeram com bastante destaque. O que a maior parte dos jornais disse é que era escandaloso esse procedimento para nos intimidar. Entrevistar alguém não é estar de acordo com o entrevistado.’



Alessandro Giannini

‘‘As fotografias somos nós’’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/05/04

‘Quando foram divulgadas as fotografias mostrando o abuso sofrido pelos detentos iraquianos na prisão de Abu Ghraib, controlada por oficiais da inteligência militar e soldados americanos no Iraque, era de se imaginar que mais cedo ou mais tarde a intelectual Susan Sontag se manifestaria. Com um ensaio sobre fotografia que se tornou referência, Sobre Fotografia, reeditado recentemente pela Companhia das Letras com nova tradução, Sontag também é conhecida pela franqueza com que se expressa, principalmente em relação à postura de seus colegas intelectuais em situações delicadas como esta.

O escritor colombiano Gabriel García Márquez foi alvo de seus petardos quando o governo cubano executou um grupo de dissidentes. Para ela, é inadmissível que um intelectual humanista da estatura de Márquez, reconhecidamente amigo de Fidel Castro, não se tenha colocado de forma contundente na ocasião.

Pois para não fugir à própria ética, ela se manifestou publicamente sobre as fotos de Abu Ghraib na New York Times Magazine do dia 23 de maio, com um ensaio intitulado Regarding the Torture of Others (Encarando a tortura dos outros). Em cinco tópicos, fala sobre a fotografia como principal instrumento de memória do século 20, analisa a natureza hedionda das imagens da prisão iraquiana e o que elas significam para o entendimento do que são os Estados Unidos sob o comando de George W. Bush e seus asseclas.

O centro do ensaio está estampado na manchete que ocupa sozinha a bela capa da revista dominical do jornal americano: ‘The Photographs Are Us’ (As Fotografias Somos Nós). Sontag contrapõe a natureza eufemística da palavra, que pode ser facilmente mudada ou adaptada para se ajustar a uma determinada situação, à natureza perene e indiscutível da imagem, que permanece como prova de um acontecimento.

A insistência do governo americano em usar o termo abuso e não tortura ou em continuar se referindo aos prisioneiros como detentos podem evitar transtornos de ordem judicial, em função de acordos internacionais. Mas não transforma ou diminui o que as imagens mostram com todas as cores e requintes de violência. Ou seja, nas palavras da intelectual: ‘Elas (as fotografias) são representativas das corrupções fundamentais de qualquer ocupação estrangeira, junto com as distinções das políticas do governo Bush.’

Sontag fala também sobre o conteúdo fortemente erótico das imagens, chamando a atenção para a banalização do sexo nos dias atuais, dentro de uma conjuntura fortemente conservadora como a dos EUA. Ela cita como paradigma o último filme do diretor italiano Pier Paolo Pasolini, Saló – 120 Dias de Sodoma (1975), que usa uma orgia de torturas para fazer uma alegoria da famosa República de Saló, o último reduto do poder exercido por Mussolini no fim da 2.ª Guerra Mundial.

Para os defensores de Bush e de sua política preventiva, o tipo de atitude capturada pelas câmeras dos soldados americanos em serviço na prisão de Abu Ghraib são comparáveis ao que acontece nas festas de iniciação das fraternidades universitárias dos EUA. ‘Isso não é diferente do que acontece na iniciação da Skull and Bones (Crânio e Ossos)’, disse o radialista Rush Limbaugh, um dos mais ativos cabos eleitorais do presidente americano.

(Faz-se necessária aqui uma explicação: Skull and Bones é a irmandade secreta e superexclusiva de Yale da qual George W. Bush fez parte.) Susan Sontag resume: ‘Choque e pavor era o que os nossos militares prometeram aos iraquianos. E choque e pavor são o que essas fotografias anunciam ao mundo que os americanos entregaram: um padrão de comportamento criminoso em contravenção aberta às convenções humanitárias internacionais.’’



Débora Rubin

‘Diários de guerra’, copyright Época, 2/06/04

‘A decisão do governo americano de proibir o uso de celulares com câmera digital nas bases militares do Iraque quer impedir que novas imagens de tortura se espalhem pelo mundo. Mas o veto pode pôr fim também à alegria de um pequeno grupo de soldados. Era por meio de celulares que 18 deles mantinham páginas na internet, com fotos e comentários sobre o dia-a-dia no Iraque. Os moblogs, blogs atualizados pelo celular, estão concentrados em um mesmo provedor e trazem curiosidades sobre a guerra.

O Tired and Dirty Soldier (soldado cansado e sujo), por exemplo, publicou recentemente uma foto que mostra a silhueta de um militar – provavelmente ele mesmo – com um pôr- de-sol ao fundo. No texto que acompanha a imagem, ele faz o seguinte desabafo: ‘Vivemos constantemente com medo, embora ninguém admita. Odiamos este país, embora ainda tenhamos o desejo de ajudar. Mas não reclamo. Só quero que vocês saibam que nós damos muito mais que nosso tempo e nosso trabalho. Nós damos um pouco de nós’.

Para cada foto colocada no ar, segue uma enxurrada de comentários de internautas. A grande maioria manda mensagens de apoio (‘Deus o abençoe’) e cantadas: ‘Nossa, que soldado fofo você é’. Um usuário, que se diz alemão, dá início a um apimentado debate ao comentar que o ‘soldado cansado e sujo’ é apenas um matador pago em uma guerra injusta. Outro leitor toma as dores do militar e diz que ‘esses europeus bobos não têm valores’. No calor da discussão, até o cineasta Michael Moore, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e ácido crítico de Bush, é citado como um exemplo de americano consciente. O dono da página diz que não faz comentários políticos.

Italy Jumper, outro soldado que mantém seu diário de guerra, voltou para os Estados Unidos há duas semanas, mas continua alimentando seu blog. Conta que sua irmã o abastecia de cigarros e solta o verbo para defender a pátria. Em um longo texto, descreve a morte de um amigo no front: ‘Na noite de 18 de outubro, ele estava conduzindo um comboio quando caiu numa emboscada. Deu-se início a um tiroteio e ele foi ferido. Morreu fazendo seu trabalho’. Procurado por ÉPOCA, Italy Jumper disse que não poderia dar entrevista por ordem de seu superior. Ironicamente, em sua página é possível ver até seu rosto e saber sobre sua rotina no país de Saddam Hussein. Poucos visitantes dos moblogs perguntam sobre o conflito em si. Ainda assim, os diários ajudam a matar a curiosidade de quem quer ver um lado pouco conhecido da guerra do ponto de vista de quem a faz.’