A incoerência da mídia em geral, e especialmente da Folha de S.Paulo, poderia até ser perdoada, se não se repetisse tanto e, como sempre, torcendo os fatos para produzir o suco da enganação. É um espanto! – diria o comediante Agildo Ribeiro revivendo personagem de histriônico passado.
A Folha, todos se lembram, sempre correu atrás do Estado de S.Paulo e quase sempre sem chegar nem perto. Isso se considerarmos a tiragem e a influência de um e de outro. Foi assim durante longo tempo até que surgiu a grande chance no início da década de 1980. O país, depois de penar sob o coturno dos milicos, começava a respirar novos ares. A possibilidade de se eleger um presidente, com voto direto, ganhava força. Atenta aos novos tempos, a direção do jornal assumiu o risco – se é que ainda havia algum naquele momento – e deu asas ao sonho.
A tática era jogar sob o tapete da História o sujo passado do jornal, que recentemente cunhou o neologismo “ditabranda” para definir a sanha assassina dos torturadores do golpe de abril de 1964. E a empresa até emprestava insuspeitos veículos para o transporte de subversivos presos, aqueles malditos difusores do credo vermelho que, portanto, mereciam os espetos do demônio. Quem quiser conhecer parte dos podres do jornal da elite paulista que leia o livro Cães de guarda – Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988, fruto da tese de doutorado de Beatriz Kushnir. O livro, quase censurado e boicotado em todos os cantos, tem incomodado os bacanas da mídia.
Enquanto a Rede Globo teimava em desconhecer e até negar os fatos, a Folha mobilizou máquinas e mentes, sucursais e repórteres, todos jogando no grande time da democracia. A melhor e maior cobertura passou a ser da Folha, que mantinha sempre um olho nas costuras políticas e outro no público que precisava conquistar. Nos idos de 1980 havia o esperto mineirinho Tancredo Neves arrematando as pontas da grande colcha de retalhos de um lado e os homens de mercado (os tais marqueteiros de hoje) conquistando os jovens de outro. Os universitários enchiam a boca quando citavam – e sempre faziam questão de citar – a Folha de S.Paulo.
A Folha se transformou em autêntico JB
Nessa época, o incrédulo escrevinhador que vos toma o tempo dividia as noites entre várias turmas do curso de Jornalismo, ensinando o pouco que sabia para jovens ávidos de aprender os mistérios da profissão. E, como não poderia deixar de ser, de vez em quando analisávamos a cobertura jornalística das Diretas Já. Todos só queriam saber da Folha, era difícil motivar esse ou aquele aluno para os outros jornais. E tome porrete no Globo e na TV dos Marinhos pelos motivos que todos já conhecem…
Mas, infelizmente, as conveniências políticas foram mais fortes e o que era para ser de forma democrática e direta foi parar, de novo, em um suspeitíssimo colégio eleitoral. Ainda bem que entre Tancredo e Maluf não havia possibilidade de erro, principalmente se considerarmos o alcance do longo arco de alianças feito pelo avô do Aécio bom de papo. E, ao longo do complicadíssimo parto cívico-partidário, lá sempre esteve a Folha e seus repórteres. Mas o destino deu uma rasteira no mineirinho e tivemos que engolir o oportunista José Sarney, beneficiário mor da tragédia.
Saldo da longa campanha na área jornalística? A até então paulistana Folha se transformou em autêntico Jornal do Brasil, roubando do informativo da condessa Pereira Carneiro (o JB) a importância, a pose e o poder de influenciar as mais jovens cabecinhas pensantes. Público leitor também foi tirado de O Globo e até do vetusto Estadão.
Descompromisso com a imparcialidade
Qual é hoje a realidade da Folha? Remói com mágoas os oito anos de Lula, teve que engolir a vitória da Dilma, mas ainda se crê com força suficiente para influir no livre pensar de quem vota. Como influir? O jornal se desmoralizou pela teia de mentiras que tentou tecer, as vendas despencam e mais ninguém faz ou renova assinaturas. Tanto que vozes sedutoras tentam, pelo telefone, nos convencer a assinar o calhamaço. Assinar para que, se a internet nos disponibiliza acessos rápidos a essa e a outras fontes? E quem ainda tem estômago, por exemplo, para ler as intrigas de Eliane Cantanhêde, colunista (ou calunista, no dizer de Paulo Henrique Amorim) militante que assina espaço na página de opinião do jornal?
Vida que segue, texto que escoa e o atento leitor pode estar se perguntando sobre as razões da inicial frase da coluna. Sim, há flagrante e constante incoerência na Folha. Ela, que tanto apregoa sua “intransigente defesa da verdade” e que já fez até campanha publicitária tendo como mote a garantia de que “não tem o rabo preso”, sempre se referiu a Augusto Pinochet, Alfredo Stroessner e outros com o título de presidente. Também os generais brasileiros e o marechal que iniciou o ciclo no fatídico 1964 sempre foram chamados de presidentes. Ora, ora, o bom jornalismo não pode bater continência para nenhuma ideologia. Se eles foram presidentes e não ditadores, por que nunca se deu o mesmo tratamento a Fidel Castro? De todos os jornais brasileiros, a Folha sempre foi dos mais críticos ao barbudo ex-fumador de charutos e que, por sua insignificância econômica, nem deveria preocupar o imbatível paraíso democrático de que tanto se orgulham os negocistas da opinião.
Espera aí, meu preclaro patrulhador. Não estou defendendo Alice e nem acusando quem roubou os doces da vovó; estou apenas comparando a política de dois pesos e de não sei quantas medidas adotada pelo pretensioso jornal impresso na terra onde ainda bica o tucano. Foi por ouvir tantas coisas contra e a favor de Cuba que dei um jeito de ir ver de perto o que uns chamavam de “paraíso socialista” e outros de “inferno comunista”. Em pleno desgoverno dos tucanos, juntei as notinhas de real – essa imbatível moeda que FHC garantia ser aceita em qualquer parte do mundo, desde que não se fosse além do Paraguai – e lá fui eu, com o olhar descompromissado da imparcialidade.
Apenas a próxima refeição
O que vi por lá? Nem o de mais, nem o de menos. Vi pobres sim, mas não miseráveis. Visitei lugares paradisíacos, mas exclusivos para os turistas. Com o bloqueio, os recursos minguaram e o turismo passou a ser a principal fonte de dólares. O principal erro é de quem pretende ver Cuba sob a ótica da nossa classe média alta. Para esses, Cuba não está com nada, pouco oferece para se consumir. Interessante seria imaginar aquela ilha sob a ótica de quem ganha quase nada, não tem onde morar, é um sem escola, sem transportes, sem segurança, sem terra, sem emprego, sem saúde, sem comida e até sem esperança. Ah, já sei, no reinado de Fernando II não havia esse tipo de gente aqui, só lá na… na… na França, plagiando antigo personagem da Escolinha do Professor Raimundo.
O que se dizia era que para entrar em um avião em Cuba era preciso tirar passaporte e que o documento custava 500 dólares, dinheiro muito difícil de juntar. É, também ouvi isso por lá. Ainda bem que no Brasil existe liberdade, pois qualquer um pode ir para onde quiser. Claro, apenas uma ínfima minoria, no reinado do tucanato, poderia ter os dólares para exercer o sagrado direito de ir e vir e possíveis 90% estavam mais preocupados com o desemprego, as filas nos hospitais, o assaltante na próxima esquina etc. Isso para não lembrar dos mais de 40 milhões de brasileiros que tinham como horizonte apenas a próxima refeição.
Mas isso é um detalhe, dirá o bem cevado deputado nesse berço da impunidade.
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[Hermínio Prates é jornalista]