Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A prova da globalização cultural

Parece exagero que um livro considerado, por unanimidade, como obra prima de todos os tempos, por intelectuais do mundo e a qual ajudou a mudar, de alguma maneira, os rumos da humanidade, esteja completando 400 anos de sucesso, absoluto. Depois da Bíblia de Gutemberg de 42 linhas, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha é considerado o primeiro best-seller literário do planeta, publicado em 1605, sendo ambos os mais vendidos, lidos e traduzidos, alimentando, assim, o sonho e a busca da globalização cultural. No mesmo ano do lançamento conseguiu a proeza, alguma coisa inacreditável, ter seis reedições.


Vertidas para o francês e inglês o livro passa a ser um acontecimento europeu, logo, mundial. 0 número de exemplares vendidos alcançou a impressionante soma de cerca de 12 mil. Começava a cumprir-se, com esse fato, a profecia do autor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), depois da recusa de algumas editoras, ao registrar com estas palavras, a respeito da obra: ‘não haverá nação nem língua que não seja traduzida’. Cervantes trabalhou com uma das mãos. A outra, a esquerda, ficou prejudicada na famosa batalha naval de Lepanto, na qual se tornou herói, lutando contra o perigo muçulmano no continente europeu. Enfrentando a tragédia com certa galhardia, disse, com ironia, a respeito: para maior glória da mão direita.


Sancho Pança, o vizinho


Há muitas interpretações na leitura do livro, que influenciou o mundo literário, pela inovação narrativa dos episódios. Grande parte do conteúdo foi extraída das extravagâncias vividas pelo autor, ou seja, nas peregrinações e nas quais se meteu em encrencas, até ser preso. Apesar da vida irrequieta e cheia de aventuras, não se esqueceu de olhar de perto, e assimilar o espírito da arte e da literatura renascentista, ao morar por algum tempo na Itália.


0 personagem principal da obra é Alfonso Quejana, o Dom Quixote, que se autoproclamou, mais tarde, Cavalheiro de Triste Figura. Tinha cerca de 50 anos de idade. Pertencia a uma família tradicional de fidalgos espanhóis. Com alguma posse, em um certo lugar da Mancha, gastou uma boa soma em dinheiro na compra de livros de cavalaria, passando noites sem dormir. Nada de outros prazeres. Sentia-se atraído pelo cenário das lutas.


Certo dia resolveu ser um desses guerreiros. Seduzido pela coragem e o desempenho de tais figuras. Incorporou os personagens, que pertenceram ao respeitável e reduzido grupo de heróis. Meteu-se numa armadura dos antepassados e convidou para acompanhá-lo e ser o seu fiel escudeiro, o vizinho, Sancho Pança, com a promessa de presenteá-lo com uma ilha para governar. Os dois montam num pangaré e num burro velho.


Exemplos de justiça


Saem pelo mundo em busca de aventuras, com a missão de desafiar os poderosos que oprimiam os fracos, defender as donzelas dos maus tratos e enfrentar qualquer tipo de injustiça. Nessa marcha tudo o que olham se traduz como inimigo. O ideal de Dom Quixote, transportando sonhos e aparências é de uma nobreza ímpar. Prossegue nessa empreitada até quando as pessoas concluem que o fidalgo Alfonso Quejana perdeu o juízo e precisa recuperar-se e voltar para casa.


Dois amigos ligados a ele, um padre e um barbeiro (que fazia sangria) , mais uma sobrinha e uma criada resolvem curar o mal pela raiz. Exorcizar a biblioteca, benzendo-a e queimando os livros que lhe estavam enfeitiçando. Ao saber do episódio Alfonso é vítima de depressão. Dentro de pouco tempo, morre.


Dom Quixote, na sua loucura, viveu entre a fantasia e a realidade. Deu exemplos ao mundo de justiça. Quis consertar os erros alheios e o fez, pelo modo, que achou viável, embora correndo perigos e enfrentando dificuldades. Zombado como herói de fancaria, maltratado como bobo e xingado como louco, provocando risos e galhofas, Dom Quixote deveria ser olhado também como um sábio e mestre da vida.


Triste morte


Não menos Sancho pela fidelidade. Saavedra apesar da pouca educação escolar era um autodidata, versado nos clássicos. A idéia introduzida naquele romance foi denunciar, com mordacidade e humor a proibição da leitura, pelos grupos religiosos que se digladiavam nas cruzadas através das palavras e da espada, ou seja, protestantes e católicos. Sócrates e Platão já recriminavam o livro feito de papiro.


Os dois filósofos confiavam na educação oral, no poder da memória. A tipografia que data de 1450 veio a popularizar o livro a partir do século XVII. Muitos escritores famosos usaram o mesmo recurso de Saavedra para protestar contra a censura à leitura e fazer provocações pelo ambiente de hipocrisia da época. O autor teve seguidores, a exemplo de um Shakespeare, Flaubert, Dostoievski, Charles Dickens, sem incluir um bom número de intelectuais brasileiros, que escreveram livros.


Triste morte de Dom Quixote. A morte na solidão. Sem os livros que tanto amava, perdeu a razão de viver. Afastado do maior dos prazeres desinteressou-se da vida. O mais autêntico sonhador da literatura, foi, sem dúvida, herói de um mundo que se deixa iludir pela metáfora da ‘aldeia global’. Daí o renascer de Miguel de Cervantes Saavedra através dos séculos, firmando-se como criador de personagens, ainda, hoje, insuperáveis. Quixote e Sancho saltarão das páginas dos livros para a realidade da vida, toda vez que nos depararmos com um moinho de vento. E os moinhos de vento do Brasil precisam ser atacados.

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Jornalista (www.sebastiaojorge.net)