Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ciência e falsa ciência

O Tribunal Federal Regional da 1ª Região decidiu semana passada que apenas médicos terão direito de praticar a acupuntura. Cabe recurso, o que significa que a decisão pode ser alterada como ocorre com freqüência surpreendente nas chamadas “ciências jurídicas”.

A decisão do tribunal resultou de ação movida pelo Conselho Federal de Medicina já há dez anos e veta que outros profissionais ligados à área da saúde possam praticar a acupuntura – caso de fisioterapeutas, psicólogos, farmacêuticos e mesmo outras pessoas sem formação convencional nessas atividades.

Os jornais publicam diariamente notícias como esta, mas não fornecem o contexto em que elas ocorrem, o que significa dizer que não praticam o jornalismo interpretativo, recurso que caracteriza, em especial, o jornalismo científico, ou jornalismo de ciência como preferem alguns.

O jornalismo interpretativo dispensa opiniões de autoridades presentes do jornalismo opinativo que, na melhor das hipóteses, tenderia à extinção sem garantia de que isso possa vir mesmo a acontecer.

O jornalismo interpretativo organiza historicamente os fatos e permite que leitores tirem suas próprias conclusões sobre o que está acontecendo no presente, com base no legado do passado, com projeções no futuro.

Reconhecimento formal

A pretensão de monopolizar a acupuntura por parte do Conselho Federal de Medicina, por exemplo, não deixa de ser curiosa, levando em conta o que ocorreu em 1972, quando o então presidente americano Richard Nixon visitou a China num contexto que ficou conhecido como reabertura desse país para o Ocidente.

Essa redescoberta ocidental da China fez com que técnicas ancestrais fossem consideradas, em especial a acupuntura. E qual foi a reação largamente majoritária dos médicos e seus órgãos representativos? A acupuntura foi considerada uma farsa, algo no mesmo nível de uma feitiçaria tosca, e por isso mesmo tratada com repulsa e condenação.

E o que acontece exatamente 40 anos depois?

No Brasil, médicos praticam a acupuntura e seus órgãos de classe vão à Justiça para que seus associados sejam os únicos autorizados a fazer uso dela. Apenas para localizar melhor o percurso recente da acupuntura no Ocidente, certamente vale a pena rememorar que o reconhecimento dessa prática foi, de certa maneira, acidental.

Ocorreu que, em 1971, o jornalista James Reston, lendário editorialista do New York Times, beneficiou-se da acupuntura para tratar de dores pós-operatórias devido a uma cirurgia para se livrar de um apendicite, quando estava na China. Reston relatou os benefícios da experiência e, com a credibilidade de que desfrutava, fez com que a técnica fosse considerada no meio científico americano.

A viagem de Nixon, que retirou a China de um longo isolamento, permitiu, em seguida, uma troca de informações inéditas entre cientistas chineses e americanos e a acupuntura, evidentemente, esteve incluída nessas considerações.

Demorou algum tempo, como costuma ocorrer na adoção de práticas/medicamentos na área de saúde, mas em 1996, finalmente, a Food and Drug Administration, a conhecida agência reguladora americana na área da saúde, aprovou a prática da acupuntura nos Estados Unidos. O reconhecimento formal dessa técnica terapêutica eficaz, a ponto de boa parte de seus detratores iniciais agora pretenderem ter exclusividade na sua prática, é apenas um capítulo recente da história da ciência.

Desdém da intolerância

Fundamentalistas (tanto na comunidade acadêmica, como e principalmente fora dela), no entanto, costumam privilegiar a memória em prejuízo da inteligência. Com freqüência, discursos agressivos, baseados em palavras de ordem e em evidências discutíveis, falam em “separar a verdadeira da falsa ciência”, como se essa fosse uma tarefa trivial. Algo equivalente a fazer um risco de giz no chão e definir: “esta é verdadeira e aquela é falsa ciência”.

Evidentemente que existem coisas que não passam de descarada falsa ciência. E isso deve ser formalmente reconhecido. A ciência de Trofim Denisovi? Lysenko, sob Stalin, na antiga União Soviética, foi um exemplo disso.

Obscuro criador de plantas, Lysenko, que chegou a ocupar a direção do Instituto de Genética da Academia Soviética nos anos 1940, rejeitou a genética mendeliana com o argumento que se tratava de “ciência burguesa”. O trabalho de Lysenko, baseado em parte nas pesquisas do geneticista Ivan Vladimirorich Michurin, mas com desvios grosseiros, produzidos por limitações ideológicas, foi um retrocesso na genética e, de certa forma, em toda a ciência produzida na União Soviética.

O pensamento dele só foi formalmente refutado em meados dos anos 1960, o que permitiu uma renovação do pensamento científico no que então era uma das potências no sistema de poder bilateral que caracterizou a Guerra Fria.

Se existe uma falsa ciência – em paralelo não a uma verdadeira ciência, mas o que se pode chamar de ciência com base, por exemplo, no método científico –, isso não significa que seja tão fácil quanto parece fazer de imediato essa distinção. A não ser na base de palavras de ordem típicas da submissão ideológica, sem falar de possíveis e sugestivos problemas de natureza freudiana, entre outros.

O grande Galileu Galilei, por exemplo, sorriu com desdém de intolerância quando Johannes Kepler, o “último dos antigos e o primeiro dos modernos”, referiu-se à ideia de forças agindo à distância, ou seja: o que poderíamos chamar hoje da protogravitação universal.

Estupidez sem limites

Numa passagem não muito conhecida da história da ciência, Galileu desacreditou, como parte do “pensamento mágico”, a consideração de Kepler, que Newton desenvolveria nos Principiamathematica,publicado em 1687.

Newton estabeleceu que a matéria se atrai na razão direta das suas massas e na razão inversa do quadrado da distância – e isso foi e continua válido, ainda que alterado pelas equações da relatividade geral de Einstein, onde o conceito de força é substituído pela ideia perturbadora da curvatura do espaço-tempo.

A Lua, por exemplo, gira em torno da Terra porque está localizada num poço gravitacional criado pela massa da Terra. E a mesma coisa ocorre com o sistema Terra-Lua em torno do Sol e também se aplica em relação às galáxias do chamado Grupo Local, submetidas à deformação do Superaglomerado de Virgem.

O Universo é um amplo salão, onde a gravidade define o estilo e o ritmo da dança dos corpos que podem ir de pedregulhos gigantes, caso de asteróides, a estruturas tão massivas como superaglomerados galácticos.

A contextualização desses fatos sugere, entre outras coisas, que a genialidade humana é infinita. Mas a estupidez também é, quando se manifesta sob a forma de pensamento limitado e limitante, comprometida mais com a camisa de força da memória do que com a criatividade libertadora da inteligência, sequiosa por perscrutar os fascinantes mistérios do mundo.

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[Ulisses Capozzoli é jornalista e editor da Scientific American Brasil]